O velho Brasil aparece nos detalhes, e o uso da palavra suspeito para se referir aos mortos pela ação da polícia no Jacarezinho é exemplo disso
No Brasil, geralmente o que se apresenta como novo na política sempre traz o cheiro de coisa velha e mofada.
Não falo aqui da velhice cronológica, aquela da qual nada escapa. Falo de uma velhice reativa, do tipo que não aceita ser ultrapassada e que sempre arruma um jeito de reaparecer de forma diferente.
Nada foi mais significativo dessa renovação da velhice do que a entrevista coletiva concedida por membros da Polícia Civil do Rio após a morte de 29 pessoas em operação na favela do Jacarezinho. Nas falas dos policiais, o Brasil, mais uma vez, renasceu. Renasceu mais podre e mais anoso. Ou morreu de novo, como queiram.
O velho Brasil aparece nos detalhes, e o uso da palavra “suspeito” para se referir aos mortos pela ação da polícia é exemplo disso. Se o uso do termo pelos representantes da Polícia Civil chama a atenção, também é perceptível a facilidade com que a imprensa aderiu à retórica da suspeição. Aliás, o papel da imprensa é fundamental para que condutas que, em outras circunstâncias, seriam consideradas invasão de domicílio, abuso de autoridade, fraude processual e homicídio transformem-se em “luta contra o crime”.
O livro “Retrato em Branco e Negro”, de Lilia Schwarcz, é bastante elucidativo desse processo que transforma novidade em coisa velha aqui em terras brasileiras. No mencionado livro, a autora demonstra como a imprensa paulista no final do século 19 atuou “na construção e manipulação das representações sobre o negro cativo ou liberto, quando se intensificavam as rebeliões negras”.
Nas palavras da autora, a intenção primordial do livro é “apresentar os modos com que os brancos se referiam aos negros e o representavam” num momento de profundas mudanças sociais, que naquele momento culminariam na abolição, na República e em na reconfiguração do racismo no Brasil.
Ao analisar os jornais da época, Lilia Schwarcz constata que ao tempo da escravidão todos eram considerados escravos até prova em contrário. Se não conseguisse provar a própria liberdade, o negro que fosse pego “vagando pela rua” (“vagabundo”, portanto) poderia ser detido por “suspeita de ser escravo”.
Ao não comprovarem ser “homens decentes” deveriam então ser considerados escravos fugidos e levados de volta ao cativeiro. Além da “suspeita de escravo”, negros eram também detidos “por desordem”, bebedeira ou “por andar sem bilhete após o toque de recolher”.
Conclui a autora que tais motivações vagas possibilitavam o arbítrio policial e se escoravam em uma visão que via o negro, mesmo livre, como um “degenerado”, seja por não ter ocupação, seja por não estar adaptado “às condições ‘civilizadas’ da vida nas cidades”.
Como se pode notar pela similaridade com o discurso escravocrata do século 19, os agentes da Polícia Civil trouxeram à tona o ódio aos pobres, aos trabalhadores e aos negros pacientemente cultivado pela sociedade, mesmo em tempos ditos republicanos e liberais.
A novidade de 2021 talvez seja o fato de que, dado o avançado grau de decomposição econômica e política, já não seja preciso —e nem possível— disfarçar esse ódio com arranjos jurídico-institucionais.
Desse modo, a fragilíssima fronteira da legalidade que separava, ao menos no campo das aparências, feitor de escravo e agente de segurança, e mais tarde, policial de miliciano, talvez agora não mais exista.
Os recados enviados ao STF e às entidades de direitos humanos durante a coletiva de imprensa são indícios fortes de que os poderes selvagens já se estabeleceram e que não aceitarão passivamente qualquer tentativa de contenção.
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo.
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