Por Alma Preta e Gama Revista
A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Isso significa que mais de 23 mil pessoas negras de 15 a 29 anos são assassinadas por ano no país. Os dados são do Mapa da Violência, produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.
A chance de uma pessoa negra ser morta de maneira violenta no Brasil é três vezes maior do que a de uma pessoa não-negra, segundo o Anuário 2020 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com o documento, pessoas negras somam 75% das vítimas de violência letal no país.
Conheça as histórias
ROGÉRIO FERREIRA DA SILVA JÚNIOR, 19
— São Paulo (SP)
O rapaz que sonhava em ter uma barbearia foi morto com dois tiros no dia de seu aniversário
Desde criança, Rogério Ferreira da Silva Júnior carregava um sorriso no rosto. Nascido em Alagoas, perdeu o pai com apenas dois meses de vida e rumou para São Paulo com a mãe, Roseane da Silva Ribeiro, quando ainda era bebê. “Ele era muito meigo e alegre, não discutia com ninguém e nem se envolvia em brigas. Nunca levantou a voz para mim”, conta dona Rose.
Rogério começou a trabalhar aos 13 anos, entregando marmitex de bicicleta pelo Parque Bristol, na Zona Sul da capital paulista, onde morava com a mãe e os irmãos. Aos 15, passou a entregar pizzas e lanches. Foi nessa idade que a paixão por motos surgiu e que ele ganhou de dona Rose sua primeira moto, uma Pop 100. “Moto era a paixão dele, sua assinatura era RP100, Rogério Pop 100”, a mãe recorda.
Seu outro amor era a barbearia. Sonhava em estudar para ser cabeleireiro nos Estados Unidos, com o profissional Eduardo Muller. Rogério já tinha feito um curso com ele no Brasil e almejava especializar-se para abrir um salão. Ele cresceu vendo a mãe cuidar de cabelos, e Dona Rose acredita tê-lo influenciado.
Depois do trabalho como ajudante geral em uma empresa de material de limpeza, do fim da tarde até à noite, fazia os cortes em alguns clientes e gostava de bater papo no portão com colegas. “Nunca até tarde”, pontua dona Rose, “pois era responsável com seu compromisso de acordar cedo no dia seguinte”. Com o salário, pagava o carro que tinha acabado de comprar, uma conquista.
Rogério tinha todos os motivos para comemorar o aniversário de 19 anos. Não deixava nenhum passar em branco: sempre celebrava com a irmã e com os amigos. Neste ano, no dia 9 de agosto, foi acordado pela mãe com um bolo, falou que a amava e saiu para dar voltas de moto, como sempre fazia.
Na tarde de seu aniversário, Rogério foi abordado por policiais. Quando parou a moto, recebeu dois tiros nas costas. Os dois policiais alegam ter suspeitado que o jovem estaria portando uma arma na cintura; depois de atirarem, perceberam que ele não estava armado. Dona Rose e testemunhas afirmam que os policiais não permitiram que o socorro fosse prestado. Somente após 40 minutos, os amigos puderam levar Rogério para o hospital, mas já era tarde.
(Aline de Campos)
CARLOS HENRIQUE SANTOS DO NASCIMENTO, 17
— Belford Roxo (RJ)
O jovem venceu a depressão, mas não teve tempo de comemorar
Carlos Henrique Santos do Nascimento estava próximo de completar a tão esperada maioridade. No dia 12 de dezembro de 2020 faria 18 anos e a mãe, Elizabeth Santos, já havia adiantado o presente: uma sonhada moto, que levaria o garoto para passear por Belford Roxo (RJ), na Baixada Fluminense, onde ele nasceu e cresceu.
O ir e vir do Carlos era um bom sinal para a mãe, já que nos últimos anos o garoto havia passado por uma depressão profunda que o impedia de sair do próprio quarto. Apesar da doença e da introversão natural do menino que não tinha muitos amigos, Carlos era carinhoso, gostava de ver a mãe feliz. Juntos, dividiam a casa, as conversas e as tardes comendo lanche. “Quando a situação ficava difícil, meu filho me dizia: chora não, a gente vai vencer”, lembra Elizabeth.
Carlos tinha essa convicção e muitos sonhos. Apaixonado por videogames, queria estudar computação, mas também pensava em servir o quartel e ser paraquedista. “O sonho dele era crescer, ser empresário. Ele queria sair da Baixada e melhorar a nossa condição de vida”, conta a mãe. Mas esses objetivos foram interrompidos.
Na tarde do dia 13 de julho deste ano, Carlos disse à Elizabeth que ia encontrar um colega no bairro Lote XV, a cerca de quatro quilômetros de sua casa. Com sua moto novinha, saiu sem jaqueta, sem o documento da moto e sem a chave de casa, dando a entender que seria rápido — mas não voltou. Às 18h, a mãe já estava preocupada. “Meu filho não era de sair, principalmente à noite. Ele tinha medo, porque já tinha apanhado de policial várias vezes.” Sobre a violência, ela justifica: seu filho era preto e tinha tatuagens. “Achavam que ele era bandido.”
Elizabeth só achou o corpo do filho duas semanas depois. No dia 28 de julho, no IML do Rio, a mãe o reconheceu justamente pelas tatuagens. O corpo havia sido encontrado com dois tiros (um na nuca e outro no abdome) na Ilha do Governador (RJ), a uma distância de quase 30 quilômetros de onde o menino foi visto pela última vez. Elizabeth pediu informação no Lote XV, mas os policiais disseram que não houve confronto ou tiroteio naquele dia. Até hoje, três meses depois, não se sabe o que aconteceu.
(Beatriz Mazzei)
GUILHERME DA SILVA GUEDES, 15
— São Paulo (SP)
Sequestrado por dois policiais militares, o jovem não pôde viver o sonho de dar uma casa própria para a mãe
Sorridente e carinhoso, Guilherme viveu toda sua infância na Vila Clara, Zona Sul de São Paulo (SP). Ali, empinou pipa, jogou bola, fez muitos amigos e recebeu o amor das tias, dos primos e da avó, dona Antônia, apaixonada pelo neto. “Onde o Guilherme passava ele fazia amigos. Era um menino muito querido e tinha um coração muito bom”, conta sua mãe, Joice Silva.
Ela diz que o filho cuidava não só dos irmãos mais novos, mas dela também, ajudando-a em casa e no trabalho depois da escola. Quando Joice começou a vender marmitex no bairro, Guilherme entrou para o negócio fazendo as entregas. Seguindo os passos do avô pedreiro, também aprendeu a construir. Desde cedo, já sabia subir paredes. Assim, tijolo por tijolo, o menino com senso de responsabilidade de adulto seguia a vida com muita fé em prosperar. “O grande sonho dele era me dar uma casa própria”, compartilha Joice.
Guilherme quase pôde viver esse sonho, mas teve a vida interrompida. Na noite do último 13 de junho, foi sequestrado na porta da casa de sua avó. Mais tarde, imagens de uma câmera de segurança mostraram Guilherme no galpão da empresa Globalsan, a menos de um quilômetro de onde foi visto por sua família pela última vez. Segundo a Polícia Civil e o Ministério Público de São Paulo, o jovem foi torturado e executado pelos seguranças do local, dois policiais militares que buscavam se vingar de um assalto — no qual Guilherme não estava envolvido.
Os PMs eram Adriano Fernandes de Campos, que foi preso, e Gilberto Eric Rodrigues, foragido desde 2015, quando foi detido por uma chacina que provocou a morte de sete pessoas na Zona Sul de São Paulo e fugiu. De acordo com uma reportagem da UOL, Rodrigues, investigado por outras 49 mortes ocorridas entre 2012 e 2013, usava o codinome de Roberto e trabalhava para Campos.
Após dois dias de busca, o corpo de Guilherme, marcado por dois tiros fatais, foi encontrado em Diadema, município vizinho ao bairro da Vila Clara. Desde então, a mãe e os irmãos se reúnem mensalmente com amigos e outros familiares para pedir por paz e justiça nas mesmas ruas em que o garoto viveu seus últimos dias.
(Beatriz Mazzei)
MICAEL SILVA SANTOS MENEZES, 11
— Salvador (BA)
Caçula de seis irmãos, o menino Micael era a alegria da família
Nascido em 20 de setembro de 2008, Micael Silva Santos Menezes era o chamego da família. Apesar de ser o caçula, era muito atencioso e preocupado com a saúde da mãe. Sensitivo, indagava: “Mãe, tá calada hoje, tá sentindo alguma coisa?”. Sexto sentido. Era um menino de fé. Sua família o levava para a igreja e ele gostava muito de cantar no coral. Aliás, de tudo que envolvia arte Micael gostava.
Seu principal hobby era dançar. A qualquer música que tocava, estava Micael se balançando. A família morria de rir, pois, mirradinho, o menino se divertia e fazia graça a todo momento. Também gostava de tirar foto e gravar vídeo. Era muito querido — na rua; no bairro da Santa Cruz, em Salvador (BA); no Colégio Teodoro Sampaio — e muito apegado à mãe, Joselita Santos, que o acompanhava religiosamente em todos os seus passos. Até aula com ele ela assistiu, quando começou a observar que o filho apresentava sinais de hiperatividade. Micael ia para a psicóloga que a mãe articulou, mas aí veio a pandemia e resolveram esperar.
Enquanto assistia a novela, Dona Joselita deixava seu celular com o filho — que brincava com jogos de carrinho, seus favoritos. Gostava de pilotar. Dona Joselita e o pai, Maurício Menezes, fizeram um esforço e lhe compraram um aviãozinho com controle remoto. Era seu brinquedo preferido, mas nos últimos tempos estava sem pilha. Seu Maurício estava para consertar, mas não deu tempo.
Micael foi baleado ao meio-dia de um domingo: 14 de junho de 2020. O autor do disparo, um policial militar, alegou bala perdida, mas as estatísticas mostram que ela tinha endereço.
Naquele dia, Micael acordou e pediu café e pão para sua mãe, como de costume — ele amava merendar e era bom de boca, “Mainha, tem o que para comer hoje?”. Pediu para seu pai amarrar as pipas: seu Maurício fez quatro. Ele estava contente. Os relatos de quem o viu na rua, brincando em praça pública, eram de alegria. Procurando graça como sempre. Vai demorar para a Santa Cruz voltar a sorrir como naquele dia, em que o último som foi a voz de Micael, já baleado: “não me deixem morrer”.
(Bruna Rocha)
MIGUEL OTÁVIO SANTANA DA SILVA, 5
— Recife (PE)
O menino Miguel ficou conhecido pela tragédia de ter caído de um prédio de luxo, mas a família quer que ele seja lembrado pela sua alegria
Miguel Otávio Santana da Silva era um menino alegre, carinhoso, que gostava de falar com os garis quando passavam na rua. Chamava-os de “amigo” e perguntava se eles estavam bem. Dizia à mãe, Mirtes Renata, que quando crescesse queria ser gari, jogador de futebol ou policial. A cabeça era cheia de sonhos… Mas a mãe pensava em outras profissões para o filho. “Eu queria mesmo que ele fosse médico ou advogado, que fizesse algo de bom para as pessoas, que ajudasse as pessoas”, comenta ela.
Miguelzinho, como era chamado na vizinhança, estudava no Jardim II e a família já se preparava para a festa de formatura do ensino infantil. Era um menino grande para idade e “já nasceu lindo; minha barriga ficou enorme e até perguntavam se eram gêmeos”, como Mirtes gosta de lembrar. Ele sempre foi amado. Morava com a mãe e com a avó, Marta, que há seis anos trabalhava na casa da família de Sari Côrte Real. Mirtes começou a trabalhar lá há quatro anos.
Em meio à pandemia de covid-19, Mirtes não conseguiu ser dispensada do trabalho. No dia 2 de junho passado, enquanto ela passeava com os cachorros da patroa, Miguel ficou no apartamento com Sari, que recebia os serviços de uma manicure. Foi uma saída rápida. Mas o menino sentiu falta da mãe. Os detalhes desse dia tomaram conta das manchetes de jornais do Brasil e até de fora do país: Miguel caiu do nono andar de um prédio em Recife (PE).
O menino alegre, carinhoso, teimoso, que carregava não só os seus sonhos na cabeça, mas também os de toda a sua família; o neto de Marta; o filho único de Mirtes foi deixado sozinho no elevador. Aos cinco anos de idade, Miguel morreu. Mas Mirtes não quer que ele seja lembrado pela tragédia; quer que olhem as fotos do menino sorrindo e que essa seja a imagem na memória de quem falar o seu nome. “Era uma criança feliz, tinha muito futuro pela frente, que infelizmente foi interrompido. Aquele sorriso já diz o quanto ele era feliz e o quanto era amado. Aquele sorriso já diz tudo sobre ele”, fala a mãe. Miguel faria seis anos de idade em 17 de novembro deste ano.
(Flávia Ribeiro)
JOÃO PEDRO MATTOS PINTO, 14
— São Gonçalo (RJ)
Aos 14 anos, João Pedro entrava na adolescência e já sabia o que queria ser quando crescer
“Ele sempre foi uma criança alegre. Dificilmente quem estava perto dele ficava triste.” O relato é de Rafaela Coutinho Mattos, mãe de João Pedro. O jovem, que vivia no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), torcia para o Fluminense e sempre marcava peladas com os amigos. Não levava jeito para o futebol, mas certa vez tentou convencer a mãe: “Me bota na escolinha?”. “Não, filho, você não tem mais idade”, respondeu ela.
O menino, porém, manteve a paixão. Conhecia quase todos os jogadores, era fã de Neymar, Cristiano Ronaldo e Messi. Não perdia os jogos da Champions League, nem de outros campeonatos internacionais. Quando o pai, Neilton Mattos, chegava em casa querendo saber qual time ganhou ou quem fez o gol da vitória, o filho sabia de tudo.
Além do futebol, João também se dedicava à igreja. Frequentava a Igreja Evangélica Congregacional aos domingos, terças e quintas-feiras, era amigo do filho do pastor, com quem jogava videogame, e ia aos eventos religiosos da juventude. Para sair, queria roupas e tênis novos e perfumes. “Ele gostava de se arrumar, o João Pedro era bastante vaidoso”, conta a mãe Rafaela. No último 23 de junho, ele faria 15 anos e já estava combinando com os amigos um de seus passeios preferidos: ir ao shopping.
Seria um respiro da quarentena, que até maio João cumpria rigorosamente, pois tinha bronquite e era do grupo de risco da covid-19. Durante esse período, assistia as aulas online do Colégio Pereira Rocha, onde cursava o nono ano do Ensino Fundamental. Sua maior dificuldade era com a geografia, mas ele gostava de português e matemática e queria fazer faculdade de direito. Antes que pudesse realizar todos esses planos, no entanto, sua vida foi interrompida.
João Pedro foi assassinado durante uma operação policial na casa da família no dia 18 de maio, em plena pandemia. O menino foi morto com tiros de fuzil enquanto estava na companhia de parentes e amigos. Foi levado por um helicóptero para socorro e a família demorou cerca de 17 horas para encontrá-lo, já sem vida. Depois, descobriu-se que mais de 70 tiros foram disparados naquele dia. O caso ainda está em investigação no Ministério Público do Rio de Janeiro.
(Edda Ribeiro)
IGOR ROCHA RAMOS, 16
— São Paulo (SP)
Corintiano roxo, o adolescente foi perseguido e morto por policiais militares em uma saída até a padaria
Ao contar histórias do filho, que teria hoje 17 anos, Ana Paula Rocha deu algumas risadas, recordando as brincadeiras do caçula com as três irmãs mais velhas. “Ele gostava muito de aprontar”, diz. “Era muito vaidoso. Uma vez passou henna no bigode e não conseguia remover. Ele fazia a sobrancelha também e, quando não dava certo, ficava doido.” Os vídeos que Ana guarda mostram a família aos risos em sua casa no Jardim São Silvério, na Zona Sul de São Paulo (SP).
Aos 16 anos, Igor Rocha Ramos tinha muitos amigos. Educado, não mantinha os laços somente na escola, onde era querido pelos professores e pela direção, mas também com os vizinhos. Matheus Costa conta que o conheceu na rua de casa. “Ele nem saía para a rua direito, às vezes só ficava em frente de casa com a gente”, relata. “Crescemos juntos. Ele gostava de jogar bola e ficávamos jogando videogame na casa dele”, lembra outro colega, John Silva. “Brincalhão” foi a palavra que os dois usaram para descrever Igor.
Aos oito anos, o menino começou a fazer aulas de futebol perto de casa. Seus outros passatempos eram o videogame e o esporte na TV. “Era corintiano roxo. Queria ver ele nervoso? Era quando o Corinthians perdia. Ele amava o time”, diz Ana Paula. Em janeiro de 2020, o rapaz começou a trabalhar como auxiliar de escritório pelo programa Jovem Aprendiz. A mãe conta que ele estava empolgado e queria ajudar outros adolescentes a conseguirem a mesma oportunidade.
Uma vontade que nunca poderá ser realizada: Igor foi assassinado em abril deste ano, com um tiro na nuca, quando saiu de casa para ir à padaria. Testemunhas relataram que ele foi seguido e morto pela Polícia Militar de São Paulo. Matheus conta que ficou com o coração a mil quando soube da perda. “Eu tinha visto ele subindo para comprar cigarro para a mãe dele, até cumprimentei.”
Meses antes de morrer, o adolescente relatou à mãe que estava sendo ameaçado pela polícia. Ana Paula acredita que o filho, que havia passado por uma internação na Fundação Casa após roubar um carro, foi perseguido e morto por causa desse delito. A mãe segue lutando por respostas sobre o assassinato.
(Edda Ribeiro)
DAVID DO NASCIMENTO SANTOS, 23
— São Paulo (SP)
Eu disse para minha rainha parar de chorar, porque o tempo é rei e ele não vai parar, uma luz vou ver brilhar’, dizia o jovem em uma de suas composições
Isabele Vieira, companheira de David do Nascimento Santos, lembra do rapaz como um grande sonhador. Ele trabalhava vendendo doces no farol para garantir o sustento da família e estava sempre de bom humor, cantando e alegrando todos à sua volta. “Não posso esquecer que ele era muito esforçado e dedicado, com o coração tão bom que escondia as imperfeições. Sempre me mostrava que, mesmo em dias difíceis, jamais podemos parar de lutar. Ele era o símbolo disso”, diz.
De infância pobre e humilde, David sonhava em ser MC e imaginava um dia poder dar uma casa para a mãe, figura presente em suas composições musicais. “Fui criado pela minha coroa desde um ano de idade. Sei que a vida não é fácil onde castelo de madeira era um barraco. Aquele sonho de cantar para o mundão, um dia subir em um palco e, voando alto, condições para minha família”, diz a letra de “Minha Vida Sofrida”, escrita por David.
Isabele conta que a relação com ele foi um grande aprendizado. “Ele dizia: se você tem um sonho, jamais pode desistir dele. Vão aparecer muitos querendo acabar com ele, mas você tem que ser forte, ter fé em Deus e sempre verá uma luz brilhar no fim do túnel”, lembra. “Era o meu menino homem, tinha a alma pura de uma criança.”
David do Nascimento Santos morreu aos 23 anos, após uma abordagem policial. No dia do crime, em abril deste ano, saiu para receber um lanche na esquina de uma viela da favela do Areião, na Zona Oeste de São Paulo (SP), onde morava, quando foi abordado por policiais militares e colocado no banco de trás de uma viatura – imagens gravadas por câmeras de segurança. Algumas horas depois, o rapaz apareceu morto na favela da Fazendinha, em Osasco, na Grande São Paulo. Os policiais alegaram que ele tinha se envolvido em um tiroteio. David deixou dois filhos.
(Caroline Nunes)
JAILSON GALDINO SOUZA DOS SANTOS, 26
— Salvador (BA)
Dengo da família e orgulho das ruas, o grafiteiro conhecido como Scank foi assassinado em fevereiro de 2020
Na década de 1990, Nice Galdino e João dos Santos estavam completamente apaixonados e esperavam ansiosamente a chegada do primogênito, Jailson Galdino Souza dos Santos. O aniversário de um ano ficou para a história: Jailson ficou de plantão no bolo e, antes dos parabéns, tascou a mão no que era seu por direito. Todos caíram no riso. Criado entre mãe e tias, deu trabalho na escola. Não se adaptava aos protocolos da sala de aula. Artista. Gostava das aulas de arte, às sextas, e ali se concentrava com disciplina e entrega.
Foi no conservatório da rua que Scank ganhou vida. Aos 12, já estava riscando. Desobedecendo. Não sua mãe — por quem tinha máximo respeito —, mas o sistema. Espírito livre, atravessava a cidade fazendo pixo até no ar; se tornou ponta de lança: vanguarda.
Engana-se quem pensa que era só rebeldia. Disciplinado, aprendeu rápido a ética das ruas. Sabia respeitar e ser respeitado. Tinha sede de aprendizado. Ouvia os mais velhos com deferência e humildade. Menino de visão, investigador nato. Seu letrado versátil é uma aula de grafia urbana. 90% transpiração, 90% inspiração: Scank era 180%. E ainda era fofo. Mesmo com a marra. Mesmo com a raiva. Mesmo com as feridas abertas: sorria. E como sorria bonito — leonino.
Uma vez foi ver um filme na UFBA (Universidade Federal da Bahia) e ouvir ideias-cheque de um pixador famoso. Dali em diante, foi só missão. Virou pesquisador colaborador em antropologia urbana. Entrou para a coalizão nacional de pixação, se jogou nas ferramentas digitais e colou em outros rolês na universidade. Até palestrou em um evento bacana, chamado “Derivas e Memórias Contemporâneas”. Para ele, foi como ganhar na loteria, mas quem ganhou foi seu público. Scank não tinha meias palavras. Autoestima altiva, do ventre de Nice e das ruas.
Em 2019, o auge: foi premiado no Cowparede Festival. Em fevereiro de 2020, foi assassinado. Espancado e baleado pelas costas. O contexto: violência territorial, no bairro da Boca do Rio, em Salvador. A covardia lhe tirou a vida, mas não tirou aquilo que lhe era mais caro: sua história, a liberdade e a certeza de saber quem era — o cara.
(Bruna Rocha)
CARLOS EDUARDO DOS SANTOS NASCIMENTO, 21
— Jundiaí (SP)
O jovem havia dito para o pai que voltaria a estudar, mas antes que pudesse cumprir a promessa foi levado pela polícia e desapareceu
Nascido e criado em Jundiaí (SP), Carlos Eduardo dos Santos Nascimento era um rapaz comum: morava com a mãe, gostava de jogar bola e torcia para o Santos. Tinha o sonho de ter sua própria barbearia. Com o negócio, queria se estabelecer na profissão e ter um emprego fixo para não mais precisar dos bicos que fazia para ganhar alguns trocados, R$ 300 a R$ 400 semanais.
Interrompeu os estudos na oitava série, por precisar trabalhar. Seu pai, Eduardo Nascimento, era segurança em uma faculdade e queria que o filho voltasse para a escola. “Termina o ensino médio. Como o pai trabalha em faculdade, tem direito a bolsa de estudos e te dá uma”, dizia. Carlos prometeu ao pai que voltaria a estudar e ficaria com a bolsa, estava tudo acertado. Mas não houve tempo.
No dia 28 de dezembro de 2019, aos 21 anos, Carlos foi a uma confraternização próxima de sua casa, no bairro Jardim São Camilo, em Jundiaí. Estava com amigos no bar quando policiais apareceram para uma abordagem. Todos foram liberados, menos Carlos, o único negro do grupo. Ele teve os pés e as mãos algemadas pelos policiais e foi jogado no porta-malas da viatura.
Começava naquele dia uma cruzada para encontrar o jovem. O pai, Eduardo, esteve em delegacias, no IML, em terrenos baldios — e nada. Nas delegacias, escutava que ninguém fora apreendido em um bar no Jardim São Camilo, mesmo contra todos os relatos dos presentes sobre a abordagem policial.
Depois, com a repercussão em meios de comunicação, os policiais voltaram atrás e assumiram que estiveram no local naquele dia e horário. No entanto, alegam que Carlos não estava no bar e que não foi levado. Sem solução, o caso se arrasta na justiça, e Eduardo amarga a ausência do filho que queria ver na faculdade.
(Cássio Santana)
LUCAS EDUARDO MARTINS DOS SANTOS, 14
— São Paulo (SP)
O pernambucano criado em São Paulo queria ser bombeiro para salvar vidas
Lucas Eduardo Martins dos Santos, nascido em Bezerros (PE), em 25 de maio de 2005, era o filho caçula de Maria Marques Martins dos Santos, mãe solo. De Pernambuco, veio para São Paulo e criou-se no bairro de Santo André, junto com a mãe e mais dois irmãos: Victor, de 16 anos, e Igor, de 22.
Pela manhã, Lucas ia para a escola, onde cursava a sexta série. À tarde, jogava bola no Leão de Ouro, um time do bairro. O garoto, querido por todos, demonstrava grande empatia pelas pessoas e tinha um sonho: salvar vidas — queria ser bombeiro. De família empobrecida, lidava com privações e sofria discriminação por ser negro. Mas não desanimava: prometia estudar e ganhar dinheiro. Ganhou da mãe um cofrinho do Mickey Mouse e disse que juntaria ali suas economias.
No dia 13 de novembro de 2019, Lucas foi à casa da tia e lá ficou durante algum tempo. Seu irmão mais velho tinha ido trabalhar, o do meio estava na casa da namorada. Dona Maria fazia o trabalho de casa e esperava pacientemente o retorno dos filhos. Lucas, enfim, chegou. “A senhora tem R$ 1?”, quis saber o rapaz, e a mãe disse que não. Lucas, então, foi ao cofrinho do Mickey e conseguiu, com esforço, retirar R$ 4. “Vou comprar bolacha e refrigerante”. Saiu e não conseguiu voltar.
Dona Maria escutou um carro estacionando com estardalhaço na frente da casa. “Eu moro aqui”, reconheceu a voz de Lucas e tentou sair, mas já na porta um policial a impediu. Depois, desapareceu com seu filho. Desde aquele dia, Lucas nunca mais foi visto com vida. Após três dias de procura e aflição, seu corpo foi encontrado às margens de uma represa próxima, irreconhecível e maltratado.
Aos 14 anos, o menino teve sua vida ceifada de maneira brutal pela Polícia Militar de São Paulo. Agora, em homenagem póstuma, seu rosto estampa muros em grafites no bairro de Santo André. Nas imagens, o garoto Lucas continua sorridente, como sempre foi, enquanto a mãe, dona Maria, é amparada pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.
(Cássio Santana)
ÁGATHA VITÓRIA SALES FÉLIX, 8
— Rio de Janeiro (RJ)
A menina amava ler e estudar, ensinava inglês para o tio, jogava xadrez e sonhava em ser bailarina
Ágatha Vitória Sales Félix vivia com a mãe Vanessa e o pai Adegilson no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro (RJ). Na casa onde moravam, o quarto da filha era decorado com desenhos de sua autoria e repleto de livros. Ali, sentada na cama, Ágatha lia sua coleção de gibis favorita, “A Turma da Mônica”. Também era fã das histórias da Mulher Maravilha. Como gostava de ler, ganhou seu primeiro livro aos dois anos de idade.
Dedicada, fazia muitas atividades: balé, xadrez, inglês. “O dia do xadrez era o dia do lanchinho. Eu dava R$ 8 para ela comprar algo, e ela juntava tudo na sua carteirinha”, conta o pai, Adegilson Félix. A “carteirinha” com economias acompanhava Ágatha em seus passeios, e dali ela tirava uns trocados para doar aos artistas do metrô. A vontade de ajudar era uma de suas características: por isso, dava aulas de inglês para o tio e era companhia da mãe na prática de exercícios físicos.
Ágatha tinha oito anos e sonhava em ser bailarina. Em dezembro de 2019, ela se apresentaria em um circo, estava empolgada com os ensaios e já havia tirado as medidas para o figurino. Aline Xavier, professora do Centro de Danças e Lutas Pró-Arte, diz que seria o terceiro espetáculo de Ágatha, “uma criança doce e comunicativa”. Porém, naquele mês de setembro de 2019, Ágatha foi apenas uma vez ao balé, que frequentava todas as quartas-feiras. O risco trazido pelas operações policiais na região levou à suspensão das aulas.
Na noite de 20 de setembro de 2019, Ágatha voltava para casa em uma kombi com a mãe, depois de fazer uma prova na escola, quando foi atingida com um tiro nas costas. “A minha neta tirou sete [no dia de sua morte], mas ela só gostava de tirar oito, nove ou dez. Era estudiosa”, afirma o avô, Ailton Félix.
O disparo que interrompeu os estudos e os sonhos de Ágatha veio da Polícia Militar, que alegou estar em confronto com suspeitos. Testemunhas, no entanto, afirmam ter visto o policial atirar em direção a uma moto — a moto desviou, e a bala acertou Ágatha. A menina foi a quinta criança assassinada e a 16ª atingida durante operações policiais no Rio de Janeiro no ano passado.
(Aline de Campos)
EVALDO ROSA DOS SANTOS, 46
— Rio de Janeiro (RJ)
O morador do bairro de Marechal Hermes marcava presença em festas e shows com seu grupo de pagode
“A pessoa mais importante e maravilhosa que conheci em toda minha vida. Ele tinha sede de viver, uma alegria, um sorriso contagiante”, descreve Luciana Nogueira, esposa do músico Evaldo Rosa dos Santos. Ela conta que o namoro começou na adolescência e que já conhecia o companheiro desde a infância em Marechal Hermes, bairro na Zona Norte do Rio de Janeiro — onde depois viveram juntos por 27 anos. “Ele não queria namorar às escondidas, então foi logo pedir à minha mãe”, lembra a viúva de Duda, como o chamava.
Dedicado à família, Duda era pai de Davi Bruno, hoje com oito anos de idade. Para equilibrar o cuidado com a casa e com o menino, o músico organizava suas folgas com as da esposa. Aos 46 anos, ele trabalhava como segurança em uma creche, depois de ter sido florista e camareiro no Projac, e integrava o grupo de pagode Remelexo da Cor. Tocava em festas privadas e na abertura de shows de artistas como Xande de Pilares e Marquinho Santanna.
Apelidado de Manduca pelos colegas, Evaldo era o cavaquinista e vocalista do grupo, que se apresentava no Rio, em Minas Gerais e em São Paulo. Fazia parte da banda ao lado de um de seus melhores amigos, o também músico Elciney da Silva. “A nossa convivência era como a de irmãos, tínhamos uma amizade muito boa. Sempre que podíamos, estávamos bebendo juntos na casa dele, tirando músicas”, diz o parceiro de pagode. Nas redes sociais do Remelexo da Cor, fotos de Evaldo durante os shows acompanham a legenda “Ele saiu para passear e nunca mais voltou, Guadalupe chorou!” — verso da banda em homenagem ao Manduca e a outros mortos pelas forças de segurança no Rio de Janeiro.
Em abril de 2019, o carro da família de Evaldo foi alvejado por balas do Exército. Ele estava com a esposa, o filho e o cunhado e morreu após policiais dispararem 62 tiros contra o veículo. Na tentativa de ajudar a família, o catador Luciano Macedo também foi fuzilado. A Justiça Militar acatou os argumentos do Exército sobre o ocorrido, e as investigações sobre as duas mortes foram encerradas. Luciana, porém, aguarda respostas até hoje. “Meu caso já está tão esquecido”, lamenta.
(Edda Ribeiro)
JOÃO MARIA FIGUEIREDO, 39
— Natal (RN)
O cabo da Polícia Militar lutava pelos direitos humanos e contra o racismo
Quando ainda era muito novo, João Maria Figueiredo ganhava alguns trocados vendendo pães em Natal (RN). De pão em pão vendido, ele alimentava o sonho de ser policial militar. Foi uma alegria muito grande quando recebeu a confirmação de que havia passado no concurso. Uma vida nova se abriu para ele. Novos amigos e novos desafios.
Sua irmã, Lidiane Figueiredo da Silva, conta que João Maria sempre foi uma pessoa esforçada: frequentou escola pública e era um excelente aluno, descrito como um líder natural entre os outros garotos. A liderança também se aplicava na luta contra o preconceito. Chegou a perder o emprego de vendedor por discutir com um cliente que tinha sido racista. O gerente da loja demitiu João dizendo que “o cliente tinha sempre razão”. “Essa injustiça marcou a vida dele. Ele ficou bem abalado na época. Ainda bem que já tinha feito o concurso de policial e logo o chamaram”, lembra a irmã.
Na polícia, o rapaz falante, inteligente e muito preocupado com questões sociais fez grandes amigos e ajudou a criar o movimento dos policiais antifascistas do estado em defesa dos direitos humanos, que reuniu membros de outras instituições da segurança pública. “Ele dizia que na sua profissão poderia verdadeiramente defender os mais pobres e os humildes. Foi daí que decidiu lutar pela mudança das instituições, custando o que custasse”, diz o amigo Pedro Chê, ex-presidente da associação dos bombeiros.
A luta de João Maria não era apenas para melhorar a polícia no Rio Grande do Norte. Ele fazia parte do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e estava engajado na denúncia do genocídio da população negra em todo o país.
Figueiredo era batalhador. Com muito esforço, conseguiu conciliar o trabalho como cabo da PM e o curso na faculdade de direito. Ele se tornou uma referência nos debates sobre segurança pública e direitos humanos e na luta antirracismo. Nas horas vagas, gostava de passear no parque ou no shopping com os quatro sobrinhos pequenos. Viajar, correr e ir para a praia com as namoradas eram outras coisas que o policial curtia fazer.
João Maria Figueiredo foi executado em uma emboscada no dia 22 de dezembro de 2018, aos 39 anos. O caso ainda não foi solucionado, e os responsáveis continuam soltos.
(Juca Guimarães)
DANIEL MARTINS NUNES DE OLIVEIRA, 21
— Nova Iguaçu (RJ)
‘Troquei a minha dor por amor, pois o meu filho era amor’, diz a mãe do jovem morto à queima-roupa pela Polícia Militar
Para Joseane Martins, acolher e cuidar de mães que perderam seus filhos de maneira violenta significa honrar a promessa que fez no leito de morte de Daniel Martins Nunes de Oliveira, seu primogênito.
Joseane conta que Daniel era um parceiro, trabalhava com ela no salão de cabeleireiro e gostava muito de futebol. “Ele era divertido e amava jogar bola. Chegava a ter aquelas perninhas arqueadas de tanto jogar futebol (risos). Era maravilhoso, sempre agarrado comigo”, se emociona a mãe.
Ela resume Daniel em uma única palavra: amor. “A dor da alma e da saudade não tem cor. Mas o meu filho era amor, carinhoso, de um sorriso lindo e alegre. Vivemos momentos muito especiais”, afirma. “Era mais que um filho, era meu amigo, e por causa dele eu apoio outras mães. Troquei a minha dor por amor, por luta”, desabafa.
A mãe de Daniel ri lembrando que o filho era muito medroso: temia as galinhas, e toda a família se divertia vendo-o se assustar com os animais. “Tive três filhos: dois corajosos e um medroso. O Daniel era o medroso! Sempre que nós íamos para a casa da avó dele, que mora na roça, bastava ele ver uma galinha para sair correndo e chorando”, relembra.
Apaixonado por crianças, Daniel deixou uma filha, Valentina, que irá completar 3 anos em novembro. Joseane diz que a personalidade dos dois é muito parecida em vários aspectos. “Ele era como a Valentina, para rir e para chorar. Ela se parece muito com ele, é festeira. Olhar para ela me alegra, pois me lembro dele.”
Daniel Martins Nunes de Oliveira foi morto aos 21 anos com um tiro à queima-roupa, disparado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. O crime aconteceu em 22 de maio de 2018, no KM 32, bairro de Nova Iguaçu (RJ); na ocasião, outros quatro jovens também morreram baleados.
(Caroline Nunes)
MARIELLE FRANCO, 38
— Rio de Janeiro (RJ)
A socióloga e vereadora carioca, que amava o mar, foi assassinada em 2018; o crime permanece sem respostas
Já se passaram quase 32 meses desde que o sorriso de Marielle foi visto pela última vez por seus familiares e amigos. Mais de 960 dias sem que o telefone de sua irmã Anielle Franco toque com um pedido de “vamos pra praia?”. Mari, como é chamada carinhosamente por ela, era apaixonada pelo mar. Quando não estava trabalhando, era o que mais gostava de fazer.
“Inúmeras vezes ela me ligava às seis horas da manhã chamando para ir à praia. Marielle era um peixinho. Se amarrava muito. Ela também gostava muito de comer e de dormir. Esses eram os seus três maiores hobbys”, conta Anielle, acrescentando que, depois do almoço, elas se deitavam para ler e caíam no sono.
Marielle nasceu em 1979 e cresceu no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, numa época em que as crianças viam mais as ruas e praticavam esportes. A mãe, Marinete Silva, desde cedo a colocou para fazer balé, capoeira, natação e vôlei. A menina também nutria um amor pelo futebol, paixão herdada do avô flamenguista.
“Até vôlei a Mari jogou, mas nem tanto quanto eu. Ela e nosso pai Antônio me levavam para os treinos, estavam sempre presentes nas competições. O esporte sempre esteve presente nas nossas vidas”, lembra Anielle, que é jogadora profissional de vôlei.
Aos 19 anos, Marielle deu à luz a sua única filha, Luyara. Depois, se tornou tia e madrinha de Mariah, hoje com quatro anos. A “mãezona” que Marielle era é a lembrança mais viva na memória da irmã, que teve a segunda filha, Eloah, em julho de 2020.
“Hoje a lembrança mais viva que eu tenho dela, por conta do nascimento da Eloah, é como ela tratava a Mariah, com presentes, brincadeiras. Toda vez que eu pego a Eloah no colo, eu lembro de como a Marielle era nessa fase da Mariah”, relata.
Marielle Franco foi assassinada aos 38 anos, em 14 de março de 2018, quando seu carro foi atingido por 13 tiros, que tiraram a sua vida e a do motorista Anderson Gomes. O caso mobilizou o Brasil e o mundo e ficou conhecido como um atentado à democracia, já que Marielle foi eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016, com mais de 50 mil votos. Ainda não há nenhuma resposta sobre quem ordenou o crime e por quê.
(Nataly Simões)
MARIA TRINDADE DA SILVA COSTA, 68
— Moju (PA)
O legado de Dona Trindade, liderança quilombola no Pará, é lembrado e foi reconhecido em forma de medalha
Maria Trindade da Silva Costa era pequena e franzina — mas só na aparência. A conhecida e muito querida moradora da Comunidade Quilombola Santana do Baixo Jambuaçu, localizada no município de Moju (PA), era, na verdade, gigante.
Casada com Zacarias Costa, mãe de sete filhos (uma morreu com poucos meses de vida) e avó de nove netos, Dona Trindade, como era chamada, era agricultora, mas se dedicava também a outras lutas. Sabe aquelas pessoas que não param quietas? “A vida da minha mãe foi voltada para as causas sociais. Desde que me entendo por gente, ela já tentava ajudar as pessoas da maneira que pudesse. Ela era militante, foi delegada sindical e sempre lutou pela preservação da cultura e do nosso território”, afirma o filho Edewilson Costa, mais conhecido como Diego.
Dona Trindade cruzava várias comunidades da região em sua bicicleta. No dia 23 de junho de 2017, aos 68 anos, saiu de casa pedalando. Não voltou. A comunidade onde ela vivia se mobilizou, e o corpo foi encontrado dois dias depois. Novamente, foram as pessoas da comunidade que permaneceram no local durante a noite e a madrugada, esperando a remoção do corpo, para que a cena do crime não fosse alterada. Mesmo em sua morte, Dona Trindade denunciou todo o descaso do poder público em relação às comunidades remanescentes de quilombos e, mais ainda, à vulnerabilidade da mulher quilombola.
No final do mês de junho daquele mesmo ano, o acusado pelo crime foi preso. Alegou que agiu sozinho e que vozes o mandaram matar a agricultora e ativista. A família diz que o caso não foi concluído e que ele ainda não foi julgado.
Em 2018, Dona Trindade recebeu uma medalha póstuma da Assembleia Legislativa do Pará, em reconhecimento por sua atuação na defesa dos direitos das comunidades quilombolas e pelo trabalho realizado junto às comunidades eclesiais de base. “A minha mãe era muito companheira, não só nas dificuldades, mas na alegria também. Era uma lutadora pela igualdade social, ambiental e racial. Era uma defensora da vida”, afirma Diego.
(Flávia Ribeiro)
LUIZ CARLOS RUAS, 54
— São Paulo (SP)
O vendedor ambulante foi espancado ao tentar impedir dois homens de atacar mulheres trans
A estação do metrô Pedro II foi inaugurada em agosto de 1980, na região central de São Paulo. No meio da década de 1990, foi ali que o paranaense Luiz Carlos Ruas começou a vender balas, doces, café e água. O movimento constante de passageiros era garantia de freguesia para suas guloseimas. Ele sabia que gentileza e simpatia eram fundamentais para melhorar o negócio. Ruas era tão gente boa que fez amizade com todos os outros ambulantes do entorno. Tinha seu lugar reservado.
Com grande disposição para o trabalho, Índio, como era conhecido pelos amigos, nasceu na pequena cidade de Guaraci, no norte do Paraná, e desde cedo tinha o sonho de conhecer São Paulo e suas modernidades. Aos 20 anos, foi tentar a sorte na metrópole. Fã de futebol, era torcedor do Palmeiras.
A irmã de Índio, Maria Aparecida Ruas, diz que ele era uma pessoa muito calma e boa. “Era querido por várias pessoas com quem ele convivia no centro, ajudava os moradores de rua e tratava todos com um olhar bondoso.”
Segundo ela, o irmão começou a trabalhar na roça com seis anos de idade e só pôde estudar até a terceira série. Aos 16, foi trabalhar em fazendas de café em Minas Gerais. Em São Paulo, começou como vendedor de sorvetes na praça da Sé. Eram difíceis os dias em que tinha que fugir do “rapa”, grupo de fiscalização da prefeitura. Por conta das incertezas de renda como ambulante, Índio trabalhava quase todos os dias, com medo de passar por dificuldades econômicas.
Foi essa a sua rotina até o Natal de 2016, quando, aos 54 anos, Índio foi morto bem na frente da estação Pedro II, ao defender duas mulheres trans que estavam sendo atacadas por dois homens. Foi espancado violentamente por mais de um minuto; a maior parte dos ferimentos foi na cabeça. Ninguém foi ajudá-lo. As imagens do crime ficaram gravadas nas câmeras de segurança do metrô.
Movimentos sociais e grupos de luta contra a LGBTfobia e de apoio à população em situação de rua fizeram vários protestos por justiça no caso do assassinato de Índio. Uma das reivindicações é a de que a estação seja rebatizada com o nome do ambulante.
(Juca Guimarães)
LUANA BARBOSA DOS REIS, 34
— Ribeirão Preto (SP)
Me imagino com ela em uma praia ou no estádio do Timão. É nisso que eu gosto de pensar para me confortar’, diz o filho de Luana
Negra, lésbica e periférica, Luana Barbosa dos Reis é descrita pelo filho Luan, de 18 anos, como mãe, amiga, parceira e pai ao mesmo tempo. De sorriso fácil e personalidade extrovertida, Luana era engajada em ajudar as pessoas — seja panfletando em ônibus para arrecadar doações para crianças com câncer, seja trabalhando como garçonete em um abrigo para órfãos, ou até mesmo aconselhando o filho a se aplicar nos estudos para ter um futuro bem sucedido. “Ela me colocava de castigo porque eu não gostava de escola”, conta Luan, rindo. “Eu lembro tudo que ela me ensinou e vejo que suas palavras e história são inspirações a serem seguidas.”
A história que Luana nunca conseguiu contar ficou para a irmã Roseli dos Reis retratar, como forma de manter sua memória viva. Segundo Roseli, Luana mantinha diários, gostava de escrever e planejava um dia publicar um livro. “Penso no que ela gostaria de ter escrito. Já encontrei coisas que ela escreveu: uma grande e linda confusão. Era muito ela, retomando coisas da nossa infância e passando para o papel. Ficou para mim a tarefa de concluir”, conta Roseli.
O filho Luan explica que basta olhar para ele para se ter uma boa compreensão da personalidade da mãe. “Ela era simpática, humilde, com um bom coração. E eu sou tudo isso também por causa dela, para tentar ser igual. Tive muita sorte, mesmo tendo pouco tempo com ela”, diz. Para matar a saudade, o rapaz explica que gosta de se imaginar ao lado de Luana no litoral ou torcendo para o Time do Povo no estádio do clube. “Ia ser o máximo estar com ela gritando ‘vai, Corinthians!’. É nisso que eu gosto de pensar para me confortar.”
Luana Barbosa dos Reis foi morta aos 34 anos por lesões no cérebro, causadas por três policiais militares que a agrediram em uma esquina próxima de sua casa, na Zona Norte de Ribeirão Preto (SP). A violência aconteceu depois que Luana se recusou a ser revistada pelos soldados do 51º Batalhão da PM, exigindo a presença de uma policial feminina. Ela foi encaminhada ao hospital, mas morreu cinco dias depois do ocorrido, em 13 de abril de 2016.
(Caroline Nunes)
CLÁUDIA SILVA FERREIRA, 38
— Rio de Janeiro (RJ)
A auxiliar de serviços gerais carioca foi morta por policiais militares, que arrastaram seu corpo, preso na viatura, por 350 metros
A carioca Cláudia Silva Ferreira gostava de um bom samba e nada tirava sua animação. Cacau, como era chamada carinhosamente pela família e pelos amigos, acordava ainda de madrugada para ir trabalhar como auxiliar de serviços gerais em um hospital. Ela e o marido Alexandre Fernandes da Silva criavam os quatro filhos pequenos e quatro sobrinhos.
O casal era muito unido. Juntos, os dois assentaram os tijolos da casinha onde moravam no morro da Congonha, em Madureira, na Zona Norte do Rio de Janeiro (RJ). “Ela gostava muito de cozinhar. Tinha três pratos imbatíveis que ela fazia: a feijoada, a sopa de ervilha e o mocotó”, relembra Alexandre.
Sua esposa foi morta com um tiro no peito, na manhã do dia 16 de março de 2016. Era para ser uma saída rápida para comprar pão, porque ela precisava fazer o café da manhã das crianças.
O tiro que matou Cláudia veio da polícia, que fazia uma operação no morro da Congonha. Os policiais retiraram o corpo do local e tentaram forjar uma situação de tráfico de drogas, o que revoltou os moradores que presenciaram o crime. As testemunhas disseram que não houve troca de tiros e que só os policiais atiraram. Depois, eles levaram o corpo de Cláudia no porta-malas da viatura, para simular um socorro e dificultar um eventual trabalho da perícia. No caminho, o porta-malas abriu e o corpo foi jogado para fora, ficando preso apenas pelas roupas. Cláudia foi arrastada por cerca de 350 metros.
A morte da vizinha, muito querida e respeitada, gerou uma revolta grande entre os moradores de Madureira. Houve protestos com interdição de várias avenidas. A então presidente Dilma Rousseff e o governador Sérgio Cabral se solidarizaram com a família.
Os movimentos populares organizados contra a violência do Estado engrossaram a luta para que a morte de Cláudia não fosse esquecida. Estudantes e professoras negras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro fundaram o coletivo Cláudia Silva, para combater o machismo e o racismo. Todo mês de março, uma campanha de 21 dias contra o racismo acontece em Madureira em sua homenagem, com ações que integram as escolas públicas e a sociedade.
(Juca Guimarães)
FERNANDO LUIZ DE PAULA, 34
— Osasco (SP)
O pintor, que jogava futebol e basquete, foi um dos mortos na chacina de Osasco, em 2015
Quando pequeno, Fernando não frequentou creches e ia trabalhar todos os dias com a mãe, Zilda Maria de Paula, que prestava serviços domésticos. Pegavam três conduções entre os bairros paulistanos da Brasilândia, onde moravam, e do Butantã. Nas palavras da mãe, ele era uma criança tranquila e inteligente, nunca deu trabalho. Aos sábados, ia junto de dona Zilda para o samba. Era querido no bairro por ser respeitador e educado. Com uma mãe muito agitada, era chamado de Paciência, justamente por essa ser sua característica forte.
Fã de macarronada, videogame, basquete e futebol, era fanático pelo São Paulo. Frequentemente usava a camisa do time, por vezes com algum boné na cabeça. Sua camisa favorita do tricolor foi a última que usou. No tempo livre, jogava basquete e, mais jovem, chegou a treinar no Clube Continental. Mas, como diz Dona Zilda, “quem não tem padrinho morre pagão”: sem poder custear uniformes e calçados para o filho, Fernando não treinou mais.
Aos 18 anos, foi servir no 4º BIB (Batalhão de Infantaria Blindado), onde passou cerca de nove meses. Não seguiu carreira como desejava a mãe. Sem sucesso na busca por trabalho formal, Fernando aprendeu o ofício de pintor, talento que surpreendeu dona Zilda.
O rapaz tinha muitos amigos: os pintores, os do basquete, os do futebol — o time Bola Mais Um de Osasco, inclusive, o homenageou com seu rosto no uniforme —, sem contar os nove cachorros da família. Aos 34 anos, em 2015, estava terminando o tratamento contra a tuberculose e pintava a casa em que morava com a mãe.
Na noite do dia 13 de agosto daquele ano, passou em um bar depois do trabalho, antes de ir cortar o cabelo. Ainda sujo de tinta, Fernando foi assassinado com um tiro. O bar, na rua Antônio Benedito Ferreira, foi um dos locais alvejados na chacina de Osasco, que totalizou 19 mortos.
Os assassinatos ocorreram em diferentes localidades entre os municípios de Osasco, Barueri, Carapicuíba e Itapevi. Foram condenados pelo crime três policiais militares e um guarda civil militar. Cinco anos depois, dois deles aguardam novo julgamento em liberdade.
(Aline de Campos)
DAVI FIÚZA, 16
— Salvador (BA)
O adolescente sumiu após uma abordagem policial; seis anos depois, a família ainda não tem uma resposta oficial
Davi foi o quinto filho da educadora social Rute Fiúza. Depois de ter quatro filhas, ela já nem esperava mais ficar grávida. Quando confirmou, o sentimento era de que agora viria um menino. Mais do que sentimento, era certeza. O médico chegou a dizer para ela não criar esperança, mas ela sabia… A confirmação mesmo só veio no oitavo mês de gravidez. O garoto tão esperado nasceu grande, com 51 cm e 4,2 kg. Até hoje, Rute tem esses números na ponta da língua.
Mas Davi chegou com um problema de saúde e passou um tempo internado para o tratamento no hospital. “Meu filho já nasceu lutando pela vida”, pontua a mãe. Essa batalha ele venceu. Cresceu e adorava o mar. A praia preferida do soteropolitano era o Porto da Barra. Quando olha o mar, a mãe se lembra do filho. Na verdade, ela lembra todos os dias.
Ele era muito querido na vizinhança. No aniversário de 15 anos, ganhou uma festa: duas vizinhas fizeram um bolo para comemorar. No dia 8 de outubro deste ano, Davi teria feito 22 anos. Teria feito. Não fez. No dia 24 de outubro de 2014, o adolescente, então com 16 anos, sumiu após uma abordagem policial, no bairro de São Cristóvão, em Salvador (BA). Testemunhas o viram sendo encapuzado, com pés e mãos amarrados, e colocado no porta-malas de um carro.
O filho caçula, que foi tão esperado, que era amado pelos familiares e pela vizinhança, não voltou para casa. Rute procurou em delegacias, no necrotério e até em locais de desova de corpos, mas até hoje não tem uma resposta oficial sobre o que fizeram com Davi. Assim como teve certeza de que ele nasceria, a mãe também sabe agora: o seu filho está morto.
No dia do protesto organizado pela família exigindo respostas, ela pensou que só as pessoas próximas viriam. Mas se surpreendeu com a mobilização que o nome de Davi trouxe. “O meu filho veio para me ensinar a lutar. Não que eu não lutasse antes. A gente já nasce lutando contra as estatísticas, mas ele me mostrou que vale a pena, que a luta coletiva transforma”, afirma Rute.
(Flávia Ribeiro)
ALDA RAFAEL CASTILHO, 27
— Rio de Janeiro (RJ)
A policial militar, sempre solidária com quem mais precisava, foi baleada durante um ataque à base da UPP onde servia
A policial militar Alda Rafael Castilho cresceu brincando nas ruas de Parada Angélica, bairro pobre de Duque de Caxias (RJ). Na casa onde morava com suas duas irmãs e a mãe, dona Maria Rosalina Rafael da Silva, ela ainda menina dava aulas de reforço escolar para ter um dinheirinho e ajudar nas despesas domésticas.
A mãe recorda que ela gostava muito de estudar. Alda fez magistério e um curso técnico de segurança do trabalho, antes de passar no concurso para PM, em 2011. O sonho dela era ser psicóloga. “Ela queria trabalhar com crianças”, conta dona Rosalina. Nas folgas, Carnaval ou férias, a família gostava de viajar para a região dos lagos. “Angra dos Reis era para onde ela mais gostava de ir”, comenta a mãe.
Alda era a caçula da família e tinha na mãe a sua principal confidente e conselheira, principalmente sobre a realidade que passou a conhecer mais de perto depois que foi trabalhar nas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). “Ver o dia a dia da comunidade chamou a atenção. Ela não sabia o que era uma comunidade. Apesar de ser pobre, nunca tinha visto como era a vida lá. Alda contava que as crianças vinham de longe para falar com ela, pedir coisas, brinquedos e até comida. Como ela era pequena, as crianças viam ela como uma policial criança e se aproximavam”, lembra Rosalina.
Alda, então, passou a levar brinquedos, bonecas, comida e presentes para distribuir entre as crianças. “Uma vez ela contou que um menino veio descalço pedir um chinelo, ele andou do outro lado do morro até a UPP. Alda foi uma menina criada com dificuldade, mas eu lutei muito para ela não sentir falta das coisas, então essas situações a deixavam triste. Ela era muito solidária e queria ajudar.”
Na PM, Alda trabalhou nos batalhões do Méier, Botafogo e Olaria. Ela tinha acabado de passar da metade do curso de psicologia, em uma faculdade particular, quando começou a trabalhar na UPP do Parque Proletário, na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio. Em um domingo, dia 2 de fevereiro de 2014, por volta das 15h, a PM Alda foi baleada e morreu durante um ataque à base da UPP. Ela tinha 27 anos. Na ocasião, outro policial foi atingido na coxa.
“Sou negra, filha de negra e neta de escravizados. Quando morre uma loirinha o assunto chega aos tribunais, mas infelizmente quando morre uma pretinha não tem nem julgamento. Não queria falar de preconceito, mas nos meus 66 anos de vida me deparo ainda com ele. Sinto na minha pele o descaso que houve em relação ao assassinato da minha filha”, lamenta a mãe.
(Juca Guimarães)
AMARILDO DIAS DE SOUZA, 47
— Rio de Janeiro (RJ)
O ajudante de pedreiro desapareceu em 2013, durante a operação policial Paz Armada na favela da Rocinha
Nas raras folgas do trabalho, nos finais de semana em que não tinha nenhum bico de ajudante de pedreiro para fazer, Amarildo Dias de Souza gostava de assistir jogos de futebol, sempre na companhia dos seis filhos, da mulher Bete e dos amigos.
Apesar do temperamento tímido, Amarildo era conhecido em toda a vizinhança. Era uma cria da Rocinha: os mais velhos do morro se lembram dele quando garoto, brincando com alguns de seus 12 irmãos pelos becos e vielas da favela, do mesmo modo como ele via crescer a criançada filha dos seus amigos. Quem conheceu Amarildo na Rocinha afirma com convicção que o pedreiro nunca teve ligação com o crime.
Filho de mãe empregada doméstica e pai pescador, Amarildo não deixou que a pobreza e todas as dificuldades impostas pela desigualdade social e racial do Brasil tirassem suas alegrias e seus sonhos. Queria um futuro melhor para os filhos. Mesmo analfabeto, ele e Bete faziam de tudo para que as crianças tivessem melhores oportunidades. O filho Anderson Dias se lembra dos dias em que o pai os levava para pescar na praia de São Conrado. Todos tinham que acordar muito cedo, mas era um momento especial. Os peixes trazidos para casa eram um reforço importante nos almoços da família.
Amarildo tinha 47 anos em 14 de julho de 2013, quando foi levado para averiguação por policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) e desapareceu. Seu corpo nunca foi encontrado. As investigações confirmaram que um major e soldados pagaram para que uma testemunha mentisse sobre a morte do pedreiro por traficantes. Ao todo, 25 policiais foram acusados na Justiça pela tortura e morte de Amarildo. Na operação policial que aconteceu na noite em que ele sumiu, batizada de Paz Armada, outras 30 pessoas também foram levadas para averiguação.
A campanha “Onde Está Amarildo?”, iniciada logo após a família denunciar o desaparecimento, ganhou repercussão internacional com a adesão de vários artistas, movimentos sociais e organizações de defesa dos Direitos Humanos. A Justiça condenou o Estado a indenizar a família, mas até 2020 o dinheiro não foi pago.
(Juca Guimarães)
ROBSON SILVEIRA DA LUZ, 27
— São Paulo (SP)
A morte do jovem pela Polícia Militar em 1978 inspirou a criação do Movimento Negro Unificado (MNU)
Brincalhão, bom de bola, uma pessoa doce. É dessa maneira que Robson Silveira da Luz é descrito por Rafael Pinto. Os dois amigos cresceram no mesmo quintal. “A memória que eu tenho dele é a de uma pessoa tranquila e que se dava bem com todo mundo. Tinha um bom relacionamento familiar, uma família preta e com samba no quintal de casa”, conta.
Robson gostava de estudar e para ele não havia tempo ruim quando se tratava de trabalho. Na cidade de São Paulo, foi feirante, ajudante de uma banca de jornal e de um bar. Tornou-se pai ainda na adolescência e transitava entre o tradicional bairro do Ipiranga e a periferia de Guaianases.
Para além das brincadeiras, do tom de deboche com os amigos e do samba na porta de casa, Robson tinha consciência das injustiças sociais que sempre afetaram a comunidade negra e militava no movimento negro ao lado de Rafael.
O único erro do jovem de 27 anos foi, na volta de um baile black em junho de 1978, decidir pegar um cacho de banana de um caminhão de frutas em uma feira de Guaianases. Robson foi preso pela Polícia Militar como se tivesse cometido um crime de alta gravidade, torturado sob chefia do delegado Alberto Abdalla e acabou morto, como tantas outras vítimas do horror de um dos períodos mais sombrios da história brasileira: a Ditadura Militar.
O assassinato do rapaz doce e brincalhão abalou a família e todos que o conheciam. “A denúncia da morte dele saiu no Jornal Versus, veículo da imprensa negra na época que publicava sobre diversos assuntos da comunidade negra”, lembra Rafael.
A juventude interrompida de Robson, somada a tantas outras vítimas do racismo, mobilizou centenas de pessoas e inspirou a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em frente ao Theatro Municipal de São Paulo, em 7 de junho de 1978. A organização é conhecida até os dias de hoje por sua atuação contra o racismo e a repressão policial.
(Nataly Simões)
Artigo publicado originalmente na Revista Gama.
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