Não é novidade pra ninguém que aquele que nos desgoverna se trata de um fanático apologista de torturadores. Entretanto, nem tão percebida é a semelhança escancarada dos jogos de sedução que impõe à população em relação àqueles de que o torturador se vale para melhor dominar suas vítimas e, assim, delas extrair o que quiser.
Sob o jugo de seu algoz, o torturado se torna objeto inerme, tal qual criança desamparada nas mãos de um pai abusador. E a analogia é rica em significados, uma vez que o desamparo, a frágil condição que coloca a criança em situação de absoluta dependência em relação aos adultos – em especial, seus pais – estabelece uma confusão de afetos indispensável para que se estabeleça uma submissão dócil aos abusos que lhe são impostos, o mesmo se passando quanto aos torturados. De forma mais clara, dada a absoluta dependência do desamparado em relação àquele que se apresenta como seu provedor (seja do sustento, seja do amor, seja da própria vida), o ódio decorrente de eventuais sevícias pode ser rapidamente aplacado e até mesmo superado pela expectativa de amor e complacência que pode emergir do mínimo aceno de acolhimento.
Em suma, a vítima sente que tem – e via de regra efetivamente tem – sua vida nas mãos do abusador, que joga com isso, estabelecendo uma gangorra de afetos que vão desde ameaças e privações terrificantes, tendentes ao insuportável, a doses calculadas de alívio e promessas de satisfação, suficientes apenas para manter viva no abusado a esperança de escapar ao terror experimentado. Aliás, vale dizer, se a redenção futura condicionada ao perdão do verdugo (o que equivale à liberdade, à vida ou ao amor) não estiver no horizonte do seviciado, nenhum efeito se pode esperar da tortura imposta como meio. É pelo sequestro da esperança e de seus objetos, portanto, que o torturador alcança seus fins junto a suas vítimas.
Passando, então, à cena das sevícias públicas a que quotidianamente temos sido submetidos no Brasil, cumpre-nos, primeiramente, denunciar mais uma vez que aquele que nos tortura visando manter-se no poder a este ascendeu pelo voto de muitos que nele projetaram o Pai forte de suas fantasias infantis mais desamparadas[i]; o mito de um Pai protetor idealizado que, como invariavelmente ocorre, vai se convertendo em um minto de vestes rotas, que já mal disfarçam a verdade de um pai abusador realizado em nosso presente.
Em suma, o Pai suposto forte, fiel somente a seus Brilhantes amores, tem se valido de uma pandemia mortal para melhor torturar seus filhos[ii], que, quanto mais expostos à morte e à miséria, mais se fazem dependentes de seus favores e mais são colocados à mercê de seus caprichos, em condição de absoluto desamparo. O que se observa, portanto, são as dinâmicas características da gangorra da tortura acima referida: manobras que induzem à tensão máxima de privação, de modo que qualquer alívio ou promessa de satisfação sejam recebidos como verdadeiras dádivas da parte de quem os anuncia. Nessas circunstâncias, deveres públicos de proteção e assistência ganham ares de favores, sempre traduzidos em ações tardias, depois de elevados a níveis exorbitantes os graus de tensão decorrente da ameaça de miséria e da efetiva perda de milhares de vidas.
Não é outro o movimento que se observa no que concerne aos processos de análise e concessão dos ditos auxílios emergenciais, que, apesar do nome, parecem desconsiderar que as emergências pandêmicas vêm devolvendo milhões à penúria. Mais parece que se trata da mesada que se decide ou não conceder aos filhos que, literalmente, se identificam como zeros à esquerda, e não da necessidade – inclusive econômica – de se assegurar que milhões de pessoas não sejam lançadas à fome e que algum dinheiro circule a partir de seu consumo. E para além da demora na concessão do auxílio, não nos esqueçamos das várias falhas de organização para viabilizar seu recebimento, que, além de possibilitarem inúmeros desvios, obrigaram muitos a se aglomerarem em filas intermináveis, mais uma vez, como se não estivéssemos diante de uma pandemia mortífera cuja contenção depende da efetiva implementação de medidas de distanciamento social.
Aliás, a sabotagem sistemática às medidas de contenção da pandemia provocada pelo novo coronavírus faz parte do pacote de maldades que rege nosso algoz. Desde a prescrição de tratamentos precoces milagrosos – que já custaram milhões aos cofres públicos[iii] – ao induzimento de aglomerações[iv], passando pela recusa ostensiva à utilização de equipamentos de proteção, além de franca e injustificável resistência à vacina, a postura de nosso chefe do executivo federal tem sido a de absoluta indiferença pelas atuais mais de 1.000 mortes diárias causadas por uma doença que bateu a marca dos 240.000 óbitos só no Brasil.
Do mesmo modo, é de uma gangorra perversa que se trata quando se diz dos discursos oficiais irresponsáveis que, além de não terem qualquer compromisso com a ciência, mudam ao sabor dos ventos eleitoreiros, sua instabilidade expressando-se pelo caos que sufoca a saúde pública e seus pobres usuários, bem como pela sensação de insegurança geral diante de um futuro incerto, em que a morte espreita por antecipação. A mentira e a contradição são, hoje, princípios políticos que, a um só tempo, empurram a população à miséria e ao risco de morte, enquanto anunciam possíveis alívios para amanhã (o novo pagamento de um auxílio emergencial travestido de ação de caridade) e, quem sabe, uma satisfação maior em um futuro indeterminado (a efetiva vacinação de um número suficiente de cidadãos). Ou seja, acenos de esperança para conseguir de um número suficiente de torturados – especialmente daqueles lançados à miséria e para os quais qualquer migalha se torna dádiva salvadora – os votos necessários para uma reeleição que dispense a utilização de recursos menos sutis de dominação.
A propósito, se o plano A der errado, parece que já há um plano B, que nada de novo traz à história, já tendo sido aplicado por personalidades como Hitler, Mussolini e, recentemente, por Trump, nos EUA – este, frustrado de pronto. Trata-se de armar a população e formar milícias que assegurem a manutenção do poder, independentemente do atendimento às exigências democráticas[v]. Daí porque, ao invés de esforços concentrados no sentido de assegurar a vacinação da população brasileira – desde sempre sabotada, agora superficialmente encampada no discurso oficial, mas já tardia e insuficiente[vi] –, o que se observa são manobras incansáveis para facilitação do acesso a armas, as esperanças com que acena a suas vítimas revelando-se mais uma mentira saída da boca de um neocaudilho que, indiferente à dignidade e à vida de seus torturados, não tem hesitado em deixá-los – ou fazê-los[vii] – sucumbir quando deles não consegue o que deseja.
- Esse mi(n)to é filho puro de Tânatos, imune a Eros, revelando-se um escravo da morte até mesmo em seu mais Brilhante objeto de adoração .
[i] Que atendem especialmente aos desígnios de uma elite dedicada à manutenção do status quo e, logo, da conservação das massas em um intransponível estado de servidão voluntária – o que talvez explique todo ódio dirigido a Paulo Freire e a sua obra, dedicada à construção de uma pedagogia emancipadora, portanto consciente e crítica.
[ii] O que bem desvela a lógica covarde e obscena latente a tudo o que denunciamos: uma absoluta submissão aos considerados mais fortes (vide a adoração a torturadores e a bajulação a Trump) e a dominação violenta em relação aos mais fracos.
[iii] Por todas: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55747043
[iv] O último episódio passando-se em Santa Catarina: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2021/02/13/bolsonaro-provoca-aglomeracao-em-sc-e-e-cobrado-por-auxilio-pede-ao-governador.htm
[v] O que já passa a integrar uma espécie de imaginário coletivo, adubado por interpretações autoritárias e historicamente descontextualizadas de fórmulas como a que se expressa em “todo poder emana do povo”, do conceito de democracia e de (falsos) moralismos que se concentram em expressões como “cidadão de bem”. Nada mais rodriguiano… A propósito: https://revistaforum.com.br/noticias/se-partidos-como-o-seu-chegarem-ao-poder-serao-recebidos-a-bala-diz-deputado-bolsonarista-para-freixo/
[vi] Por todas: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2021/01/21/governo-bolsonaro-gasta-quase-r-90-milhoes-com-remedios-ineficazes-mas-ainda-nao-pagou-butantan-por-vacinas.htm
[vii] Por todas: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html
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