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Por que Mira Schendel desafia a arte feita hoje

Por que Mira Schendel desafia a arte feita hoje

Por Bruno Yutaka Saito

Num cenário dominado por pautas biográficas, exposição “Toquinhos” renova a radicalidade dos vazios da artista morta em 1988

No contexto atual da arte brasileira, poucos artistas parecem tão misteriosos e radicais quanto Mira Schendel (1919-1988). Mesmo após 35 anos de sua morte, admiradores e críticos continuam sendo provocados por sua obra e ausência, como lembra a exposição em cartaz na galeria Galatea (r. Oscar Freire, 379), em São Paulo, que reúne 60 obras da série “Toquinhos” produzida entre 1972 e 1974, provenientes de uma coleção privada.

Mas não se trata do choque causado por representações literais do mundo, daqueles registrados num documentário como “Mapplethorpe: Olhe as Fotografias” (Sesc Digital), sobre o controverso fotógrafo americano morto em 1989 — recentemente o filme teve uma sessão presencial no CineSesc seguida de um debate com Lisette Lagnado, que também assina o texto crítico da exposição “Mira Schendel: Toquinhos”.

Mira incomoda porque levanta mais questões do que respostas numa época “maximalista” de poucas nuances onde tudo tem que ser muito literal. É como o silêncio numa conversa que pode constranger um ansioso interlocutor tagarela. Há, não apenas em seu trabalho, mas na sua persona pública, uma redução ao mínimo, ao essencial, a uma espécie de osso.

Mira Schendel

No plano visual, cada “Toquinho” consiste de um papel de arroz japonês onde são sobrepostos recortes geométricos de papel artesanal tingido (ou não) com ecoline e decalques de letraset com letras, sinais de pontuação e números. A maior parte da superfície é formada de grandes “vazios”, algo habitual em Mira.

Ela mesma não se dispunha a explicar significados e, em entrevistas, recorria à lógica do “a obra fala por si”, que na voz de artistas em geral soa apenas como afetação, mas no seu caso era expressão de uma personalidade avessa a um diálogo mais aberto com o mundo.

O tal do “grande público” costuma gostar de legendas. Nos anos 50 a 70, concretismo, neoconcretismo etc. podiam levantar problemáticas intrincadas, no entanto tais correntes eram linguagens artísticas vibrantes que tiveram entre outros efeitos colaterais uma perpetuação de certa noção estereotipada de que as artes moderna e contemporânea seriam, em geral, incompreensíveis e difíceis.

Em carta ao crítico inglês Guy Brett (1942-2021), Mira conta que lhe interessava nos desenhos de linhas quase se apagando ou desaparecendo do papel “o vazio, que não é símbolo de coisa alguma”. Ainda que Mira evitasse holofotes e não falasse sobre vida pessoal, a sua biografia fornece chaves de entendimento sobre a obra, de uma forma nada óbvia. Nascida na Suíça em uma família de origem judaica, ela viveu em diversos países (Suíça, Itália, Iugoslávia) e atravessou a Segunda Guerra, quando teve que escapar do nazismo. Chegou ao Brasil já aos 30 anos. Consta que só falava sobre os tempos difíceis quando questionada por amigos.

Como escreve o crítico Rodrigo Naves em “O filantropo” (Companhia das Letras), a vida de imigrante resultou em “uma superposição de sotaques e expressões que, com o passar do tempo, se cristalizou numa língua peculiar, que ela, então, manejava sem variações”. Se mais jovem Mira quis ser poeta, foi nas artes visuais que encontrou sua voz, inicialmente numa pintura que remetia às inquietações filosóficas e metafísicas das naturezas-mortas de Morandi. Depois, ao lidar com os signos linguísticos, definiu sua obra.

Como conta Naves, após a morte da artista, os trabalhos de Mira realizados nos anos 60 em papel-arroz eram ainda vendidos a US$ 100; por sua vez, hoje, cada “Toquinho” não sai por menos de US$ 50 mil. Tanto na megavalorização no mercado quanto na questão geracional, a exposição remete a outra mostra, “Hélio Oiticica: Mundo-Labirinto”, na Casa SP-Arte (al. Ministro Rocha Azevedo, 1.052).

Enquanto os “Parangolés” e os “Penetráveis” de Oiticica propunham uma forma alternativa de relação com as cores e o espaço, os “Toquinhos”, do modo como estão na Galatea, colocados um ao lado do outro em três paredes, propiciam ao visitante que se vê rodeado de obras também uma imersão num universo que contrasta com a inflação de ruídos, símbolos e imagens que poluem e podem causar sensações de sufocamento nas grandes cidades.

Cada arte conversa com seu tempo, e basta um rápido clique na programação de instituições culturais ou uma conferida na lista de artistas da próxima Bienal de SP, em setembro, para perceber que a agenda é decolonial, com amplo espaço para segmentos esquecidos ou marginalizados da sociedade. Não é novidade que a biografia de artistas se insira nas obras, mas, hoje, muitas vezes ela pode anteceder o trabalho, em políticas de inclusão — necessárias, vale dizer.

Falar de exposições como “Entre Nós”, na Pivô (av. Ipiranga, 200, Copan, bloco A, térreo), com trabalhos desenvolvidos nos últimos dez anos por artistas que receberam bolsa de fomento da revista “ZUM”, do Instituto Moreira Salles; ou a 27ª edição da Temporada de Projetos do Paço das Artes (r. Albuquerque Lins, 1.345), é falar de biografias de artistas.

Mesmo “Mira Schendel: Toquinhos” não fica imune a essa demanda. Em seu texto, Lagnado propõe um novo campo de análise, em conexão com demandas atuais: “Ainda há de ser escrito um ensaio que exponha a dificuldade de conseguir transitar de forma única entre a poesia concreta e a filosofia, arenas historicamente dominadas por homens. Nenhuma outra artista mulher de sua época impôs semelhante temor referencial”.

Goste-se ou não deste momento, em que arte e vida estão cada vez mais associados, mas de maneira distinta daquela dos anos 60, trata-se de um movimento mundial que já causa “mudanças estruturais” — uma expressão banalizada, mas de significado ainda essencial.

Publicado originalmente no Valor Econômico.

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