Por Gisele Ricobom e Lucas M. Aguiar
O isolamento social provocado pela covid-19 tem promovido mudanças radicais no comportamento cultural, econômico, social e até mesmo religioso da sociedade. Mas quais impactos da parada abrupta e sincronizada das relações de consumo ao meio ambiente?
A desaceleração das atividades econômicas reduziu para um quarto as emissões de poluentes em locais como Nova Iorque, China, Itália, Espanha e Reino Unido, nível semelhante ao das quedas provocadas pela crise econômica de 2008.
Entretanto, a crise global atual pode ser ainda mais duradoura, visto que novos surtos pandêmicos da doença podem voltar a ocorrer em curto espaço de tempo. A natureza da crise atual também é distinta, já que o distanciamento social deixou uma parte considerável da população humana isolada em seus domicílios, reduzindo não apenas a emissão de gases tóxicos como também a poluição sonora nas cidades.
Diante da retirada de cena das pessoas das ruas, dos céus, das fábricas e de todos os lugares onde os seres humanos imperam, uma outra parte invisibilizada do planeta parece se aproveitar. Um admirável mundo novo de céu azul e águas mais limpas remete a um pensamento idílico de como era ou poderia ser o mundo sem a humanidade.
Em plena luz do dia, tem sido registrado o aparecimento de fauna selvagem como peixes e cisnes nas águas agora límpidas de Veneza, patos e golfinhos em outras cidades italianas, javalis e pavões em Madri, puma em Santiago, milhares de tartarugas em praias da Índia e lobos-guará em Foz do Iguaçu e em Campo Grande.
Antes mesmo da pandemia, pesquisadores descobriram que animais selvagens de médio e grande porte, tais como elefantes, leopardos, ursos, alces, lontras e macacos, vêm utilizando o ambiente urbano para sobreviver em várias cidades ao redor do globo, aproveitando o silêncio e a menor circulação de pessoas no período da noite para buscar alimentos que já não encontram em razão da drástica redução dos seus espaços.
A crise do novo coronavírus produziu fenômeno semelhante, pois a fauna tem aparecido nas cidades em plena luz do dia, o que demonstra que os animais resistem e reaparecem quando a atividade exploratória humana recua. A quarentena simula os efeitos da redução da população humana e de seus distúrbios intensos, permitindo a fauna explorar as cidades também para as suas atividades diurnas. Ao longo prazo, poderia também aumentar a permeabilidade da matriz urbana para os animais se deslocarem entre hábitats, promovendo a conectividade de seus ambientes e do fluxo genético, imprescindíveis para a manutenção das populações selvagens.
Numa época em que a crise da biodiversidade é um dos componentes estruturais do paradigma capitalista, a observação temporária de que pelo menos parte da ostentosa fauna pode resistir aos distúrbios e retornar, ou seja, ser resiliente, é bastante animadora, mesmo que as exemplificações sejam pontuais.
Em ecologia, o conceito de resiliência diz respeito à capacidade de um ecossistema em tolerar distúrbios e persistir, sem mudar para um estado ambiental alternativo, que seria controlado por um grupo diferente de processos ecológicos, com drásticas mudanças para a sobrevivência. É também a capacidade da natureza de se restaurar, de retornar ao estado pré-distúrbio. Mas quais níveis de distúrbio um ecossistema pode absorver até perder totalmente a sua resiliência? Frente às pressões em escalas globais, como por exemplo às mudanças climáticas, quais as limitações da capacidade do ambiente para se recompor?
São questões ainda em aberto para a ecologia. Não obstante, a rápida resposta ambiental observada durante a atual pandemia parece jogar uma luz otimista sobre o tema: o sistema não colapsou e ainda há alguma resiliência útil na natureza.
Em evolução, um conceito em contraste ao de resiliência e que pode explicar parte do fenômeno aqui apontado é o de adaptação, que indica serem as mudanças biológicas ou culturais respostas às pressões do ambiente, permitindo assim a sobrevivência e reprodução das espécies de forma mais ajustada ao novo contexto.
Com os impactos ambientais da população humana se ampliando por todo o planeta, observam-se mudanças drásticas dos hábitats com redução e desestabilização dos sistemas, explodindo novas doenças, muitas delas virais, que saltam da fauna para as pessoas que se expõe à vida selvagem. Novas e perigosas doenças, tal como a gripe espanhola e a covid-19 que tiveram suas origens traçadas a partir de animais, são sinais de alerta para que o modo do uso da natureza seja revisto.
A humanidade parece estar agora comendo o planeta vivo de uma maneira não sustentável, destruindo o patrimônio natural com o objetivo de concentrar renda. É como se a cultura da sociedade atual ainda não estivesse adaptada, ou mesmo em desequilíbrio em relação ao planeta, tal como uma doença de extrema virulência que poderia matar o hospedeiro antes mesmo de se perpetuar.
Nesse sentido, a pandemia impõe um sério dilema: adaptar a cultura capitalista às necessidades vitais da natureza permitindo assim sua resiliência ou forçar a adaptação da natureza aos meios capitalistas de produção e consumo, colocando em risco a humanidade e o ambiente?
A primeira opção asseguraria uma natureza ainda rica, diversa, em funcionamento, com o bem-estar humano e não-humano, ambos importantes, pois a saúde silvestre deve ser uma preocupação fundamental na conservação, visto estar ligada à saúde das pessoas. Portanto, a estratégia de adaptação cultural para a resiliência da natureza produziria uma relação de coexistência com ganhos mútuos, permanentes e planetários.
A segunda opção está vertiginosamente em andamento e as consequências estão sendo letais para a humanidade. Seguir ajustando a natureza ao mercado e, a própria reificação da natureza, torna a biodiversidade e os ambientes pobres, já que as atividades humanas exploratórias tendem a usurpar recursos e extinguir as espécies, simplificando e empobrecendo o ambiente.
A natureza unilateralmente adaptada ao consumo será mais desértica do que exuberante e de difícil recuperação. Portanto, a estratégia de adaptação da natureza à resiliência do capitalismo produziria uma relação de mais pobreza, desigualdade, doenças e extinções de espécies. Uma tragédia mútua e sem volta.
Hoje em meio à crise, isolados em casa, as pessoas diminuíram o consumo e levam uma vida relativamente mais simples. Felizmente, filósofos e jornalistas também têm identificado uma retomada pelo gosto da informação científica em detrimento das informações superficiais e fake news comuns nas redes sociais.
Tal lógica da diminuição da atividade econômica pode significar novos parâmetros de coexistência com o mundo natural. A sobrevivência da humanidade vai depender doravante de uma visão de mundo readaptada, em que a natureza tenha um valor qualitativo para manutenção da vida na Terra e deixe de ser apenas um objeto quantificável, sujeito de apropriação desigual pelos indivíduos.
A crise da biodiversidade é também uma tragédia humana. É necessário abandonar os signos de esgotamento da modernidade e estabelecer outra forma de relação mais cooperativa com o resto do mundo natural. Mudar em prol da natureza também é mudar para uma humanidade mais resiliente.
Artigo publicado na Carta Maior.
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