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A era das incertezas

A era das incertezas

Em um momento tão dramático como o que estamos vivendo por causa da pandemia do coronavírus, tempo em que as rotinas desaparecem e com o seu fim dissolve-se também o sentimento de segurança frente às incertezas do mundo e da vida, é compreensível que as pessoas sejam tomadas por uma sensação difusa de revolta.

Revoltam-se contra o destino, mas como este é uma ideia carente de concretude, a indignação termina por ser orientada ao que está mais próximo, ainda que igualmente em plano abstrato: o alvo é a própria noção de política, a política que “deveria nos proteger” e que se revelou em tese impotente para domar as causas reais e imaginárias dos nossos medos.

Revoltam-se também contra «os portadores de más notícias», intuindo que o vírus se propaga mais pelo conhecimento nu e cru das suas consequências nefastas e das reações tantas vezes ainda relativamente inócuas das autoridades de saúde, do que pelos vetores que a ciência indica como sendo os veículos da contaminação em massa.

A dor de se perceber vítima potencial do duro sofrimento provocado pela covid-19 turba a mais estável das mentes e é compreensível a atitude defensiva do «não querer saber», como se as informações que o jornalismo sério vai buscar em fontes embasadas – centros de pesquisas, grupos de investigação em infectologia e epidemiologia, organizações supranacionais de saúde pública – fossem elas mesmas a causa dos infortúnios reais e imaginários.
Soma-se a tudo a particular e complexa situação que fez com que governos assentados na ideologia individualista e excludente do outro – imigrante, latino-americano, árabe, asiático, islamita, judeu, preto, pobre, mulher, periférico – estivessem à frente de nações importantes durante a crise.

Por coerência e convicção, as lideranças fascistas alicerçam o seu saber discriminatório na ignorância – em paradigma anticientífico -, apostam sua sobrevivência na perpetuação da divisão e da diferenciação social e, no exercício do poder, buscam na violência e na disseminação da morte a força necessária para superarem a turbulência social e econômica, turbulência em grande medida funcional aos seus propósitos políticos imediatos.

Aqui a revolta das pessoas aponta para os que denunciam o caráter genocida dessas políticas. Os que se revoltam difusamente não creem ou custam a crer que existam pessoas no mundo para as quais o sofrimento alheio lhes seja indiferente, pessoas insensíveis à dor e à morte do outro.

Não acreditam que haja quem instrumentalize o mal. Nem mesmo a experiência histórica do holocausto e dos diversos genocídios praticados geração após geração, nos dois últimos séculos, são capazes de romper a dura couraça que as pessoas ergueram em torno de si para se protegerem psicologicamente do sofrimento causado pela pandemia.

Essa proteção é obviamente imaginária. A ciência, pelos cientistas e programas, trabalha arduamente para conter a pandemia e minimizar os danos em vidas, saúde e na esfera econômica. Os principais meios de comunicação têm se esforçado para transmitir notícias confiáveis sobre o estado das coisas, diagnósticos e prognósticos conforme os cenários prováveis. A única política pública de saúde aceitável é de inclusão e funciona à base da solidariedade social. E o mal instrumental existe de fato, é real e é indiferente à pandemia. Ao revés, aproveita-se dela.

Neste momento a passividade configura uma falsa proteção, a couraça é meramente imaginária e a ignorância quer quanto às recomendações da ciência, quer a respeito da realidade do mal instrumental levado a cabo por setores radicais de alguns governos, incluído o nosso, não é eficaz medida para salvar vidas, saúde, a economia e sequer serve para preservar a integridade psicológica.

A pandemia não será dominada porque nossas mentes a eliminarão, pura e simplesmente. O enfrentamento não é algo de curtíssimo prazo. Demanda sinergia e empatia. Cobra posturas individuais e coletivas. Não é compatível com crenças sem fundamento. E é, antes de qualquer coisa, político, no sentido da política como gestão racional e democrática da coisa pública.

Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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