Citado no livro do general Eduardo Villas Bôas como uma “decepção”, Celso Amorim, ex-ministro da Defesa de Dilma Rousseff, se diz surpreso com a revelação de que o Alto-Comando do Exército chancelou a ameaça do então comandante da força ao Supremo Tribunal Federal, às vésperas do julgamento do habeas corpus que poderia libertar Lula em 2018.
“Sempre achei que eram legalistas”, diz o diplomata, que não hesita em qualificar o gesto como golpe. “Villas Bôas pode dizer que aquilo não era uma ameaça, só um alerta. Mas quando alguém faz um alerta com a arma na mão, você tem escolha?”
Leia a entrevista.
CartaCapital: O senhor se surpreendeu com a revelação feita pelo general Eduardo Villas Bôas?
Celso Amorim: Fiquei um pouco chocado. Não com a publicação que ele fez no Twitter há três anos, isso todos sabiam, mas com o fato de Villas Bôas ter consultado o Alto-Comando do Exército antes de fazer essa ameaça. Independentemente da formação doutrinária de um ou de outro, sempre achei que, em tempos recentes, os oficiais da cúpula das Forças Armadas eram legalistas. Fui ministro da Defesa no primeiro mandato de Dilma, em meio aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Eles estiveram presentes para receber os restos mortais de João Goulart, depois sepultado com honras de chefe de Estado. Os três comandantes, mais o chefe do Estado-Maior, também acompanharam o ato solene do Congresso Nacional que declarou a nulidade da destituição de Jango.
CC: Como interpretar esse “alerta” do general?
CA: Foi golpe. Villas Bôas pode dizer que aquilo não era uma ameaça, só um alerta. Mas, quando alguém faz um alerta com a arma na mão, você tem escolha? Para mim, está claro que foi ameaça, e ela surtiu efeito. O STF rejeitou o habeas corpus de Lula. Não dá para especular como seria o voto de cada ministro sem essa ameaça. Essa decisão não mudou apenas o destino do ex-presidente, mas do Brasil. Naquele momento, Lula liderava as pesquisas de intenção de voto e tinha grandes chances de se eleger. Isso abriu caminho para a ascensão da extrema-direita.
CC: Muitos integrantes do governo Dilma minimizavam a agitação dos militares, diziam que eram os generais da reserva que faziam barulho, mas os chefes das Forças Armadas tinham um perfil mais profissional.
CA: Eu tinha a mesma impressão. Jamais nutri esperanças de que eles admitissem que em 1964 houve golpe. Isso é complicado, vários generais da ativa têm relações, inclusive familiares, com o pessoal daquela época. Mas eles estavam seguindo a lei, e não por mero oportunismo. Tive uma relação muito boa com os comandantes das três forças, com o chefe do Estado-Maior. Eram legalistas. E aqui preciso fazer uma ponderação. Não quero minimizar a gravidade da revelação do general Villas Bôas, nada disso. Mas li em alguma reportagem que alguns integrantes do Alto-Comando daquela época não foram consultados. Não sei até que ponto Villas Bôas diz a verdade ou apenas tenta diluir a sua própria responsabilidade no episódio.
CC: No livro, Villas Bôas diz que o senhor o “decepcionou”.
CA: Na verdade, ele diz que se decepcionou com um comentário que fiz depois de sair do Ministério da Defesa. Fiz duras críticas a uma operação militar na Amazônia, para a qual foram convidados integrantes das forças norte-americanas, isso ainda no governo Temer. Villas Bôas diz que ficou decepcionado, é um direito dele. Eu mantenho a minha crítica. Jamais convidamos representantes dos EUA para exercícios militares. Isso é muito delicado. Não me recordo de um gesto semelhante no passado recente.
CC: Como o senhor avalia a cooptação dos militares por Bolsonaro? Que imagem fica para as Forças Armadas?
CA: Uma imagem muito ruim. Ao contrário do que alguns amigos do campo progressista pensam, nós precisamos das Forças Armadas. O Brasil é enorme, rico em recursos naturais, faz divisa com dez países, são 17 mil quilômetros de fronteira terrestre. Temos o maior litoral do Oceano Atlântico, o pré-sal, a maior reserva de água doce do planeta. Precisamos proteger essas riquezas. A presença dos militares no governo, sobretudo de oficiais da ativa, como é o caso do general Pazuello, legitima as ações de Bolsonaro, da produção de cloroquina ao desmonte da Casa Rui Barbosa. As Forças Armadas levaram décadas para se livrar da imagem negativa da ditadura. Agora serão associadas ao desastre do governo Bolsonaro.
Publicado na edição n.º 1145 de CartaCapital, em 19 de fevereiro de 2021.
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