Por Davi Rocha
“Tive uma infância psicologicamente bastante conturbada. Eu tinha muitas convulsões e terrores noturnos.”
As histórias deste post foram retiradas do livro “Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil”, publicado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Acesse a versão digital completa aqui ou baixe o livro aqui. Os depoimentos são fortes.
1. Cacá, de um ano e sete meses, foi preso em casa com a babá e sofreu agressões dos policiais. Com 5 anos era chamado de terroristas pelos colegas de escola, desenvolveu fobia social, nunca pode trabalhar e se suicidou aos 40 anos.
“Numa manhã de fevereiro de 1974, meu filho Cacá, de um ano e sete meses, foi preso em nossa casa, que ficava no bairro do Brooklin, em São Paulo. Eu tinha saído para ir à procura de Dom Paulo Evaristo Arns, com quem tínhamos um relacionamento direto, para avisar que o pai de Cacá [Dermi Azevedo] certamente tinha sido preso na noite ou no dia anterior.
Nem voltei para casa, porque, quando fui ao escritório de Maria Nilde [Mascellani], por volta das seis e meia da tarde, fui presa. Andamos por São Paulo e a equipe seguia prendendo outras pessoas, inclusive uma terapeuta que trabalhava com Nilde. No trajeto, eles foram me colocando medo. Em alguns momentos, eu ficava sozinha no carro por muito tempo, porque eles iam revistar uma casa, prender outras pessoas.
Só fui encontrar meu filho de madrugada, por volta de uma, duas horas, no DOPS, com a babá, Joana, que cuidava dele. Na manhã anterior, os policiais estiveram em minha casa para me buscar.
Como eu não chegava, levaram a criança e a babá para o DOPS. Ambos ficaram sem se alimentar, sem água, sem nada, por um bom tempo. Para minha surpresa, vi que na boca do meu filho havia um corte lateral. A menina me contou que [os policiais que] estavam em casa falaram: “Cadê a sua mãe? Sua mãe não está aqui nem pra te alimentar”. O menino começou a chorar de fome. Então os policiais deram um tapa muito forte que cortou a boca da criança.
Meu filho acabou me salvando da tortura. Fui levada para a sala de tortura, onde havia uma máquina de choque elétrico e comecei a ser interrogada pelo delegado Sérgio Fleury. Aí chegou um policial perguntando o que iriam fazer com o tal menino que estava preso no DOPS desde aquela tarde.
Por conta disso, não sofri tortura física naquela noite. Permitiram-me levar o menino para a casa dos meus pais em São Bernardo. Fomos durante a madrugada. Fui alertada pelo Fleury de que, se eu abrisse a boca para gritar ou falar qualquer coisa quando chegasse lá, meu filho voltaria comigo e não iriam levá-lo outra vez a lugar nenhum”.
“No período em que estive presa, meu filho ficou com meus pais. Ele teve uma infância muito difícil. Nós sofremos muita discriminação quando saímos da prisão. Quando Dermi saiu da cadeia, estava muito mal, fora da realidade e, para que melhorasse mais rápido, nos mudamos para uma cidade pequena do Rio Grande do Norte, Currais Novos, onde ele tinha nascido”.
“No Rio Grande do Norte, onde ficamos até 1979, meu filho sofria na escola, era chamado de terrorista, mau elemento, os meninos batiam nele. O todo tempo ele reclamava de ser atingido e tinha vergonha disso, de ouvir dizer que nós éramos marginais, principalmente a mãe – porque era uma paulista e todo paulista era, para eles, libertino. Isso ocorreu durante muitos anos.
Ele acabou se fechando e os médicos diziam que o trauma tinha sido muito grande, que a partir daí teria esse problema de saúde. Para poder ganhar dinheiro e nos manter, eu precisei trabalhar naquela cidade. Fui dar aulas. Quando eu entrava na sala dos professores, todos saíam e eu ficava sozinha. Isso não foi por um dia, uma semana, foi durante muito tempo.” – trecho do depoimento de Darcy Andozia sobre seu filho Carlos Alexandre Azevedo para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Carlos desenvolveu fobia social, era técnico em informática, mas nunca conseguiu trabalhar. Ele se suicidou aos 40 anos.
2. Aos 15 anos, Eliana Paiva, foi interrogada e ficou presa por 24 horas no DOI-CODI, quando viu e ouviu a tortura de perto.
“A história, ainda em resumo, é esta: meu pai foi preso no dia 20 de janeiro, mais ou menos ao meio dia, uma hora da tarde. Fui me despedir dele por volta das onze horas da manhã quando fui para praia em frente, no Leblon. Papai estava sentando no jardim com Raul Ryff, que era muito amigo dele e morava perto de casa. Ryff era jornalista e foi assessor de imprensa do João Goulart.
“Nas primeiras 24 horas de prisão domiciliar, a coisa toda acalmou. Não me lembro se vimos televisão, o que comemos, não lembro mais nada. Só lembro-me da minha mãe, no dia seguinte, me acordando e falando: ‘Acorda, se veste que a gente vai ter que dar depoimento'”.
“Fomos colocadas em um fusca no banco de trás, havia duas pessoas na frente. Pararam o fusca e nós fomos encapuzadas. Era um capuz fedorento, já devia ter sido usado para tudo. E lá fomos nós para o DOI-CODI. Chegando ao quartel da Rua Barão de Mesquita, minha mãe e eu fomos separadas. Fui inteiramente revistada, a minha mãe deve ter sido também, e fui colocada em uma espécie de corredor polonês, sentada em uma cadeira de madeira.”
“Eu (e minha mãe foi colocada a duas celas depois da minha, o que vim a saber no dia seguinte) fui colocada em uma cela semiaberta, com chuveiro e latrina. Mas o terrível é que durante a noite foram colocados pessoas na frente da cela, gente amordaçada, gente encapuzada, amarrada, imobilizada. Não dava para ver quem eram. Estavam todos estranhamente quietos e eu só ouvia a respiração. Era uma respiração muito difícil por causa do capuz. Tinha um colchonete pequeno e imundo no chão.
Acho que dormi e acordei várias vezes. O dia amanheceu com a música do Roberto Carlos ‘Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui…’. Achei aquilo grotesco. Já não tinha mais ninguém deitado em frente das celas. Alguns guardinhas estavam por ali, com o quais conversei bastante, apesar do receio deles”.
“Eu fui solta em 24 horas e mamãe ficou onze dias presa. Quando eu saí da prisão, me tiraram da cela, com a minha vendinha, e me levaram para uma sala, espécie de sala de saída e me deram a bolsa da mamãe com tudo dentro. Nesta sala estavam dois militares. Outros dois, a paisana e desconhecidos que me ordenaram: ‘Agora você sai’. Eu respondi: ‘Não saio, só saio daqui com minha mãe, como cheguei’. Morrendo de vontade de sair dali correndo. Ainda falei: ‘Porque isso aqui é a bolsa da minha mãe, se ela souber que eu estou saindo com a bolsa dela com tudo dela, inclusive cigarro, ela não vai gostar’. ‘Não vou sair, não saio’. Eles: ‘Vai sair’. Eu, ‘Não vou sair’.
Ainda tentei negociar deixar cigarros e outras coisas, mas não deixaram. Colocaram a venda de novo, levaram-me até a saída, eu me lembro de ter assinado qualquer coisa, me colocaram em um fusca e me soltaram na Praça Saens Peña, na Tijuca.
Fui para um bar ali ao lado e com a carteira de endereços da minha mãe e dinheiro, liguei para o Bocayuva Cunha ir me buscar. Foi uma conversa rápida por telefone. Pedi um sundae e esperei Bocayuva chegar. Não consegui comer, minha cabeça pensava em tudo, principalmente na minha mãe” – trechos do depoimento de Eliana Paiva para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Na foto acima: Eliana na esquerda, ao lado de sua família, logo após a prisão na casa da rua Delfim Moreira, Leblon, Rio de Janeiro. Os restos mortais de seu pai, Rubens Paiva, nunca foram encontrados.
3. Adilson, 9 anos, Denise, 9 anos, e Ângela, 3 anos e meio, viram o pai ser assassinado dentro de casa e com a mãe foram expulsos do Brasil.
“A gente foi parar em Atibaia. E como não conseguíamos mais frequentar a escola por conta dessa clandestinidade, a Damaris [sua mãe] estava nos alfabetizando no dia em que a casa foi cercada. Foi muito rápido.
“Eles entraram e houve um tiroteio dentro de casa. Acho que eu fui o primeiro a sair quando cessou o tiroteio. E quando eu saí, ele [seu pai] estava sentado ao lado do tanque. Acho que ele já estava praticamente morto. Estava sem camisa. Tinha tomado muitos tiros. E eu fiquei desesperado, enlouquecido.
A minha mãe saiu com a Telma no colo e depois atrás veio a Denise. Depois entramos de novo e aí se gerou aquele impasse dentro de casa porque eles nos encurralaram em um canto da cama. Uns achavam que deviam matar a gente ali mesmo. Outros, diziam: ‘Não, vamos esperar, vamos aguardar’, e ficava aquele impasse, aquela tortura em cima da gente com as armas apontadas. Talvez, pelo fato de quererem tirar informação do que estava acontecendo, naquele momento foi poupada a nossa vida.
Depois, quando nós saímos lá da casa, a região estava toda cercada de soldados do Exército. Eu nunca tinha visto tantos soldados em minha vida. Inclusive, no caminho, que nos levava até a estrada principal, eles postaram soldados a cada dez metros.
De lá nós fomos levados para a delegacia de Atibaia. Parece-me que o fato se tornou público e, quando chegamos à delegacia, tinha milhares de pessoas na porta para ver a gente, como se fôssemos selenitas. Ficamos na delegacia até a noite. Até que nos tiraram de lá (primeiro fomos levados para o lar Mariquinha Lopes que era um orfanato em Atibaia). Posteriormente, ficamos sabendo que a Damaris começou a ser torturada ali mesmo na delegacia. E lá permanecemos, uma etapa da nossa prisão”.
“Posteriormente, nós fomos tirados desse orfanato e levados para São Paulo. Lembro que percorremos várias instituições religiosas e eu via que as irmãs acenavam negativamente com a cabeça. Eles queriam nos deixar naquelas instituições e as irmãs não queriam aceitar. E eu escutava os comentários, que diziam que nós éramos filhos de terroristas.
Então, em vários lugares, realmente, não fomos admitidos. Até que nos levaram para um Juizado de Menores, em São Paulo. Tive muita má impressão porque quando chegamos lá de noite, dormiam três crianças em cada cama. E lá permanecemos durante toda a prisão, com castigos constantes”.
“Até que um belo dia, a Valquíria, que era a diretora da instituição, foi nos buscar, nos banhou, nos vestiu uma roupa mais ou menos e disse que a gente ia sair do país. E fomos em direção ao DOPS. Pela primeira vez em vinte e tantos dias de cativeiro, nós vimos a Damaris. Estava magra, a coitada. E macabra. Acho que a Telma nem a reconheceu de tão magra que ela estava.
Entramos no ônibus. Havia uma escolta muito grande. Estavam os companheiros que saíram naquele sequestro e fomos em direção do aeroporto” – trechos do depoimento de Adilson Lucena para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Na imagem acima, vemos Adilson Oliveira Lucena, com 9 anos, Denise Oliveira Lucena, com 9 anos, e Ângela Telma Oliveira Lucena, de 3 anos e meio, em foto tirada no DOPS, em São Paulo.
Eles viram o pai, Antônio Raymundo de Lucena, de 48 anos ser morto pela polícia dentro de casa. Junto com a mãe, Damaris Oliveira Lucena, na época com 45 anos, foram expulsos do Brasil e se exilaram em Cuba. Antônio e Damaris eram militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
4. Zuleide teve o cabelo cortado no DOPS, foi taxada de terrorista e exilada aos 5 anos. Ela afirma que se considera uma pessoa sem identidade até hoje.
“Eu sou a Zuleide, uma das miniterroristas, que é a maneira como fomos taxados [pela ditadura]”.
“Quando fomos sequestrados, fomos levados para uma casa que eu não lembro onde era. Lá, ficamos por cinco dias. Meu irmão Luis Carlos conta que era uma casa grande e bem mobiliada. Ficamos trancados num quarto de onde não podíamos sair. Depois, nos levaram para o Juizado de Menores”.
“Do período que ficamos no Juizado, o que me lembro é que fizeram uma trança no meu cabelo. Eu tinha um cabelo de comprimento abaixo da cintura e ele foi cortado. Tinha uma pessoa cortando e outra do lado falando: “Me dá essa trança que eu quero fazer uma peruca”. Eu não lembro de muita coisa porque era pequena, mas desse fato eu lembro.
Para mim, foi realmente uma grande violência. Eu era uma criança de 4 anos de idade. O que uma menina gosta? De ter cabelo comprido. Para mim, isso foi uma tortura. E foi também uma tortura terem me separado da minha avó, que era a única mãe que eu conhecia.
E eu tinha que ser forte. Minha avó olhava para mim e falava: “Seja forte, resista, não abaixe a cabeça”.
“Quando fomos libertados, a única coisa que me lembro é que me vi dentro de um helicóptero e lá na frente um monte de milicos armados. Aí nós fomos para a Argélia, onde ficamos um mês e pouquinho. Depois fomos para Cuba, que foi o país que nos acolheu. Ficamos lá durante dezesseis anos. Estudamos, terminei o segundo grau e depois voltei ao Brasil”.
“Até hoje sou uma pessoa completamente sem identidade. Eu sei que sou brasileira, porque nasci brasileira. Mas não me sinto brasileira e sim cubana. Sei que não sou cubana, então é uma confusão muito grande. Aí eu costumo dizer que como tenho na veia a herança de militância, digo que sou latino-americana. Acho que fica muito mais fácil.”
“Crianças foram torturadas de fato, isso aconteceu no Brasil, na América Latina e não pode voltar a acontecer. Nenhum ser humano tem o poder de torturar, de acabar com a vida de outro ser humano” – trechos do depoimento de Zuleide Aparecida do Nascimento para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Ela morava com dois irmãos (Luis Carlos e Samuel) e a avó Tercina Dias de Oliveira, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), quando foram presos em Jacupiranga, interior de São Paulo. A foto deste post foi tirada quando ela foi fichada no DOPS.
5. Com 9 anos de idade, Samuel foi torturado no DOPS e banido do Brasil sem documentos.
“Quero contar um pouco a história do Samuel. Ele era do Rio de Janeiro, foi criado pela mãe, tinha irmãs mais velhas. Minha avó, que sempre criou várias crianças, foi passar um tempo lá no Rio de Janeiro e conheceu essa criança na rua. Ela foi à casa da mãe e pediu para cuidar dele. A mãe deixou. Aí quando a vó retornou para São Paulo, trouxe o Samuel junto”.
“Ele foi levado para um local onde ficavam meninos infratores. Ele apanhou muito, foi torturado. O Samuel ficou careca porque teve o cabelo raspado, foi tratado como menor infrator, apanhou. E além de ter sofrido a agressão psicológica que todos nós sofremos, ele ainda sofreu agressão física”.
“Na semana passada eu falei com ele, para vir aqui dar depoimento, que para ele é importante falar. “Vai, vai ser bom, você fala muito poucas vezes sobre isso”.
“Mas realmente ele não quer falar. Ele disse: “Eu não quero, tenho que trabalhar. ‘Aqui ninguém conhece a minha história, aqui eles não conhecem de onde eu vim, para onde eu fui, quem eu fui, quem eu sou, nada. E eu não quero que saibam, não quero, não quero’. Eu acho que ele não quer falar.
Hoje o Samuel é uma pessoa super retraída. Ele tem um bloqueio muito grande” – trechos do depoimento de Zuleide Aparecida do Nascimento sobre seu irmão-adotivo, Samuel Ferreira para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Ele foi convidado a dar seu depoimento na Comissão da Verdade, porém se recusou.
6. Luis Carlos tinha 6 anos quando foi fichado como terrorista depois de ter sido separado da avó no DOPS.
“No DOPS, foi uma crueldade quando nos colocaram em uma sala e nos separaram da vó. Eu, que sempre fui o mais rebelde dos irmãos, me agarrei muito na minha vó e comecei a chorar. Aí dois policiais pegaram a minha avó pelo braço e outro me desgarrou dela. Ela me disse: “Carlinhos, fique tranquilo que não vai acontecer nada, tá? Depois a gente se vê”. Ficamos horas e horas naquela sala. E depois fomos levados para o Juizado de Menores. Eu fiquei muito mal, mas muito mal. Eu não queria me alimentar, não queria brincar com as outras crianças que estavam lá. Nunca tinha me separado dela. Lembro disso até hoje.
Eu e a Zuleide, como éramos menores, fomos levados ao Juizado, onde ficamos uns dois meses mais ou menos. Lá, praticamente só havia crianças, tinha até bebês. Então ficávamos brincando o dia todo. A única coisa com a qual me senti muito mal foi que tiraram os nossas pertences, cortaram o cabelo da Zuleide e tiraram o brinquinho de ouro dela, uma argolinha que minha avó havia dado a ela.
Um belo dia chegaram e disseram: “Olha, vocês estão indo embora”. Foi uma alegria. Nos levaram não sei para onde, não sei se foi de novo para o DOPS, mas reencontramos a nossa avó. Todo esse tempo ficamos sem saber nada dela. Quando nos reencontramos, a alegria foi imensa.
Nós fomos fichados, tiraram uma série de fotografias, tiraram as digitais. Depois ficamos sabendo que estávamos saindo do Brasil. A polícia não estava querendo liberar as crianças e minha avó disse: “Sem as crianças eu não vou”. Nós não tivemos passaporte. Quando você é banido, não tem passaporte, não tem documentação nenhuma. É expulso mesmo. Nós, por estarmos junto com nossos companheiros, fomos fichados como terroristas. Não somos nós que estamos dizendo isso. São os documentos do DOPS que diziam que éramos terroristas.
Tiraram nossas digitais para caso retornássemos ao Brasil, já saberiam. Se retornássemos para o Brasil é porque iríamos fazer guerrilha, como teve companheiros que voltaram e foram assassinados. Então fomos banidos mesmo, exilados” – trechos de depoimento de Luis Carlos Max do Nascimento, neto de Tercina Dias de Oliveira para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Acima, foto dele quando fichado no DOPS.
7. Dora foi exilada aos seis meses de idade e, quando voltou ao Brasil, teve de estudar na clandestinidade.
“Eu nasci em 1968, em Osasco, em plena greve geral. Uma confusão, um caos no país. O meu pai, Darcy Rodrigues, servia no quartel de Quitaúna. Era sargento na época e lugar tenente do Capitão [Carlos] Lamarca.
Quando eu tinha seis meses de idade, meu pai, ciente da gravidade da situação, nos mandou para a Europa no mesmo voo com a esposa do Capitão Carlos Lamarca e seus filhos.
Nós conseguimos asilo político em Cuba, onde fomos todos, a esposa do Lamarca, os filhos, minha mãe, eu e meu irmãozinho que nasceu lá. Vivi minha infância inteira em Cuba até meus 11 anos de idade”.
Eu lembro que quando chegavam correspondências dos nossos familiares, elas eram motivo de muita alegria e de muita apreensão. Era muito difícil receber informações naquela época, as correspondências chegavam todas violadas, fotografias chegavam rasgadas e demoravam meses para chegar.
Os meus pais sempre deixaram claro para mim e para o meu irmão que aquele não era o nosso lugar e que a qualquer momento podíamos ir embora, que precisávamos voltar para o nosso país. Então, nós passamos dez anos da nossa vida sem poder nos apegar a amigos, a brinquedos, a lugares, aos professores, a escola, porque a qualquer momento iríamos embora.
Queríamos muito ir embora, porque sentíamos a paixão dos meus pais pelo país, a necessidade que tinham de voltar, além do desespero de voltar para o convívio dos familiares.
Em 1980, quando voltamos para o Brasil, fomos morar no interior de São Paulo, em Bauru. Eu lembro que foi uma época muito difícil porque depois de mais de dez anos fora do país os meus pais não tinham mais casa, não tinham mais nada do que eles deixaram aqui. Nenhuma escola em Bauru queria matricular a mim e a meu irmão.
Mesmo assim, felizmente, com a ajuda de companheiros, conseguimos assistir, participar em uma escola como pessoas transparentes. A diretora do SESI de Bauru aceitou que eu e meu irmão assistíssemos às aulas na série em que meu pai afirmava que nós estávamos, independente do MEC validar [os estudos em Cuba] ou não.
E ficamos por um período, eu na sexta série e meu irmão na quinta série, sem ter o nome na lista de chamada, fazendo as provas às escondidas, separadas e, obviamente, com isso tudo sabíamos que éramos vistos como diferentes, apesar do meu pai e da minha mãe tentarem nos fazer acreditar que estava tudo bem” – trechos do depoimento de Dora Augusta Rodrigues Mukudai para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Na imagem acima vemos a ficha da ainda bebê Dora fichada no DOPS, ao lado esquerdo a ficha de sua mãe, Rosalina de Freitas Anselmo.
8. Ernesto tinha dois anos quando viu o pai seu torturado em um pau de arara na cadeia.
“No dia 18 de maio de 1970 fui preso em São Paulo, com minha mãe. Eu tinha apenas 2 anos de idade. Fomos levados para a Oban, onde meu pai foi torturado na minha frente. Passei ainda pelos cárceres do DOPS, Presídio Tiradentes e DOI-CODI/SP. Depois de um tempo, me separaram da minha mãe e fui para um local incerto, talvez para o Juizado de Menores.
Fui mantido lá como qualquer outro preso político e me levaram diversas vezes às seções de tortura para ver meu pai preso no pau de arara. Para o fazerem falar, simulavam me torturar com uma corda, na sala ao lado, separados apenas por um biombo.
Eu tinha 2 anos e 3 meses e fui tratado como “Elemento Menor Subversivo”, terrorista e fui banido do país por decreto presidencial, conforme consta nos documentos no arquivo do Estado de São Paulo. Fiquei preso até 16 de junho de 1970, quando fomos libertados no resgate feito pelo Capitão Carlos Lamarca na troca de 442 presos políticos pelo embaixador Alemão Ehrenfried von Holleben.
Fui banido juntamente com minha avó Tercina Dias de Oliveira, mais conhecida como “A Tia”, que sabendo estar eu preso com meus pais, informada pelos companheiros de presídio e confirmado pelo seu interrogador, disse: “Entrei com três netos, mas só saio com quatro”. Meus pais continuaram presos.
Desembarcamos em Havana, Cuba, onde vivi até 7 de janeiro de 1986. Lá, passei os anos mais importantes da vida de um cidadão para sua educação e formação do caráter.
Os primeiros anos que tenho lembranças em minha vida (após um ano em Havana, entre 3 a 4 anos de idade) foram marcados por pavor de policiais de farda, de grupos com mais de quatro pessoas e quando meus pais chegavam do exterior. Nessas situações eu entrava em pânico, chorava, me escondia debaixo da cama, dentro de armário, mordia quem tentava me pegar, urinava nas calças” – trecho de depoimento de Ernesto Carlos Dias do Nascimento para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
9. Quando recém-nascido, Paulo não foi algemado pois não encontraram uma algema que coubesse nos bracinhos de um bebê.
“Quando fui presa, minha barriga de cinco meses de gravidez já estava bem visível.
Fui levada à delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer’.
Depois, fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos “refletores”.Eles nos mantinham acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto.
Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à ‘tortura científica’, numa sala profusamente iluminada.
A pessoa que interrogava ficava num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios.
As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia.
De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem em pé nem sentada.
Como não tinha colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos.
Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei.
Depois disso, ficavam dizendo que eu era fria, sem emoção, sem sentimentos. Todos queriam ver quem era a ‘fera’ que estava ali”, trecho do livro “Luta, Substantivo Feminino: Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à Ditadura”, em que Hecilda Mary Veiga Fonteles de Lima descreve a tortura sofrida enquanto grávida.
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“Uma das lembranças mais antigas que tenho sobre mim mesmo está no fato de ter nascido na prisão e de ser filho de comunistas. Minha avó, Cordolina Fonteles de Lima, contava que os agentes da repressão atrasaram minha entrega para a família, por horas, porque simplesmente não haviam encontrado algemas que dessem em meus pulsos de recém-nascido, eles deviam me achar bastante perigoso!”.
“Quando eu nasci, minha mãe pesava 37 quilos. Ela foi cortada de uma ponta a outra sem anestesia e não disse um “ai”. Não tem coisa que mais me orgulhe nessa vida do que isso. É como um combustível, um motor para travar a luta.
Essa é a tarefa deste momento. Contar esta história para vacinar a consciência nacional dos brasileiros para que nenhum filho nasça na prisão, para que nenhum filho tenha esse dissabor de não conhecer o pai”, trecho do depoimento de Paulo Fontes Filho.
Hecilda Mary Veiga Fonteles de Lima e Paulo César Fonteles de Lima, pais de Paulo Fontes Filho, eram militantes da Ação Popular em Brasília.
10. Carmen foi sequestrada pelo DOI-CODI com um ano e teve uma infância marcada por convulsões e terrores noturnos.
Reprodução livro Infância Roubada
“Meu nome é Carmen Sumi Nakasu de Souza. Eu nasci em Valinhos (SP), em circunstâncias um pouco obscuras. Fugindo daqui para ali, minha mãe conseguiu acertar a realização do parto com um colega da Faculdade de Medicina.
Quando eu tinha um ano e uma semana, em setembro de 1973, fui presa com a minha mãe e meu pai na Estação da Luz em São Paulo. Era meia-noite e nós íamos tomar o trem para o Rio de Janeiro, porque a intenção era sair do Brasil.
Meus pais ficaram no DOI-CODI por noventa dias sendo torturados.
Só fui encontrá-los depois de três meses. Antes desse período, eu era uma criança muito alegre e extrovertida que gostava muito de tomar banho. E quando eu voltei para a casa dos meus familiares, retornei com muito medo e, estranhamente, passei a ter pânico de banho e do barulho da descarga.
Nesses três meses, passei cinco dias com os agentes do DOPS. Depois, com uma amiga da família, a dona Maria Cecília Figueira de Melo e em seguida fiquei sob o cuidado de familiares.
Recentemente eu reencontrei dona Maria Cecília e sua família. Eles me contaram como foi a minha chegada e a minha estadia. Disseram que cheguei como uma criança extremamente amedrontada. Depois, fui levada para a minha avó, com quem fiquei até reencontrar meus pais.
Quando os reencontrei, não os reconheci. Já havia passado três meses, que para uma criança de um ano é muito tempo.
Carreguei para a minha vida esse sofrimento do tempo em que fiquei afastada dos meus pais. Eu era uma criança muito tímida, muito insegura, que não conseguia ficar longe da mãe. Tive uma infância psicologicamente bastante conturbada, eu tinha muitas convulsões e terrores noturnos.
Também fui uma adolescente igualmente tímida, muito tímida, nunca tive muitos amigos. Não conseguia me relacionar muito bem e frequentemente era abatida por uma sensação horrível, uma angústia tremenda. Do nada, essa sensação me tomava. Era uma coisa estranha, que vinha com falta de ar, tudo junto.
A ditadura militar promoveu erros terríveis, que deixaram marcas indeléveis num número incalculável de pessoas. No meu caso, acho que o grande erro do regime militar foi ter ficado comigo nesse período. Eles não poderiam ter feito isso. Não tinha sentido nenhum. Eles deveriam ter me devolvido imediatamente para minha família, para as pessoas que conheciam minha família. Foi injusto para uma criança ter vivido uma situação dessas.” – trechos de depoimento de por Carmen Sumi Nakasu de Souza para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Os pais de Carmen, Elzira Vilela e Licurgo Nakasu, foram militantes da organização Ação Popular.
11. Crimeia foi torturada por Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI/SP, quando estava grávida de João. Eles nunca tiveram uma vida normal.
Reprodução livro Infância Roubada
“Fiquei grávida enquanto ainda estava na mata, na guerrilha do Araguaia, perseguida pelas Forças Armadas. Nesse período, estava sob constante estresse das ameaças: perseguição de militares armados, sobrevoos de aviões e helicópteros além de fome e crises de malária. Assim foram os seis primeiros meses da gravidez do meu filho João Carlos.
Em 29 de dezembro de 1972, com seis meses e meio de gravidez, fui sequestrada pelo DOI-CODI/SP. O fato de estar em estado já bastante adiantado de gravidez não foi empecilho para as torturas físicas e psicológicas. Levei choques nos pés e mãos, muitos espancamentos, ameaças de fuzilamento e outras violências. E o pior, a ameaça de sequestrarem o bebê, se ele nascesse branco, saudável e do sexo masculino.
O primeiro a me torturar foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI/SP à época. Mas não foi o único. Até o carcereiro me torturava quando me tirava da cela para levar às salas de interrogatório. Durante essa época, o feto apresentava soluços, os quais eu tentava amainar alisando a barriga e cantando baixinho para ele. Até hoje, em momentos tensos meu filho apresenta soluços.
No dia 11 de fevereiro, à noite, entrei em trabalho de parto. Solicitei um médico que só chegou pela madrugada e me encaminhou ao Hospital de Base. Lá, o médico disse que não estava na hora do parto, recomendou que me colocassem na enfermaria do presídio e aplicou um antibiótico. Os militares me levaram de volta, não para a enfermaria, mas para a cela, onde havia muitas baratas, e como o líquido amniótico escorria pelas minhas pernas elas me atacavam em bandos.
À noite o obstetra, Doutor Trindade, disse que eu estava em trabalho de parto, mas como ele não estava de plantão, só faria a cesariana no dia seguinte. Reclamei que meu filho poderia morrer e ele respondeu: “É melhor! Um
comunista a menos!” Prescreveu soro venoso e foi-se embora. Eu não queria tomar o soro porque imaginei que era para retardar o parto, mas me amarraram ao leito e o aplicaram. A porta do quarto ficava aberta, vigiada por um soldado armado com metralhadora. Eu cortei o equipo do soro com os dentes e não recebi a medicação.
Por volta das 2h30 da madrugada do dia 13 meu filho nasceu de parto normal e pesava 3,150 quilos. Não me foi mostrado, mas soube que era um menino e saudável.
Nos primeiros dias o bebê ficou isolado no berçário e só me era entregue para as mamadas. Com o passar dos dias notei que ele foi ficando muito molinho, sonolento, sem forças para chorar e para mamar. Perguntei ao pediatra o que estava acontecendo, respondeu-me que estava tudo bem. Então, perguntei à auxiliar de enfermagem, que o trazia para as mamadas, e ela me disse que a criança chorava muito e, por isso, o pediatra lhe prescreveu “Luminaleta”, um tranquilizante de uso infantil. Falei para o pediatra que ele não era o médico do meu filho, não tínhamos médicos, estávamos presos, não admitia que ministrassem tranquilizantes ao meu filho e queria que ele ficasse comigo no quarto. Consegui.
Com o passar dos dias ele ficou mais ativo, chorava mais forte e mamava. Os militares queriam me interrogar no hospital; eu me recusava a isso e avisei que só responderia aos interrogatórios quando o meu filho estivesse em segurança.
Como castigo, ele era tirado do quarto, passava dois ou três dias sem ser trazido para as mamadas e voltava com diarreia e vômitos. Isto o fez perder muito peso e com um mês pesava 2,7 quilos. E sempre que me era devolvido nesse estado precário, diziam que era eu a responsável porque não queria cooperar. Finalmente, no dia 2 de abril o entregaram aos meus familiares que foram a Brasília buscá-lo.
Ao retirarem o bebê, aplicaram-me uma medicação para secar o leite e em seguida voltei para a cela onde recomeçaram os interrogatórios que eram quase ininterruptos. Permaneci presa por mais uns vinte dias até ser liberada, e fui levada para a casa da tia que havia buscado meu filho”, trechos do depoimento de Crimeia Alice Schmidt de Almeida.
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“Eu lembro que minha mãe tinha a preocupação de sermos sequestrados. A gente não podia chegar atrasado. Por exemplo, se eu saísse da escola e fosse para a casa de um colega e não tivesse sido planejado, se não tivesse avisado a minha mãe, ela ficava desesperada. E explicava: ‘Olha, eu fico pensando que aconteceu alguma coisa com você, porque eles ameaçavam me sequestrar.
Tinha essa tensão, até depois de mais velho ela ainda carregava essa preocupação. Eu ia para as baladas e ela ficava em casa esperando: “Aconteceu alguma coisa?”, ela perguntava. E isso já era nos anos 1990, mas mesmo assim ficou essa preocupação”.
“Havia um caderninho que ganhei da minha mãe em que ela contava toda a sua história. Era tipo um diário que ela fez durante todo o tempo em que esteve presa. Todo dia ela escrevia um pouquinho porque achava que não ia me conhecer.
Eu demorei muito tempo para ler esse caderninho. Minha mãe o colocou na minha fralda quando me entregou para minha tia, minha madrinha. Quando eu estava com três meses e saí da cadeia ela entregou para essa minha tia. E aí depois a minha tia entregou esse diário para minha mãe e depois a minha mãe entregou para mim. Só fui lê-lo quando estava com 21 anos. É triste” – trechos de depoimento de João Carlos Almeida Grabois, filho de Crimeia, para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.
Crimeia era militante do PC do B (Partido Comunista do Brasil) e foi enviada para a guerrilha do Araguaia, onde se desenvolveu a guerrilha contra a Ditadura Militar brasileira.
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” tem um site com o relatório completo, arquivos com imagens, vídeos, áudios e mapas e fichas de mortos e desaparecidos durante a Ditadura Militar brasileira. Todo o conteúdo está publicado com licença livre com reprodução permitida até para fins comerciais, desde que citada a fonte.
Além de “Infância Roubada”, outros três livros foram publicados pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo sobre o período da Ditadura Miliar. São eles:
– Bagulhão: a voz dos presos políticos contra os torturadores
– Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985)
– A Condenação do Estado Brasileiro no Caso Araguaia pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
Publicado originalmente no BuzzFeed.
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