Por Rose Dayanne Brito
Na pandemia do Covid-19, uma das palavras que mais circulam em nível nacional e internacional é o termo solidariedade. Quais os pilares históricos deste conceito? Trata-se de um conceito jurídico? Ou da seara moral?
O presente texto poderia seguir as implicações filosóficas apontadas na Metafísica dos Costumes. Em que a razão humana aparece como fundamento de validade do direito e o dever como estímulo ético para realização de uma ação moral. Nessa direção, as respostas viriam através de fórmulas e diferenças entre legalidade e moralidade, entre o agir em conformidade com o dever e o agir por dever. O recado principal que se extrai da filosofia de Kant para o tempo presente é a dimensão universal do dever no âmbito da moral, da política e do direito cuja mediação entre essas três esferas distintas articula as condições da vida em sociedade. Para Kant, na modernidade, o indivíduo pode ser autônomo e livre distanciando-se de aspectos patológicos sob forma do cumprimento de imperativos morais.
Por sua vez, Adam Smith explica a partir da experiência que na sociedade moderna o egoísmo tem um papel central. Diz ele: “não é a bondade do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração em que eles têm o seu próprio interesse. Apelamos não para a sua humanidade, mas para o seu egoísmo, e nunca lhes falamos das nossas necessidades, mas das vantagens deles.”[2] Essa frase está em plena sintonia com o nosso dia-a-dia na sociedade capitalista. Isso ficou mais explícito durante a pandemia do Covid-19. O que nos conforta em esperar a comida usando um aplicativo de entrega é a bondade do sistema? Antes, os motoboys eram vistos como a escória do trânsito, culpados pelos altos índices de acidente nas estradas e pelo congestionamento, hoje são heróis nacionais que estão na linha de frente da pandemia. Apesar de tudo: das precárias condições de trabalho, do aumento das horas trabalhadas e da diminuição da remuneração recebida, conforme demonstra pesquisa[3] recente.
A pandemia expôs a teia do capital, um verdadeiro enxame de interesses individualistas e egoístas. Mas que desse conjunto de “interesses individuais, emerge pão, cerveja, bife, remédios, estradas, universidades. Riqueza, enfim – porque riqueza não é dinheiro, é a produção de coisas que podem ser compradas com dinheiro: alimento, educação, anos a mais de vida.”[4] Antes do Coronavírus, algum de nós havia se preocupado com a saúde do trabalhador do IFood, Uber Eats, Rappi e Loggi? Eles eram transportadores das nossas vontades mais banais como uma pizza no sábado à noite; agora os motoboys compartilham da nossa existência diária com alimentos essenciais, novos hábitos de consumo[5] e até nossos desejos. E sabemos que “a vontade está sob comando, porém o desejo pede muito mais do que a vontade quer. O desejo pede sempre o impossível e por isso nada o esgota.”[6]
O vírus mostrou que somos seres regidos por interesses egoístas ou indivíduos autônomos e morais no sentido kantiano? O número crescente de violência doméstica no Brasil, a inovação jurídica do divórcio online e o aumento do trabalho infantil são dados que já falam por si só. “De acordo o Google Brasil, entre os dias 13 e 29 de abril, houve um salto de 9900% no interesse na busca pelo termo “divórcio online gratuito”. No levantamento, que abrange todo o país, só a pergunta “como dar entrada em um divórcio” registrou crescimento de 82%. E isso não é algo particular ao Brasil, pois “de acordo com o jornal chinês The Global Times, a cidade de Xiam registrou um número recorde de pedidos de divórcio durante as semanas de isolamento social no país.”[7]
A relação com os outros passou a ser um desafio não só da esfera pública, mas também nas relações privadas. Por isso, a importância da filosofia prática de Kant que engloba moral, direito e política. Se “Kant jamais abre mão da prioridade dada ao altruísmo e à restrição ao egoísmo. Em contrapartida, em Smith se destaca a afirmação da absoluta prevalência do egoísmo privado.”[8] No cenário brasileiro, a situação é ainda mais grave, pois a violência e o egoísmo não estão restritos aos lares privados, mas se transformou na própria ação do Estado. É o que se verifica nos atos contínuos dos agentes políticos. Em meio ao recorde de mortes por coronavírus no Brasil, o presidente da República se reporta ao fato com total indiferença “E daí?” e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que tem o papel institucional de garantir a preservação do meio ambiente, em uma reunião ministerial destinada a falar sobre o Covid-19, enseja uma “oportunidade de passar reformas infralegais de desregulamentação”.
Conforme se verifica, os perigos do egoísmo não estão presentes apenas nas ações individuais, mas, sobretudo, quando se transforma na razão de ser do Estado. “E isto é ainda mais fundamental se levarmos em consideração a afirmação do historiador alemão Reinhart Koselleck, de que uma das principais características do Estado moderno em seu processo de formação foi a de se arrogar o monopólio da dominação do futuro. Um Estado, como o atual Estado brasileiro, que abre mão de planejar o futuro, desta forma, abre mão de uma das características fundamentais da sua própria estatalidade.”[9]
No Brasil, a população além do vírus tem que combater o fascismo que tomou a forma de Estado. Se “toda ascensão do fascismo é o testemunho de uma revolução fracassada”, conforme dizia Walter Benjamin, o Brasil precisa se encontrar com seu passado. No filme Torre das donzelas, fica explícito que a vitória da ditadura no Brasil foi o silêncio. E esse silêncio persiste. Em sessão solene na Câmara dos Deputados, transmitida em rede nacional, um deputado elogia os atos de violência de um torturador, que é crime de lesa-humanidade, crime imprescritível e essa pessoa está na presidência da República[10] e continua a agir de forma antidemocrática: instigando apoiadores a saírem nas ruas em defesa da intervenção militar em meio à crise de saúde global. Como esses atos podem coexistir com a moral, o direito e a política? A história mostrou que todo regime autoritário teve seu jurista de estimação, na Itália de Mussolini, Santi Romano, na Alemanha nazista Carl Schmitt, no Estado Novo, Francisco Campos que, inclusive, era filiado ao Partido Fascista Brasileiro. Na atual conjuntura do Brasil não faltam candidatos para ocupar este cargo.
Não precisa ter formação jurídica para perceber as contínuas violações do Governo Brasileiro contra seu próprio povo. Uma rotina de atos contrários à moral, à política e ao direito e “para qualquer cidadão não basta saber que o direito manda; eles se perguntam se o que o direito exige é justo.”[11] Essas violações também se refletem nas ações externas, basta lembrar que o Governo brasileiro negou ajuda a vários países latino-americanos para retirar cidadãos de Wuhan, epicentro da pandemia do Covid-19. Os pedidos foram negados porque não havia alinhamento ideológico com o Governo da Bolívia, Costa Rica, Argentina, Colômbia, Panamá e Cabo Verde. Era preciso lembrar ao Chefe do Executivo que as relações internacionais do Brasil regem-se pela cooperação entre os povos e pela integração dos povos da América Latina (art. 4, IX e parágrafo único, Constituição Federal de 1988). Isso revela o abismo que existe entre o texto normativo e a realidade.
No mesmo aspecto, pode-se mencionar o art. 3, inciso I, da Constituição que dispõe entre os objetivos fundamentais da República do Brasil a construção de uma sociedade solidária. Como entender essa ambigüidade no contexto atual? A solidariedade deixou de ser um princípio moral para se tornar uma referência jurídica. A construção da solidariedade como norma deve ser considerada na perspectiva de acesso aos direitos sociais, de garantia de uma existência digna e da responsabilidade do Estado, conforme disciplina a Carta de Direitos fundamentais da União Européia[12].
Para o jurista italiano Stefano Rodotà, a solidariedade nasce como conceito estruturado para representar um novo vínculo social e político na modernidade. Como uma possibilidade de radicalizar a República, de dar uma nova legitimidade de conferir, portanto, raízes profundas. Se os atos de solidariedade auferem o quão democrático é um país, isso retrata a decadência moral, jurídica e política do atual Governo brasileiro. A solidariedade como construção democrática se relaciona com o seu tempo histórico. O Brasil precisa se encontrar com seu passado futuro presente. Henrik Ibsen dizia que liberdade, igualdade e fraternidade não são as mesmas coisas que eram no tempo da guilhotina. A solidariedade também não é a mesma nos tempos difíceis que atravessa o Brasil. Ela precisa sair dos quadros televisivos e ganhar a cena política. É preciso destituir o inimigo do povo.
O Covid-19 desvelou as violências que ocorrem cotidianamente nas relações afetivas, nas relações sociais e nas relações políticas. Expôs a luta de classes em todas as esferas da vida, basta pensar na situação dos doentes pobres, dos trabalhadores pobres, dos estudantes pobres, sem falar dos desempregados, marginalizados e os invisíveis sociais. O capitalismo naturaliza a barbárie. “Podemos facilmente imaginar um burocrata perguntando a um trabalhador: ‘Por que você pensa que é explorado’ E o trabalhador respondendo: ‘Por dois motivos. Primeiro, quando trabalho, o capitalista se apropria de minha mais-valia.’‘Mas agora você está desempregado, ninguém está se apropriando de sua mais valia porque você não cria nenhuma!’ Tudo gira em torno do fato de que a totalidade da produção capitalista não apenas precisa de trabalhadores, mas também produz o ‘exército de reserva’ daqueles que não conseguem trabalho: estes não estão simplesmente fora da circulação do capital, eles são ativamente produzidos como não trabalhadores por essa mesma circulação.”[13]
O sistema capitalista produz suas contradições. A quarentena serviu para muitos fazerem cursos ou para aperfeiçoarem a mão de obra pensando no mercado de trabalho pós-Covid-19, mesmo sem saber se conseguiriam permanecer vivos durante a pandemia. Por outro lado, as pessoas que passaram a exercer suas atividades no regime de teletrabalho perceberam que trabalham mais em casa do que no local de trabalho e que as ferramentas tecnológicas também escravizam. Sem falar, nos trabalhadores informais, que não tiveram alternativas senão expropriar sua força de trabalho realizando “bicos” sem qualquer proteção sanitária e jurídica. No documentário American Factory, o presidente da empresa chinesa Fuyao sintetiza que “a vida é o trabalho”, mas mesmo na iminência da morte estamos presos ao trabalho alienado, precarizado, que nos rouba a subjetividade. Parece que “a concepção do homem neoliberal implica o reconhecimento, como pressuposto da sociabilidade, de um viver na incerteza, sob risco permanente. Lourence Parisot, líder do patronato francês, diria de maneira mais direta: “A vida, a saúde e o amor são precários, por que o trabalho escaparia dessa lei?”[14]
Para Rodotà a experiência histórica mostra que se tornaram difíceis os tempos para a solidariedade e para a democracia. Com referência a frase proferida em 1916 por Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie” acrescenta a afirmação “solidariedade ou barbárie”. O vírus mostrou a dominação do capital, mas também mostrou resistências. A luta por melhores condições de trabalho, a exemplo do buzinaço dos motoboys de São Paulo, os panelaços em todo o país em protesto aos atos do Presidente da República e seu desgoverno, a passeata em Recife com cerca de 8.000 pessoas se manifestando contra a morte brutal do menino Miguel e os médicos que passaram a arriscar, a cada segundo, suas próprias vidas. De fato, a solidariedade pode ser um antídoto contra a fragmentação social, como afirmava o jurista italiano, uma utopia necessária.
Estamos diante de práticas autoritárias no Brasil devemos, portanto, como diria Kant despertar do sono e agir. O país parece está vivenciando a cena final do novo filme do Costa-Gavras[15]. Em meio à crise parece não haver saída. O perigo nos ronda e faz ameaça. Se em uma reunião oficial, o Ministro da Educação chama os “ministros do STF de vagabundos” e sugere colocá-los na cadeia, o que ele pensa sobre os mais de 70% que desaprovam o Governo? É preciso recordar que o antifascismo também tem história no Brasil. “Não é uma invenção de hoje, nem sequer dessa década. Sua origem “espiritual” se deu na famosa Batalha da Praça da Sé, conhecida também como “revoada dos galinhas verdes”, quando os integralistas foram expulsos (na verdade saíram correndo e chorando, como várias testemunhas da época demonstram) em 1934 da Praça da Sé onde queriam fazer um comício fascista.”[16] O ar pode estar pesado como chumbo no Brasil, mas como diria Nazim Hikmet, trata-se de não entregar os pontos.
[1] Doutoranda em Direito pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata, Itália. Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Foi professora substituta de Direito do Trabalho na Universidade Federal de Pernambuco (2018/2019). É parecerista de várias Revistas científicas da área jurídica e pesquisadora do Grupo de Estudo internacional Relações de Trabalho e Sociedade (Universidade de Coimbra) e G-Teia no Brasil. Email: [email protected]
[2] SMITH, A. A Riqueza das Nações: Investigação Sobre sua Natureza e suas Causas. São Paulo: Abril Cultural, V.1, 1982, p. 94.
[3] ABÍLIO, Ludmila Costhek; ALMEIDA, Paulo Freitas; AMORIM, Henrique; CARDOSO, Ana Claudia Moreira; FONSECA, Vanessa Patriota da; KALIL, Renan Bernardi; MACHADO, Sidnei. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, EDIÇÃO ESPECIAL – DOSSIÊ COVID-19, p. 1-21, 2020.
[4] O Gene Egoísta. Disponível: https://super.abril.com.br/ideias/o-gene-egoista/
[5] Hábito de consumo adquirido na pandemia deve permanecer após covid-19. Disponível: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-05/habito-de-consumo-adquirido-na-pandemia-deve-permanecer-pos-covid-19
[6] Não cedas do teu desejo: é preciso sustentarmos o que falamos com voz própria. Disponível: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/2595-mario-fleig-4
[7] Covid-19: Procura por divórcio no Brasil aumenta devido a isolamento social. Disponível: http://www.jornaldafranca.com.br/covid-19-procura-por-divorcio-no-brasil-aumenta-devido-a-isolamento-social
[8] O indivíduo autônomo de Kant: um ideal ainda esperado. Disponível: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/4946-mario-fleig-11
[9] O papel do Direito econômico diante da crise da Covid-19. Disponível: https://www.conjur.com.br/2020-jun-07/estado-economia-papel-direito-economico-diante-crise-covid-19
[10] Torre das Donzelas: Resiliência feminina em tempos de repressão da ditadura https://www.brasildefators.com.br/2019/10/28/torre-das-donzelas-resiliencia-feminina-em-tempos-de-repressao-da-ditadura
[11] HERRERO, F. J., Moral, Direito e Política, In: Alexandre Travessoni, Kant e o direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009, p. 616.
[12] RODOTÀ, S. Solidarietà. Um’utopia necessária. Editora Laterza, 2014, p. 16.
[13] ŽIŽEK, S, Problema no paraíso: do fim da história ao fim do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 43.
[14] ANDRADE, E. G. L.; LIRA, F. B. O diálogo do direito do trabalho com a teoria organizacional: a crítica do trabalho subordinado na crítica filosófica da modernidade. Revista da Faculdade de Direito – Universidade Federal de Minas Gerais, 2020, p. 215-216.
[15] Adults in the Room. Tradução: Comportem-se como Adultos. FRA/GRE, 2019.
[16] HANSEN, T. Antifascismo no Brasil: terrorismo?, 2/6/2020.
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