Amanhã vai ser outro dia
Em 26 de junho de 1968, aconteceu no Rio de Janeiro a Marcha dos 100 mil. Numa época em que o cálculo das multidões ainda era falho, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas contra a ditadura militar. Os presentes, na sua maioria estudantes, marcharam por liberdade, suspensão da censura e melhores condições de educação.
Naquele mesmo ano, o regime militar baixou o Ato Institucional nº 5, inaugurando o período mais violento da ditadura militar brasileira. Engana-se quem pensa que os militares fizeram tudo sozinhos.
Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, no livro “Brasil: uma Biografia”, dizem que para a tortura funcionar é preciso que existam juízes que reconheçam como legais e verossímeis processos absurdos, confissões forçadas e laudos periciais mentirosos. É preciso encontrar, em hospitais, gente disposta a fraudar autópsias e autos de corpo de delito e receber presos marcados pela violência física. É preciso ainda contar com empresários dispostos a fornecer dinheiro para a máquina de repressão funcionar.
Um jovem de 20 anos que saiu às ruas naquele 26 de junho hoje teria 72. Grupo de risco. Maior a chance de ser, de novo, um entre os 100 mil.
Em 16 de março de 2020, um dia depois de Bolsonaro, durante a pandemia, comparecer a uma manifestação, entrei no ar para a minha estreia na televisão convicta de que não haveria debate possível diante da crítica óbvia. Errei. Sempre existe quem apoie o absurdo.
Lembremos, portanto, de atribuir responsabilidade aos que se calaram diante da insistência em minimizar o impacto do vírus e ridicularizar o isolamento; aos que ativamente defenderam um medicamento sem comprovação científica de eficácia; a todos que, nesta guerra, contribuíram para que tantos brasileiros fossem largados à própria sorte.
Os 100 mil de hoje, assim como os de junho de 1968, têm algo a nos dizer. Mais uma vez resistem ao silêncio imposto e nos alertam que a barbárie não se faz por um homem só.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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