Tragédias têm o poder de nos colocar diante de escolhas como sociedade
Por Luiza Erundina e Guilherme Boulos
A pandemia do novo coronavírus está forçando muita gente a rever seus conceitos. A onda neoliberal impôs a “austeridade fiscal” como valor supremo e deprimiu o investimento público, que caiu de R$ 103 bilhões, em 2014, para R$ 40 bilhões em 2019. O teto de gastos agravou o problema, tirando R$ 9 bilhões do SUS só no ano passado. Agora, quando o mundo se depara com a maior crise desde a Segunda Guerra Mundial, essa “responsabilidade fiscal” fundamentalista mostra sua face: a irresponsabilidade social.
Como disse, dirigindo-se a grandes empresários, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele: “Vocês têm dinheiro para viver dez vidas. Mas agora, ao precisarem de um leito hospitalar e um respirador, de nada vai importar sua conta bancária”. Sartre afirmou certa vez que o homem estava “condenado” a ser livre. Hoje, podemos dizer que estamos “condenados” a ser solidários. Para sobreviver precisamos contar uns com os outros. É solidariedade ou morte. Há, na política e no empresariado, os que preferem ficar ao lado da morte.
O coronavírus começou no Brasil como doença de ricos e da classe média alta, de quem costuma viajar ao exterior. Lotou uma enfermaria no Hospital Albert Einstein. Mas sua propagação comunitária levou o vírus às periferias. Aí, amigos, é onde está o drama. “Lavem as mãos toda hora!”, orientam os médicos. E onde falta água? “Quarentena em casa para todos!” E quem não tem casa? Só em São Paulo são 25 mil pessoas morando nas ruas, e há outras milhares sem saneamento básico adequado. São elas que precisam da nossa ação de forma urgente.
O efeito econômico da pandemia sobre os mais pobres é devastador. Com o isolamento social, quem tem poupança e altos rendimentos pode se virar bem. Mas há 40 milhões de brasileiros na informalidade e no subemprego, que trabalham de dia para comprar o jantar. A quarentena é, sem dúvida, necessária sanitariamente, mas se os governos não tiverem compromisso social, a fome e a miséria farão novas vítimas.
Jair Bolsonaro é o pior exemplo. Nega sistematicamente a pandemia, taxando-a como uma “gripezinha”. Atrasou o combate e desinformou a população. Quando tomou medidas, tardias e insuficientes, incluiu a possibilidade de suspensão de contratos de trabalho por quatro meses, sem pagamento de salários. Teve que recuar horas depois ante um país indignado. Bolsonaro não é capaz de liderar o Brasil diante da crise. Tem que sair. Se ele já era um grave problema democrático, tornou-se agora um problema sanitário.
Defendemos medidas que salvem o povo, não as corporações ou os bancos. O PSOL e os movimentos sociais apresentaram um plano de emergência. É preciso revogar o infame teto de gastos para liberar investimentos na saúde; suspender as cobranças de água, luz, gás e aluguel durante a crise, como fez a França; impedir despejos e acolher a população de rua, como está fazendo a Alemanha; proibir demissões, com o governo arcando parte dos salários e ajudando pequenos e microempresários, como fizeram Reino Unido e Bélgica. É preciso ainda o pagamento imediato e sem burocracias da renda básica para todos os desempregados e trabalhadores informais, aprovada por iniciativa da oposição no Congresso.
Há também iniciativas da sociedade, como o Fundo de Solidariedade, criado pelo MTST, para distribuir álcool em gel, materiais de higiene e cestas básicas aos sem-teto e moradores das periferias.
O momento exige uma revolução solidária. As tragédias têm o poder de nos colocar diante de nossas escolhas como sociedade. Se o que vemos é apenas o horror do “cada um por si” e da falta de empatia, talvez seja uma grande oportunidade para rever nossos caminhos.
Que essa crise possa ao menos deixar o legado de novos valores. O legado solidário que reoriente profundamente a forma como organizamos nossa sociedade. Que a gravidade do momento inspire saídas ousadas, apontando um futuro em que a vida das pessoas tenha mais valor que os lucros dos bilionários.
Artigo publicado orginalmente na Folha de S.Paulo.
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