A maioria das disputas societárias empresariais ocorre em uma esfera de atenção restrita, envolvendo apenas as partes, julgadores e advogados. Algumas despertam interesses setoriais, e uns poucos casos merecem destaque amplo no noticiário econômico. Mas, em raríssimas ocasiões, as diferenças entre duas empresas extrapolam seus próprios limites e tornam-se questões maiores, de verdadeiro interesse público. Parece que esse é o ponto em que chegamos na esteira da longa controvérsia entre a multinacional Paper Excellence e a brasileira J&F. Mais do que uma discussão sobre interesses particulares, essa contenda tem muito a revelar sobre a imagem e, não seria exagero dizer, sobre o futuro do Brasil.
Quando o processo de discussão de conflitos segue os princípios legais, com celeridade e transparência, segundo um roteiro relativamente previsível, temos o que se chama de segurança jurídica. A expressão parece um pouco desgastada pelo uso abusivo, mas pode ser traduzida de forma concreta: países que oferecem mais segurança jurídica são considerados mais propícios ao crescimento de empresas, à atração de investimentos internos e externos, à geração de renda e à produção de riquezas. Por essa razão, os novos rumos do litígio entre a Paper e a J&F vêm despertando tanta preocupação.
Em 2017, a Paper Excellence fez um investimento de 15 bilhões de reais para comprar da J&F a Eldorado Brasil, uma das maiores produtoras de papel e celulose do país. A J&F se arrependeu do negócio, criou empecilhos para finalizar a operação, e o caso foi levado à arbitragem pela ICC Brasil (International Chamber of Commerce Brasil), como previa o contrato. Por um placar unânime de 3 a 0, a Paper teve seu direito reconhecido, e a J&F foi obrigada a concluir o negócio e entregar o controle da Eldorado para a Paper. Insatisfeita, a J&F foi à Justiça para tentar anular a arbitragem e perdeu na primeira instância. A empresa recorreu e sofreu novos reveses na segunda instância, no Tribunal de Justiça de São Paulo. Desde então, abriu várias frentes de batalha na tentativa de anular a arbitragem que a obriga a concluir a transação.
Uma dessas frentes se desenvolve em torno de uma tese ousada e perigosa, relacionada às restrições para aquisição de terras rurais no Brasil por empresas estrangeiras. A Paper Excellence comprou da J&F uma fábrica, a Eldorado Brasil. Na verdade, um grande complexo industrial que inclui um terminal portuário, estrutura logística e escritórios de representação internacional. Além de tudo isso, a Eldorado também é proprietária de uma fração de terras, parte delas os próprios terrenos onde estão instaladas a fábrica e um viveiro de mudas, que ficam em uma área urbana, no município de Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. Isso totaliza cerca de 14 mil hectares, que não representam 0,6% dos 15 bilhões de reais negociados pelas ações da companhia.
A J&F viu aí, nesse pequeno pedaço de chão, uma possibilidade para tentar mais uma vez anular o negócio. Segundo argumenta a empresa, a Lei 5.709 de 1971 obrigaria companhias estrangeiras a pedir autorização do Congresso Nacional para adquirir grandes extensões de áreas agrícolas no Brasil. A Paper não pediu, porque comprou ações de uma empresa e não lotes agrícolas. Mas a J&F insiste que a venda da Eldorado precisa ser anulada por desrespeito à Lei de Terras.
Armado dessa tese, o prefeito de uma cidade no interior de Santa Catarina entrou com uma Ação Popular para barrar a venda da Eldorado para a Paper, alegando descumprimento do rito estabelecido na Lei de Terras. Assim, abriu-se uma discussão jurídica paralela, que vem sendo seguida de perto por empresários e investidores de várias áreas, uma vez que o resultado do caso pode afetar negócios celebrados por empresas de diferentes setores, como agricultura, mineração e energia.
No campo estritamente legal, há uma argumentação jurídica sólida no sentido de que a nulidade prevista no artigo 15 da Lei 5.709 não se aplica a terrenos recebidos em transações societárias envolvendo empresas estrangeiras, como a Paper. Reiterando: a Paper Excellence comprou uma fábrica para produzir papel e celulose e não uma gleba de terras. Aliás, a Paper opera 58 fábricas no Canadá, França, Estados Unidos e Brasil. Somente fábricas. Em nenhum desses lugares explora terras agrícolas.
E um detalhe: para dirimir qualquer dúvida, a Paper já assumiu oficialmente o compromisso de se desfazer de qualquer porção de terras envolvida no negócio da Eldorado. Ou seja, em um ambiente diferente, a questão das terras já estaria resolvida pela falta de objeto.
Mas, em que pesem as possíveis interpretações jurídicas, também é preciso considerar os fatos. Da promulgação da Lei de Terras em 1971 até hoje, o Brasil se transformou de um país agrícola em uma potência agroindustrial, e o investimento estrangeiro participou da construção desse grande salto. Um estudo da LCA Consultoria¹, revelado pela Folha de S.Paulo, aponta que empresas estrangeiras possuem 3,33 milhões de hectares de terras no Brasil. A propósito, não há notícia de que o Congresso Nacional tenha recebido qualquer pedido de autorização para compra de terras por empresas estrangeiras.
Recentemente, o caso chegou ao gabinete do ministro Kassio Marques Nunes, do Supremo Tribunal Federal, que marcou uma audiência de conciliação entre a Paper Excellence e a J&F para o dia 18 de novembro. O caso da Eldorado exige do Poder Judiciário uma atuação firme para impedir a instrumentalização de leis, garantir o cumprimento dos contratos e promover o ambiente de negócios no Brasil. Mais do que resolver o conflito entre as partes, o desfecho dessa história interessa ao Brasil.
¹https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/07/terras-brasileiras-em-maos-estrangeiras-superam-o-registrado-pelo-incra-mostra-estudo.shtml
Artigo publicado originalmente na Análise Editorial.
1 Comentario
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Paulo Roberto
01/11/2024, 14:04Boa tarde dr. Marco Aurélio
ResponderAqui Paulo Roberto, aposentado, tenho 70 ANOS, acompanho o seu trabalho nas redes sociais, o meu pedido seria uma orientação jurídica, tive a minha aposentadoria bloqueada em 50% ganho 5.600,00 . Sei que não tenho condições de contratar o seu serviço, gostaria de uma orientação ou indicação de advogado especialista. Obrigado, desculpa por ter mandado esse problema. Posso explicar esta situação em uma oportunidade .