A reflexão que podemos fazer sobre a crise atual na perspectiva internacional não exime a responsabilidade sobre erros cometidos pelo governo brasileiro nem eventuais desmandos de membros de partido de composição, esquemas de corrupção e outros, mas o Brasil assiste a um processo de natureza política inaudito, incomparável a qualquer outro que já vivemos e com graves consequências à nossa soberania. A origem da crise no Brasil não é apenas econômica. É claro que estamos sendo solapados pelo impacto dos movimentos especulativos, principalmente no mercado das matérias primas. É claro que o capitalismo financeiro impõe severas limitações ao avanço dos progressos sociais. É evidente que a globalização financeira está diante de nossos olhos e torna difícil a adoção de políticas macroeconômicas independentes.
Mas fundamentalmente a origem da crise brasileira na fase em que se encontra é política, nutrida por uma elite que demonstra a cada dia não ter apreço pelo futuro do país e que jamais se conformou com a derrota nas urnas. Na agenda inconfessável dessa elite, entre tantos retrocessos, está o desejo de reimplantar o projeto neoliberal renunciando ao patrimônio nacional se for preciso, reservas naturais, empresas públicas, estabilidade política, democracia, em suma, uma agenda que nos devolve ao lugar da subserviência diante dos interesses hegemônicos internacionais.
Assim como ocorreu com a Vale do Rio Doce durante o mandato do ex presidente Fernando Henrique Cardoso, agora é a vez do pré-sal brasileiro. O Senador José Serra apresentou Projeto de Lei (PLS 131/2015) que permite às petrolíferas estrangeiras explorar o pré-sal sem fazer parceria com a Petrobras. Na noite do dia 23 de março, por 33 votos a 31, o Senado decidiu manter o regime de urgência na tramitação do projeto. É grande a pressa para o entreguismo, este que deveria ser considerado um crime de lesa-pátria. É preciso que a sociedade entenda a dimensão da importância do pré-sal para o futuro do Brasil como Estado-Nação.
O historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira alerta que os Estados Unidos não admitem a ascensão de outra potência na América do Sul. O Brasil figura como uma das maiores economias do mundo, detém grandes reservas naturais e minerais – como o urânio, por exemplo, o aquífero Guarani, o maior estoque de biodiversidade do planeta – a Amazônia, um dos maiores mercados consumidores do mundo e um potencial imenso para ameaçar a hegemonia norte-americana no continente. Nada mais importante que extirpar a ameaça, quebrando a economia brasileira e comprando as empresas estatais a preço baixíssimo e assim nutrir a onda de socavamento dos governos progressistas na América Latina que se iniciou junto com o novo século.
Aliás, não vamos esquecer que os golpes de Honduras e do Paraguai inauguraram a “moda” dos golpes de Estado “frios” na região contra os governos de corte progressistas. Nos dois casos, o primeiro em 2009 e o segundo em 2012, um órgão estatal dominado por interesses elitistas destituiu um presidente democraticamente eleito por meio de um processo político fantasiado de legalidade e com apoio evidente dos Estados Unidos. Ambos os golpes desgastaram governos da região usando largamente o argumento da corrupção em compras governamentais e o caso brasileiro poderá representar o tiro certeiro para retomar um neoliberalismo de nova geração, com o perdão da redundância, o novo do novo. Este é o caso dos “tratados de liberalização de comércio de nova geração” a exemplo do Tratado Transatlântico de Comércio e Investimentos entre Europa e Estados Unidos (TTIP), onde o “novo” se resume em uma palavra: “segredo”, premissa da negociação a portas fechadas deixando do lado de fora a cidadania e a democracia.
E porque os interesses hegemônicos querem o fim dos governos progressistas? Esta pergunta foi também colocada pelo Ministro Marco Aurélio Mello do STF, a quem interessa inviabilizar a governança pátria? A resposta do ponto de vista internacional é um exercício de lógica. Porque na contramão dessa ofensiva que visa recuperar a hegemonia estadunidense frente a China e Rússia (atacando os BRICS) estão posturas insubmissas de governos progressistas que buscam outro tipo de aliança e que, além do insulto ao imperialismo, ainda realocam a tônica nas políticas sociais – Estado regulador e interventor contrário ao ideário da Escola de Chicago – e diferem na decisão sobre a distribuição da riqueza e o modo de inserção no mercado internacional. Insolentes que somos, rejeitamos a via única de livre comércio com países hegemônicos e priorizamos as iniciativas destinadas à integração regional e sub-regional e a ressalva do crescimento com distribuição de renda. No caso específico do Brasil, após a rejeição da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), o acento foi deslocado para a diversificação da pauta comercial brasileira com a inclusão do comércio intra-regional e para o fortalecimento do Mercosul. A criação da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), com o impulso brasileiro, é reflexo dessa tentativa de fortalecimento dos laços na América do Sul. Quem não fez isso foi o México que preferiu firmar o Tratado Norte-americano de Livre Comércio (NAFTA). O nome do documento já diz bastante e hoje o México é um dos Estados institucionalmente mais deteriorados.
Ora, nunca é demais lembrar que o projeto dos Estados Unidos para a América Latina e para o Brasil jamais incluiu o desenvolvimento ou a integração regional e a Aliança do Pacífico está aí para demonstrar. Durante a ditadura militar ficou evidente o nível grave de ingerência externa na política e economia brasileira, basta recordar a obra “1964: A Conquista do Estado” de René Armand Dreifuss na qual denuncia as companhias participantes da Adela Investment Company em conspiração para a derrocada do governo João Goulart. “Adela” é o acrônimo para Atlantic Community Development Group for Latin America, grupo multibilionário formado em 1962, encabeçado pelo vice-presidente do grupo Rockfeller e que reunia cerca de 240 empresas industriais e bancos. O documentário Mario Wallace Simonsen, entre a Memória e a História, de Ricardo Pinto e Silva mostra como essa aliança afetou algumas companhias brasileiras, o caso da COMAL e da Panair do Brasil.
Eles nos querem vassalos e submissos e por isso alimentam nosso complexo de vira-lata. Em momento de crise diante do enfraquecimento político e econômico brasileiro, aproveitar-se das debilidades internas e da nossa falta de autoestima nunca foi tão interessante. É preciso derrotar a diplomacia soberana, altiva e criativa que fomos capazes de construir na última década. Querem nos ver de joelhos, pois “todos somos americanos”.
No século XXI o Brasil mudou sua cara. Hoje a melhora nas condições de vida do brasileiro em termos de saúde, moradia e educação fez com que viva cerca de dez anos a mais, sendo que a mortalidade infantil foi reduzida pela metade. As instituições brasileiras também amadureceram, tornando possível pela primeira vez em nossa história a apuração da corrupção entranhada nas elites políticas e econômicas. É lugar comum que estamos todos de acordo no combate contra a corrupção. A ironia da crise brasileira é que a Presidente que se pretende depor é uma das poucas pessoas que não está implicada em nenhum esquema de corrupção, ao contrário de quase todos ao seu redor, incluindo membros da “honrada” Comissão de Impeachment (40 dos 65 deputados estão sendo investigados na Lava Jato).
Por outro lado, quais são as propostas coerentes daqueles que pretendem o impeachment? Quais são as propostas coerentes da direita, no Brasil ou nos Estados Unidos ou na França? A prova desta incoerência é que proliferam alternativas políticas de esquerda como o Podemos na Espanha, o Bloco de Esquerda em Portugal, Syriza na Grécia ou o chamado Plano B para a Europa com a liderança de Varoufakis. Estamos, mesmo na esquerda, um pouco autistas nesse debate.
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