Por Álvaro Filho
Ideia de um empresário brasileiro, quer ser o melhor restaurante francês do mais francês dos bairros lisboetas. Para isso, inspira-se na vida do pintor Cícero Dias, o amigo de Picasso que, a partir de Lisboa, participou na resistência ao nazismo.
Pernambuco é um dos mais pequenos estados brasileiros em território – tem uma área semelhante à de Portugal – mas isso nunca abalou a conhecida autoestima dos pernambucanos. Uma parábola dá a dimensão precisa dessa fama: é comum ouvir por lá que é no centro da capital Recife que os dois principais rios da região, o Beberibe e o Capibaribe, desaguam para se unirem e formarem… o Atlântico.
Foi imbuído desse espírito que o pernambucano Paulo Dalla Nora desaguou em Lisboa com a não menos pretensiosa intenção de abrir o melhor restaurante francês de Campo de Ourique, justamente o mais francês dos bairros lisboetas. A funcionar desde julho, o restaurante Cícero promete, assim como os dois rios do Recife, unir o caudal do paladar e da visão para formar um oceano de experiência gastronómica e sensorial.
Para isso, Dalla Nora transformou o espaço também em galeria de arte, expondo parte do acervo pessoal dedicado a pintores modernistas e contemporâneos do Brasil, a maioria deles pernambucanos, como Cícero Dias – a quem homenageia no nome do restaurante – um artista exilado em França, amigo de Picasso, preso pelos nazis e que, após ser trocado por espiões alemães, foi adido cultural em Lisboa e herói da resistência francesa.
Cícero Dias que em 1929 escandalizou o país numa tela de 12 metros de largura por dois de altura, conhecida como a Guernica Brasileira. Um trabalho no melhor estilo “faça amor, não faça guerra”, com mulheres e homens nus pelos 12 metros da pintura, que originalmente era ainda maior, antes de ter três metros cortados por um irado senador da República, em nome da moral e dos bons costumes.
Um imenso tríptico que ilustra também a já citada autoestima pernambucana, afinal, a Guernica Brasileira pintada pelo Cícero que batiza o restaurante de Dalla Nora tem como título original:
Eu vi o mundo… ele começava no Recife.
Um restaurante inspirado na vida de um artista
É Cícero Dias quem dá as boas-vindas quando se chega ao Cícero, colorindo as paredes da Sala Modernista, no rés-do-chão do restaurante, o primeiro dos três salões que compõem o espaço com cerca de cem metros quadrados, divididos nos dois pisos do prédio onde antes funcionava uma loja de roupas, no número 171 da rua Saraiva de Carvalho.
“O Cícero Dias encarna a filosofia do restaurante: um brasileiro que migrou para Paris e produziu arte em França com raízes brasileiras. A proposta do Cícero é justamente essa, a de uma gastronomia francesa com fortes raízes brasileiras”, explica Paulo Dalla Nora, 47 anos, um ex-banqueiro, proprietário de empresas de tecnologia renováveis e especializadas no processo de conversão paper to digital.
Empresário, mas antes de tudo, um admirador do trabalho do pintor que teve o privilégio de conhecer pessoalmente. O ano era 2002 e o artista brasileiro havia assinado um ousado projeto no Recife, a Rosa dos Ventos, uma gigante representação dos pontos cardeais no marco-zero da cidade, reforçando a ideia de que, se o mundo começa no Recife (e o oceano Atlântico também), era ali que deveria estar a grande bússola a guiar a humanidade.
“O Cícero Dias já estava muito doente e a câmara do Recife não tinha condições financeiras de trazê-lo na companhia da esposa e dos cuidadores, em primeira classe, para a inauguração. Não poderia ficar de braços cruzados e uni-me com outros dois amigos e financiámos a viagem e a hospedagem deles”, recorda Paulo Dalla Nora.
Meses depois, voltariam encontrar-se, desta vez em Paris, no atelier do artista. Foi aí que o empresário adquiriu parte dos trabalhos expostos no salão de entrada do restaurante em Campo de Ourique, que compõem a coleção de litogravuras em assinadas por Cícero Dias em homenagem ao cinquentenário de Casa Grande & Senzala, a icónica obra de outro famoso pernambucano, o sociólogo Gilberto Freyre.
Há ainda a pintura a óleo Mulheres na mesa, que só entraria para a coleção em 2005, dois anos após a morte de Cícero Dias, aos 95 anos. A tela exigiu criatividade de Dalla Nora. Inatingível até mesmo para os padrões dele, o empresário decidiu que seria o presente de casamento com a arquiteta franco-brasileira Maria Fernanda Freitas.
Antes mesmo da febre dos crowdfundings, Dalla Nora criou um misto de lista de presentes e sistema de cotas para os convidados com uma galeria de arte. A iniciativa vingou e a prenda de casamento hoje está pendurada sobre a escada que dá acesso ao andar inferior do restaurante.
Ainda no rés-do-chão, é possível admirar um imponente vitral assinado pela francesa Marianne Peretti. Radicada no Brasil, colaborou com o arquiteto Oscar Niemeyer na produção dos magistrais vitrais que adornam vários monumentos da capital federal brasileira, entre eles a Catedral de Brasília.
Arte como antídoto para o Brasil atual
Paulo Dalla Nora caminha lentamente, os passos a acompanharem o compasso da voz de timbre baixo, um nível acima do sussurro. Como um guia de um museu, apresenta as obras nas duas salas do piso inferior, a “Contemporânea” e a “Origem”.
Lá estão dois óleos sobre tela de Sidnei Tendler, pinturas de Félix Farfan, Bruno Vilela, Kilian Glasner, Lula Cardoso Ayres e Samico, além de litogravuras de João Câmara – um homem e uma mulher, a indicarem a entrada da casa de banho masculina e feminina – e xilogravuras de Samico. Nomes que talvez não digam muito aos portugueses, mas representativos na produção artística brasileira do século passado e contemporânea.
Há ainda um impecável oratório e duas obras que chamam a atenção pela dimensão e criatividade: a primeira, um imenso painel de madeira talhada em baixo relevo com cenas do quotidiano do Nordeste brasileiro, e a segunda, do conceptual Paulo Bruscky, uma colagem emoldurada, instalada sobre um outro quadro, o quadro de luz.
O acervo da galeria do restaurante compõe os 70 quadros e 20 móveis da coleção particular vinda do Brasil em dois contentores. “Levaram três meses a chegar e já estava preocupado. Claro que havia o seguro, mas o dinheiro não paga o valor sentimental”, diz Dalla Nora. A ideia inicial era até doar as obras a uma instituição portuguesa, mas o empresário ainda não sabe se haverá interessados deste lado do hemisfério.
A mudança realizada nesse nível de esforço e investimento retrata o desgosto de Dalla Nora com a realidade brasileira, o principal motivo da vinda para Portugal.
“O presidente é um problema, mas não é só ele”, pontua Dalla Nora, cujos amigos estranharam o facto dele migrar a poucos meses da eleição que pode tirar Bolsonaro do poder. “O bolsonarismo deu amálgama a um sentimento antes difuso, de ódio, intolerância e perseguição, um retrocesso civilizacional que ainda vai perdurar por anos, mesmo com uma eventual saída dele”, argumenta.
O empresário diz-se especialmente dececionado com a elite económica e política do Brasil. “Nos Estados Unidos, Trump teve nove por cento dos votos em Manhattan, enquanto Bolsonaro ultrapassou os sessenta nos Jardins, em São Paulo, o maior PIB do país. E isso diz muito sobre os nossos ricos e poderosos”, continua.
Na prática, a adesão bolsonarista entre a elite brasileira acabou por limitar as movimentações do empresário. “A vida social e profissional exigia um cuidado enorme, para não se mencionar política num jantar de negócios ou em receções na casa de amigos. Comecei a ter de fazer listas para saber se aceitava um convite ou convidava alguém. E quando se chega a esse ponto é preciso refletir.”
Herói da resistência e compadre de Picasso
Assim como Dalla Nora em relação ao Brasil de hoje, em 1937 Cícero Dias também decidiu deixar o Brasil por, na falta de um termo melhor, “incompatibilidade” política.
Simpatizante dos ideais comunistas – no seu atelier no Recife, costumava pintar retratos de Lenine a pedido dos estudantes universitários – Cícero Dias passou a ser perseguido pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, com direito a pernoitas na prisão.
Decide então buscar refúgio em Paris, encorajado pelo amigo e pintor Di Cavalcanti. É na Cidade Luz que o trabalho de Cícero Dias ganha novas influências. Amigo de Matisse e Picasso – este último, padrinho da filha dele, Silvia – o brasileiro começa a circular pela cena artística local, guiado pelo compadre cubista pelos cafés parisienses.
Uma amizade retratada no documentário Cícero Dias, o Compadre de Picasso, de Vladimir Carvalho.
Paris, porém, nem sempre foi uma festa. Com a guerra e a decisão do Brasil de cortar relações diplomáticas com a Alemanha e a Itália, acabou preso em 1942 na Paris ocupada pelos nazis e, ao lado do escritor Guimarães Rosa e outros artistas e intelectuais brasileiros, enviado para uma prisão em Bade-Bade, no vale do Reno.
A libertação só foi possível graças à negociação diplomática entre os dois países, envolvendo a troca dos prisioneiros por espiões nazis detidos no Brasil. Assim, em 1943, após uma escala em Vichy, Cícero Dias é forçado a deixar França, não sem antes incumbir Picasso de ser o guardião das obras no seu atelier parisiense.
Em liberdade, o artista passa a viver em Lisboa, exercendo a função de adido cultural na Embaixada do Brasil. É no Portugal das restrições impostas por Salazar que Cícero Dias realiza duas exposições – a segunda, no Porto – apesar do risco de escandalizar a conservadora e religiosa sociedade portuguesa com o seu traço libidinoso.
Mesmo vencidas as desconfianças, pelo menos um dos quadros programados para a exposição acaba censurado pela Secretariado de Propaganda Nacional salazarista: um retrato de Cícero Dias pintado pelo amigo Picasso, embargado “por questões políticas”, nas palavras do próprio artista, em carta ao amigo Gilberto Freyre.
Ainda na capital portuguesa, o pernambucano ilustrou a edição de 1944 de A Ilha dos Amores (Ática) de Luiz de Camões.
Lisboa também é palco do momento mais marcante da vida de Cícero Dias. É na capital portuguesa que lhe cai nas mãos um poema enviado pelo poeta francês e amigo Paul Éluard, um dos intelectuais envolvidos na resistência em território francês. Com o texto, a missão de traduzi-lo para o inglês e fazê-lo chegar às tropas aliadas no front.
O adido cultural brasileiro pede ajuda à embaixada britânica e o Liberté de Éluard acaba traduzido pelo poeta inglês Rolland Penthouse e impresso em milhares de folhetos, lançados pelos aviões da RAF sobre os soldados aliados no teatro da guerra.
Pelo feito, Cícero Dias foi considerado um herói, sendo posteriormente condecorado com a Ordem Nacional do Mérito, a mais alta honraria concedida pelo governo francês. A passagem do pernambucano por Lisboa encerra-se em 1945, após o fim da guerra, quando regressa a Paris, onde viveria até morrer, em 2003.
Uma experiência que tem o seu preço
É esta história de arte e resistência que adorna as paredes do restaurante Cícero em Campo de Ourique e tempera uma ementa concebida para ir além da gastronomia e propiciar uma “experiência” aos dispostos a pagar por ela.
A carta assinada pelo chef português Hugo Cortez conta apenas com sete pratos – três de carne, outros três de mar e um vegetariano – com o valor a variar entre os 20 e 39 euros. O preparo faz jus à proposta de uma gastronomia francesa com base brasileira e mistura pato, borrego e robalo com caju, mandioca, dendê e mel de engenho.
A harmonização da ementa franco-brasileira é feita com vinho português, através de rótulos oriundos de pequenas vinícolas, num trabalho de eno-garimpo assinado pelo sommelier português Rodolfo Tristão, responsável por montar cartas para restaurantes galardoados com estrelas Michelin.
A aposta de Paulo Dalla Nora claramente é o público mais exigente e de maior poder de compra, segundo ele, ainda órfão de opções em Lisboa. “Para quem se hospeda nos hotéis-boutique da cidade, a oferta de alta qualidade gastronómica é menor do que os dias a passarem turistando em Lisboa”, resume o empresário.
Um brasileiro que, como bom pernambucano, tem uma imensa autoestima, grande o suficiente para sem receios colocar um famoso pintor de retratos de Lenine e a famosa lei da oferta e procura de Adam Smith no mesmo prato.
Um verdadeiro artista.
Artigo publicado originalmente no A Mensagem.
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