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Pandemia, flexibilização do uso de armas e feminicídio

Pandemia, flexibilização do uso de armas e feminicídio

No apagar das luzes do último 12 de fevereiro, em uma edição extra do Diário Oficial, véspera de Carnaval, o presidente Jair Bolsonaro editou quatro decretos flexibilizando as regras de aquisição de armas de fogo e munições no país1.

Entre as medidas, houve a ampliação de quatro para seis em relação ao número de armas que um cidadão pode possuir em território nacional, franqueando o porte simultâneo de duas armas por pessoa e excluindo da lista de produtos controlados pelo Comando do Exército projéteis de munição com calibres de até 12,7 mm.

Segundo o Planalto, as mudanças buscam desburocratizar os procedimentos de aquisição de arma de fogo no país, aumentar a clareza das normas que regem a posse e porte de armas desses artefatos, bem como reduzir a discricionariedade de autoridades públicas na concessão de posse e porte de armas, pois ampliaria as garantias de contraditório e ampla defesa dos administrados adequando “o número de armas, munições e recargas ao quantitativo necessário ao exercício dos direitos individuais e ao cumprimento da missão institucional das categorias autorizadas a terem posse e porte de armas pela lei2.

Entretanto, a autoridade federal olvidou-se de ponderar os impactos que essa “desburocratização de procedimentos” pode causar para determinadas parcelas da população, como é o caso das mulheres em contexto de violência doméstica.

Em um início de ano marcado pelo agravamento da pandemia do novo coronavírus no Brasil, é alarmante que o governo central flexibilize o uso de armas de fogo, justamente em um período em que as medidas de isolamento social estão sendo retomadas, fazendo com que um maior número de mulheres tenha que ficar em casa, expostas a diversos tipos de violências e ameaças.

Para especialistas no tema, a crise sanitária causada pelo coronavírus deixou as mulheres mais vulneráveis à violência doméstica em diversos países3. Segundo dados da ONU Mulheres, em setembro de 2020, o confinamento forçado diante da pandemia levou ao aumento de denúncias e ligações para as autoridades públicas por violência doméstica em diferentes Estados. No Chipre e na França o número de denúncias aumentou em 30%, já na Argentina o índice de aumento foi de 25%4.

No Brasil a realidade não é diferente. Conforme dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os casos de feminicídio cresceram 22% em 12 estados brasileiros, entre março e abril de 20205.

Já os números oficiais do governo federal apontam que em 2020 o país registrou 105.671 denúncias de violência contra a mulher recebidas pelo “Ligue 180”, o que representou cerca de 290 denúncia por dia. Desse total, 72% dizem respeito à violência em contexto doméstico6.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, durante o ano de 2020, primeiro ano de pandemia no país, mais de 50 mil mulheres sofreram algum tipo de agressão no Estado de São Paulo e 179 mulheres morreram vítimas de feminicídio.

As mulheres negras e periféricas são as que mais enfrentam as agruras da pandemia. O desemprego é outro fator que contribui para a violência. Desde 1990 não se tinha um índice tão alto de desemprego entre as mulheres, segundo pesquisa do terceiro trimestre de 2020.

Ainda de acordo com pesquisa divulgada na 15ª edição do Dossiê Mulher, lançada pela Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2019 um terço das vítimas de feminicídio no estado do Rio de Janeiro foram mortas dentro de uma residência, e em 43% dos casos foi utilizada uma arma de fogo7. Já, conforme dados divulgados no Atlas da Violência de 2019, entre os anos de 2007 e 2017 houve um crescimento acentuado da taxa de homicídios dentro de residências com o uso de armas de fogo8.

Tais dados além de chocarem, deveriam estar sendo usados como subsídios à implementação de políticas públicas sólidas de enfrentamento à violência doméstica e ao feminicídio.

A flexibilização do uso de armas propostas pela presidência em fevereiro de 2021 vai na contramão das ações para a diminuição dos índices de violência doméstica no país. Trata-se de um dever estatal conferir proteção às mulheres e, certamente, a facilitação da posse de armas pelos eventuais agressores não é a medida adequada para o cumprimento desse dever. Resta agora aguardar os índices no final do ano que se inicia.

Mas essa, infelizmente, não parece ser a preocupação do Presidente Jair Bolsonaro. Em agosto do ano passado o Ministério Público Federal ingressou com uma ação civil pública em razão de posturas desrespeitosas e declarações discriminatórias, proferidas pelo Presidente e ministros de seu governo contra as mulheres. Na ocasião, a Procuradoria destacou que suas manifestações intoleráveis têm efeito “sobre a realidade social e persuasão do público, com potencial para reforçar estereótipos e posturas misóginas e discriminatórias, notadamente quando advindas de pessoas com poder de influência9.

E justamente neste 08 de março, para a nossa surpresa, deixando clara a manobra política, jornais noticiam a intenção do Presidente de se filiar ao Partido da Mulher Brasileira (PMB) para disputar a reeleição. Esperamos, realmente, que não encontre respaldo para dirigir o partido, o que seria uma verdadeira aberração. Afinal, em 28 de abril de 2020, após Jair Bolsonaro dizer que o Brasil não poderia ser um país do turismo gay e que “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade, o Partido declarou que a fala do Presidente, para além de incondizente com o cargo que ocupa, incentiva o “turismo sexual e reafirma o estereótipo de objetificação e coisificação que as mulheres brasileiras tem em todo o mundo.

Que o dia 08 de março seja de reflexão e resistência.


1 Decretos nos 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630,

2 Portal do Palácio do Planalto. Disponível em: < https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2021/02/governo-desburocratiza-procedimentos-sobre-uso-de-armas >, acesso em 07, mar. 2021.

3 Coronavírus – Violência contra a mulher pode aumentar durante a quarentena; veja como buscar ajuda. O Globo. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/celina/coronavirus-violencia-contra-mulher-pode-aumentar-durante-quarentena-veja-como-onde-buscar-ajuda-24312392 >, acesso em 06 mar, 2021.

4 Com restrições da pandemia, aumento de violência contra a mulher é fenômeno mundial. Portal G1. Disponível em: < https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/11/23/com-restricoes-da-pandemia-aumento-da-violencia-contra-a-mulher-e-fenomeno-mundial.ghtml>, acesso em 07, mar. 2021.

5 Nota Técnica – Violência doméstica durante a pandemia de covid-19. Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com DECODE. Disponibilizado em 16, abr. 2020. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-v3.pdf>, acesso em 07, mar. 2021.

6 Brasil registrou 105 mil denúncias de violência contra a mulher em 2020; quase 300 por dia. O Globo. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/celina/brasil-registrou-105-mil-denuncias-de-violencia-contra-mulher-em-2020-quase-300-por-dia-24913830>, acesso em: 07, mar, 2021.

7 15ª edição do Dossiê Mulher. Instituto de Segurança Pública (ISP). Disponível em: < http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/DossieMulher2020.pdf?fbclid=IwAR3Nj29WHUKXv1Ppz_SDmWEisgXaqqHrtuYZU3oEGXQ-Q9liwq1U-E8NPts>. Acesso em 03, mar. 2021. p. 31

8 Atlas da violência 2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Orgs.). Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: < https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/downloads/6537-atlas2019.pdf >. 2019, p. 40.

9 Bolsonaro é alvo de ação por falar sobre mulheres. Portal Isto é. Disponível em: < https://istoe.com.br/bolsonaro-e-alvo-de-acao-por-falas-sobre-mulheres/>, acesso em: 08, mar. 2021.

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