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“Complexo Marvel” ajuda a explicar o fenômeno do “lavajatismo”, diz Ney Bello

“Complexo Marvel” ajuda a explicar o fenômeno do “lavajatismo”, diz Ney Bello

Por Rafa Santos

O fenômeno do juiz que se enxerga como super-herói e, assim, se entrega ao moralismo e ao justiçamento, ajuda a explicar a situação da jurisdição criminal brasileira, em especial o que se atribuiu a pecha de “lavajatismo”.

É o que pensa o desembargador federal Ney Bello, que participou do debate “O Futuro da ‘Lava Jato’ e seus métodos”, um dos painéis do evento promovido pela Escola de Negócios Trevisan e o Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa nesta segunda-feira (25/11), dedicado a discutir os impactos da força-tarefa na economia brasileira.

“Eu creio que existe uma série de elementos que constituíram o ambiente no qual nós vivemos na jurisdição criminal brasileira que precisam ser analisados e pensados de maneira muito percuciente porque não me parece que seja a melhor forma de exercer a jurisdição criminal”, afirmou.

Com 25 anos de magistratura criminal — completados no dia do evento—, Bello disse acreditar que quatro pontos ajudam a entender o “lavajatismo”. O primeiro é o fato de que tanto o cidadão comum quanto membros do Judiciário parecem ter atingido um limite de tolerância com a corrupção.

Em segundo lugar, os juízes passaram a adotar uma visão justiceira sobre a própria atuação. “É o que eu chamo de ‘complexo Marvel’. A ideia que os juízes passaram a ter de si mesmos como super-heróis imbuídos da nobre missão de consertar o mundo”, diz.

Para Bello, essa ideia fez com que parte da magistratura passasse a flertar com o “exibicionismo”, com o “heroísmo” e ajudasse a criar a figura do que ele chama de “juiz combatente”. “Se o juiz for combatente, se todo mundo for jogador, quem vai respeitar o apito? Se todo mundo estiver jogando com interesse de fazer gol em uma direção qualquer? Abrimos mão desse lugar específico de fala em que é possível entender acusação e defesa em pé de igualdade e passamos a jogar o jogo dos outros jogadores”, comenta.

Outra falácia que explica o “lavajatismo”, para Bello, é a construção da figura do “juiz moralista”. “É o juiz que percebe o outro com uma moral diferente daquela que percebe a si próprio. É comum em nossas listas de juízes frases como ‘não existe profissão mais importante que o magistrado’. Dá vontade de perguntar: meu filho você já ouviu falar em neurocirurgião de hospital público? Tenho a impressão que é uma profissão um pouco mais importante do que aquela que escolhemos”, explica.

“Criamos esse perfil de um magistrado voltado para si próprio. Com uma autoconsideração altíssima de si mesmo. Mergulhado em um perfil Marvel de consertar o mundo. Junto a isso, temos também uma alteração de percepção do senso comum e uma inversão de legitimidade”, argumenta.

Segundo ele, essa inversão de legitimidade se dá quando juízes trocam a lei pelo senso comum. “Dona Maria batendo bolo tem todo direito de achar que uma sentença minha é horrível e que nós somos favoráveis a corrupção. Isso é direito dela. O problema é quando o senso comum teórico dos juristas começa a acreditar que esse senso comum do cidadão disperso passa a ser legitimador de sua própria decisão”, comenta.

A inversão de legitimidade, somada à necessidade de valorização que parte do Judiciário tem de si própria e o desejo de buscar resultados, ajudou os magistrados a “surfarem” no senso comum e com a imprensa. “Daí criamos um senso punitivista que, com o conjunto de todas essas características que citei, forma o ‘lavajatismo’, que é um fenômeno maior que a ‘lava jato’. Essa onda da necessidade de se ter um juiz imparcial. De um juiz que inverte a legitimidade de suas decisões e mergulha no complexo Marvel e troca a posição de árbitro de um jogo para virar um jogador a mais de um dos”, finaliza.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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