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A morte e a política

A morte e a política

O atual governo não flerta com a morte; ele a beija à força

A morte é um tema tradicional da filosofia. Dos clássicos da Antiguidade, passando pelos medievais como Santo Agostinho, até contemporâneos como Schopenhauer, Arendt e Sartre, apenas para citar alguns exemplos, a morte sempre ocupou posição importante no pensamento filosófico.

Na verdade, diriam alguns, a filosofia só existe diante da perspectiva da morte. E faz sentido, se considerarmos que é a partir desta sombra implacável que nos lançamos na aventura do pensamento, que indagamos acerca de nossa singularidade diante do todo da natureza. A filosofia, com efeito, ao nos desafiar a refletir sobre a morte, a finitude e a incompletude, invariavelmente leva-nos a significar a vida e, com isso, estabelecer a condição humana.

A relação inextrincável entre os sentidos da vida e da morte é um dos pontos centrais da filosofia política. É na polis —que mais do que “cidade-estado” é o lugar da realização do humano— que se torna possível uma existência não resumida à mera reprodução biológica. Sob a política —que Aristóteles denominou de “ciência arquitetônica”— o ser humano revela-se na arte, na ética e na ciência. Na polis também surgem paixões e contradições, mas é onde também o amor se manifesta. A política é o modo de enfrentamento de nossa fragilidade diante da natureza e da inevitabilidade da morte.

A filosofia —destaco aqui a filosofia política— constitui-se como um processo de atribuição de significado para a vida e também para a morte. Há aqueles que consideram que apenas a vida de alguns importa. Já outros acreditam que toda vida tem valor. Desse modo, o valor que se dá à vida é medido pelo modo com que se trata politicamente a morte. Símbolos, gestos, funerais e luto, rituais, portanto, mais do que dignificar quem morre, sinalizam para os vivos que suas existências são importantes e que toda ausência será sentida pela comunidade. Ao mesmo tempo em que a morte nos coloca diante de nossa própria finitude e incompletude, o luto, o abraço nos que choram e a preservação da memória ancestral nos conectam e nos lembram que todos fazemos parte do exercício de tentar construir algo em comum, algo chamado humanidade.

A banalização da morte e o descaso com o sofrimento alheio que observamos por parte do presidente da República e seus apoiadores é mais do que “autoritarismo” ou “decadência civilizatória”.

Estamos diante de uma verdadeira “regressão antropológica”, uma espécie de retorno a condição pré-política, em que os rituais que preparam a vida e anunciam a morte nos foram extirpados. É um governo em que só se pensa em armas, que impõe restrições orçamentárias enquanto muitos passam fome e que nada faz para conter uma grave doença. Nas mais diversas tradições religiosas, a relação com a morte pode ser de temor, mas sempre de respeito. O governo brasileiro não respeita a morte, o que demonstra que é um governo sem filosofia, sem ciência e sem religião.

Bolsonaro nos retirou o direito de luto, nos deixou sem o direito de lidar com a morte como parte da vida. Sequer consegue aparentar tristeza ou calar-se diante da dor. Em muito esse homem contribuiu para que os brasileiros hoje tenham medo de viver, simplesmente porque também têm medo de morrer.

O governo que vier a suceder essa infâmia que toma conta de nosso país terá que, além de fazer todo o exato oposto, ressignificar a morte para que a vida possa ser valorizada. Um memorial terá que ser construído para todas as vítimas da Covid-19 e o país terá que viver seu luto.

Dedico esta coluna a todos os brasileiros que perderam alguém nessa pandemia. Que todas as pessoas que me leem agora sintam-se abraçadas e confortadas.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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