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A máscara de Moro

A máscara de Moro

Moro está sob a tempestade de granizos dos ódios que ajudou a semear. As hordas fascistas já farejam seu encalço e ele que se cuide, não tem mais foro privilegiado, não tem mais cargo e, depois de quase vinte e cinco anos, é cidadão comum.

As cenas parecem saídas de filmes de terror, corpos humanos empilhados em covas rasas. Atendentes de enfermagem, paramédicos, médicos, gente da gente se desesperando nas portas dos hospitais, contagem de mortos aos milhares, doentes, infectados, ruas desertas, ruas ocupadas por pessoas aos gritos negando que um apocalipse está para se avizinhar, animais retomando as praças, nós todos aterrorizados pelo que nunca havíamos sentido: o medo coletivo da morte. Da morte que chega silenciosamente, que a gente não vê e, por não vermos, não temos como nos esconder. Não há barricada, não há trincheira e tampouco possibilidade de contra-ataque. Fomos invadidos em nossas vidas, de surpresa. Afastados, nos distanciamos de nossos amores, de nossos parentes, de nossas atividades, de nossa vida comum e tudo parece ruir à nossa frente.

Ao contrário da música, o bar mais perto depressa fechou. Não nos reunimos mais e nossa existência se trasmudou para uma virtualidade agônica, em que vemos, em que vemos, mas não sentimos, não tocamos. Somos seres gregários e precisamos da troca pessoal, precisamos olhar, sentir, ver, solidarizar, abraçar, quem perdeu seus entes queridos, sequer pôde velar seus mortos, talvez a mais ancestral de nossas cerimônias.

O dinheiro está no fim. Pouco a pouco, as reservas, quando havia, estão se desmanchando e a casa, que sempre foi um lugar de refúgio, tornou-se um lugar de opressão. As crianças estão sem escola, estão sem poder correr e brincar (o ECA assegura o direito de praticar esportes e divertir-se, que ironia), as crises conjugais estão à flor da pele, a saudade queima, o tédio fez disparar mais de um bilhão de ligações para o reality show da TV, os dias se igualam, o home-office não é para todo mundo, acabou o futebol, os benefícios públicos de transferência de renda exigem uma olímpiada burocrática e milhares de pessoas não conseguirão obtê-lo pela razão mais singela: o sistema não foi feito para receber milhões de pessoas paupérrimas e urgentes.

Imbecis pululam nas redes sociais, guardas-morais  endoidecidos, índices de violência doméstica explodindo, panelaços todas as noites e tardes, medo de ligar de televisão ver imagens de gente morta, muita gente morta; mortes que antes eram apenas números, passaram a ter nomes e já conhecemos, pelo menos quem vive no olho do furacão pandêmico, alguém que partiu, levado pelo vírus.

Não se necessitava de mais nada, para estarmos a par e passo com o resto do mundo, não fosse termos também o pior Presidente da República do mundo.

De nada adiantou ser claro como a luz do dia, para ficarmos em imagens de samba, que o Presidente jamais tivesse capacidade de se solidarizar, é uma chave que falta em sua mente, a empatia. Isso transparecia de qualquer uma de suas aparições.

Era claro também que ele se cercaria do que houvesse de mais semelhante a ele. Não seria possível que formasse o Ali Babá algo diferente do que sua troupe de quarenta ladrões. E tome terraplanista, falso astronauta, pastora pentecostal, um liberal das cavernas, dúzias de militares, um chanceler absolutamente maluco, filhos bizarros e… Sérgio Moro, o Super- Juiz, o genro sonhado por toda mãe da classe média brasileira, o ídolo dos vovôs, o paradigma da moralidade, o caçador de corruptos, o juiz que prendeu Lula, quando Lula era favorito às eleições presidenciais. Como juiz, nunca, nenhum brasileiro duvidou de sua mais desabrida parcialidade. O Brasil se apaixonou pelo juiz que não dispunha do mais elementar atributo dos magistrados: a imparcialidade. Era um juiz que não o era, mas um acusador, que tutelava os acusadores que deixava claro que dominava.

E violou norma processual sobre norma processual, incendiou o país, sempre apoiado por uma mídia que hoje começa a contar também seus mortos, quando divulgou conversas telefônicas entre Lula e Dilma, que nenhum interesse guardavam com o processo e que teriam, pois que ser inutilizadas.

O Brasil sabia que Moro se sentia maior do que a Lavajato, que havia transcendido da figura de juiz e se tornara uma espécie de profeta, que tinha olhos e ambições para cadeiras mais exclusivistas do que a sua, estivessem no Supremo ou no Palácio Alvorada. No Brasil, a possibilidade de alguém se tornar herói é diretamente proporcional à sua capacidade de elaborar um discurso rápido, raso e maniqueísta, de fácil apreensão. Nossos roteiristas de novelas sabem disso há décadas e Moro se aproveitou desse saber acumulado e criou o Juiz honesto e raso, inimigo mortal dos corruptos. O juiz, que como juiz, negava toda uma magistratura e soube surfar nesse bommocismo indignado.

Sua entrada no Governo Bolsonaro era a grife que lhe dava a aura santa de honestidade do herói tímido, do herói encabulado. Sua gestão no Ministério da Justiça e Segurança Pública foi pífia. Um pacote medieval de medidas anticrime deixou claro que não era de segurança pública que ele entendia ou de processo penal ou mesmo direito constitucional, a impressão era a de que algum office-boy escrevera, inspirado nas lições ouvidas do tiozão do churrasco.

Houve aprisionamentos em massa, rebeliões de policiais militares pipocaram no país, mas nada de se ouvir a presença e liderança do Ministro. O pacote anticrime foi desfeito no Congresso e o que se trouxe foi uma esperança, nesse hospício chamado Brasil, que num governo autoritário se fez uma legislação que honrava finalmente nossas garantias constitucionais.

Nesse ínterim, já eram notórias as diferenças entre o herói encabulado e seu Chefe, tonto, bronco, burro e primitivo.

O problema estava em que Moro queimou seus navios para assumir o Governo, não era mais juiz e nem voltaria a sê-lo. Restava-lhe uma das cortes superiores e a única que ele parecia admitir era o Supremo. Moro já era Ministro, antes de surgir qualquer vaga. Da Vara ao Ministério, do Ministério ao Supremo e do Supremo para o Éter.

No meio do caminho, porém, havia uma pedra, ou algumas pedras, três, para ser mais exato, representados pelos filhos simbióticos do presidente, cujas façanhas vinham e estão sob investigação da Polícia Federal, teoricamente subordinada a Moro.  As travessuras dos filhos aumentavam gradativamente de gravidade e as relações ali parecem ser mesmo perigosas. As águas revoltosas poderiam virar o barco de Moro que, revelando uma esperteza mal avaliada anteriormente, abandona o posto de Ministro, deixando a pandemia queimar lá fora.

Revelou pelos mortos, pelos doentes, pelas milhares de pessoas que enfrentam a morte todos os dias na guerra contra o vírus, a mesma ausência de empatia e solidariedade de seu ex-Chefe.

A saída de Moro, ademais, evidenciou que ele não sabe ter amigos ou que imagina não precisar de amigos ou que os despreza, haja vista gravar conversas, imprimir conversas e entregar conversas de amigos à Rede Globo, que o recebeu de braços abertos, para uma sessão de descarnamento.

Parecia alguém à busca de uma colaboração premiada: relatou conversas privadas, revelou conversas com sua afilhada de casamento, revelou até conversas com o próprio presidente, que seriam comprometedoras, fossem no contexto em que se deram, mas sempre haveremos de lembrar que descontextualizar coisas é especialidade de Moro de longa data.

Que o presidente parecia imaginar ou querer algo que estivesse além de seus limites é quase inescondível e Bolsonaro terá muito a explicar no inquérito que será instaurado no Supremo Tribunal Federal, para onde, essa altura dos acontecimentos, paradoxalmente, já é inacessível para o ex-juiz.

Moro está sob a tempestade de granizos dos ódios que ajudou a semear. As hordas fascistas já farejam seu encalço e ele que se cuide, não tem mais foro privilegiado, não tem mais cargo e, depois de quase vinte e cinco anos, é cidadão comum.

Já sabemos que ele pediu ao presidente – sabe-se lá com que estratégia jurídica – uma pensão à família, alegando que não enriquecera no serviço público (o que, afinal, é o mínimo que se espera de qualquer funcionário público) e que precisava de um guarda-chuva. Não sei se tem carteira da OAB; se tiver que obtê-la, irá enfrentar ressentimentos passados e talvez não seja tão plácida e segura sua entrada na advocacia.

Algum governador estará pronto e a postos para fazer dele seu novo secretário da justiça, segurança ou coisa que o valha, só que precisarão ser rápidos, porque o verniz está se desgastando rapidamente e deixando claro que Moro nada mais é do que um embusteiro, dos melhores que já tivemos por aqui.

Certa feita, faz mais de duas décadas, um velho estelionatário me confessou: “Cometi um único erro na vida, achei que nunca seria pego. Paguei pela minha arrogância.”

A humildade, quando veio, chegou tarde demais.

Se Moro o tivesse conhecido, decerto tomaria outros cuidados. Ou pelo menos, teria decorado melhor seu papel de falso mocinho.

Artigo publicado originalmente no Jornal GGN.

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