As ameaças que pairam sobre o país tornaram-se insuportáveis
O médico sanitarista Gonzalo Vecina (O Estado de S. Paulo, 22/5) chamou a atenção para dois documentos publicados pelo Ministério da Saúde, agora sob comando militar.
O primeiro, direcionado aos médicos, embasa a utilização da cloroquina para tratamento da Covid-19 com um alerta paradoxal: “Até o momento não existem evidências científicas robustas que possibilitem a indicação de terapia farmacológica específica para Covid-19”.
O segundo, dirigido aos pacientes, obriga-os, antes de ministrada a droga, a assinar termo de ciência onde se lê: “Compreendi que não existe garantia de resultados positivos, e que o medicamento proposto pode inclusive agravar minha condição clínica, pois não há estudos demonstrando benefícios clínicos”.
Combinados, os documentos induzem médicos e pacientes a se arriscarem, num gesto desesperado de desafio à ciência. O caso não deixa de ser emblemático de um governo cujas medidas, apesar de não terem eficácia, provocam graves efeitos colaterais. Mas ele revela algo mais profundo.
Tomemos o caso das recentes nomeações de militares e indicados do centrão para postos-chave do governo, até outro dia a cura e a doença, respectivamente.
O centrão, como se sabe, serviu a vários governos, sempre como coadjuvante. Sem condições de apresentar um projeto para o país, atuava como linha auxiliar de quem dispunha de uma visão de futuro, em troca de espaço na máquina pública, decorrência infeliz do nosso sistema político-partidário.
Essa, porém, é a primeira vez que o centrão adere a um governo sem projeto, um governo que é puro movimento, expressão da desigualdade e da intolerância que ele próprio cultiva e celebra na reprodução extática daquilo que se considerava inadmissível, um governo que se move em proveito do desde sempre estabelecido.
Num certo sentido, essa decisão não deixa de ser, no plano da política, aquilo que se verificou, em alguma medida, no plano da religião: ela significa a conversão do centrão ao charlatanismo, o que pode lhe dar algum prestígio político no futuro, a depender dos efeitos políticos da oferta de cloroquina e água “consagrada”.
Mas, mais importante, o comportamento dos militares bolsonaristas no governo, inclusive quanto à chegada do centrão, significa que eles tampouco têm um projeto de país em mente. Sua adesão parece marcada por ambição pessoal, em alguns casos, ou por mera simpatia pelo caráter manifestamente autoritário do governo, enquanto o próprio conceito de nação se esfarela.
Os democratas podemos abraçar projetos diferentes, mas há aquilo que deve nos unir acima de tudo. As ameaças que pairam sobre o país tornaram-se insuportáveis.
Artigo publicado na Folha de S.Paulo.
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