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Depredam o centro, mas não a memória

Depredam o centro, mas não a memória

O andar pelo centro de São Paulo provoca variadas sensações que atingem o físico, a memória e os sentimentos. Não fossem os efeitos da idade a má conservação das suas calçadas, por si só, trariam ao andarilho dificuldades no percurso e riscos de tropeções e até de quedas. Sem falar do abandono dos prédios, da sujeira instalada, e dos moradores de rua, como reflexo da trágica desigualdade social.

No entanto, a memória é ativada e dela decorrem preciosas recordações que por sua vez fazem aflorar sentimentos de saudade, alegria, alguma tristeza e acima de todos uma agradável sensação de que valeu a pena.

Essa viagem ao centro de São Paulo me remete ao exercício da minha advocacia em seu nascedouro, nos idos de 1962, quando comecei a trabalhar com meu pai no escritório da Praça da Sé, nº 399. Era “ofice Fórum”, até 1969 quando colei grau. Da experiência na advocacia cível, meu pai só trabalhava nessa área, para a criminal, foi uma transição rápida pois logo que me formei passei a ser nomeado defensor dativo pelo presidente do 1º Tribunal do Juri, Dr. Edgardo Severo de Albuquerque Maranhão. O primeiro caso criminal me foi indicado pelo já consagrado advogado criminal, José Carlos Dias.

O percurso no tempo vai, portanto, dessa época até alguns anos atrás e traz às minhas lembranças as ruas e os prédios por onde desenvolvi as minhas atividades. O magnífico prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo que abrigou durante muitos anos os cartórios e as varas criminais; o Fórum João Mendes, com a parte cível e, posteriormente o Palácio Mauá, para onde foram as varas criminais testemunharam uma época

Dos prédios ligados ao direito e à justiça ainda devem ser citados a Faculdade do Largo de São Francisco; a Ordem dos Advogados ao lado da Catedral; a Associação dos Advogados também no Largo de São Francisco. Algumas livrarias jurídicas se concentravam naquela região : Saraiva, na rua José Bonifácio e posteriormente na Praça João Mendes; Forense, em frente à Faculdade de Direito; Revista dos Tribunais, rua Conde do Pinhal e inúmeros sebos que também vendiam livros de direito.

Ainda falando de prédios e para lamentar o ímpeto destrutivo provocado pelo desapego à história e à arquitetura da cidade, sito um prédio que não fazia parte do acervo jurídico, mas que teve um significado extraordinário para São Paulo e para os que o conheceram e o frequentaram. Trata-se do chamado Palacete Santa Helena, localizado na Praça da Sé, à direita em direção ao Pátio do Colégio. Foi destruído, junto com todo o quarteirão, para que a Sé e a praça Clóvis Bevilaqua fossem unidas e surgisse uma única.

Extinguiram a Clóvis do mapa, tal como fizeram com a Praça Onze no Rio de Janeiro. A Praça carioca simbolizava o samba, o seu início e o seu desenvolvimento. Na verdade, era um símbolo do próprio Rio, da sua cultura popular, cultura de raiz que surgiu da junção de outras várias, de origem africana umas, dos morros cariocas outras, das famosas tias que abriam as suas casas para sambistas, capoeiristas, mães e pais de santos e até intelectuais que lá frequentavam.

A nossa Praça Clóvis, mais sóbria, consentânea com uma cidade mais austera e sisuda, possuía, tal como a carioca, a dignidade dos logradouros públicos marcados por tradições, frequentadores típicos, prédios que esbanjavam história e tradição.

O quarteirão da Praça da Sé que foi derrubado abrigava como dito o Palacete Santa Helena, o magnífico Santa Helena, quer pela sua arquitetura, quer pelo que continha. Um teatro que se tornou célebre e um cinema. Mas, o principal, lá estavam instalados vários ateliers de pintores que constituíram o chamado Grupo Santa Helena. Rebolo, Volpi, Bonadei, Clóvis Graciano, Penachio, Zanini e outros que transformaram o Santa num símbolo das artes plásticas de São Paulo.

Devo registar que o Palacete me traz gratas recordações, especificamente do seu cinema, cujo nome era Cine Mundi. Por que a sua importância? Ele tinha sessões às nove da manhã. Isso nos levava a gazetear as aulas para assistir às sessões matinais. Trocávamos as salas de aula pelas do cinema. E lá, aprendíamos sempre alguma coisa.

Puseram o Santo Helena e a sua memória abaixo.

Voltarei às lembranças dos Fóruns e de sua gente.

Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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