Desferir chutes em uma mulher grávida é uma prova robusta para tipificação de indução ao aborto
É tão vulgar que chega a ser quase inacreditável; é tão vil, tão reles, tão torpe que nos causa um embaraço de olhar, uma vergonha de ver, uma dor indescritível, talvez por constatarmos que, sim, chegamos a esse ponto. A risada nos mói por dentro, vinda de um homem branco, evidentemente rico, tipo caucasiano, que consegue, de uma forma quase – diria – insuperável, resumir todo seu desprezo, todo seu desdém, muito mais que toda sua soberba, algo que poderia ser quase um gesto sociopático de indiferença pelo outro, no caso, pela outra.
Em Direito, quando se pretende justificar a prisão cautelar de alguém ou uma exasperação de pena, dizemos que aquele um, normalmente o réu, “revelou absoluta insensibilidade moral”, que é essa incapacidade de refletir sobre o mal feito, de produzir alguns instantes, senão de arrependimento, ao menos, de respeito. A risada escancarada exibe um gesto de inteiro estranhamento, permeada por uma leitura, feita aos socos, como de quem mal sabe ler, não obstante o dinheiro que possa ter no banco, de uma sentença condenatória.
Falo do vídeo, que não mostrarei porque é impublicável, em que o cantor sertanejo Victor Chaves tripudia sobre a pena que recebeu por ter dado chutes em uma mulher grávida. Quando atuava no júri, sempre que pensava em um exemplo concreto de covardia, imaginava a cena de um homem a chutar uma mulher grávida. Os jurados e as juradas concordavam: é realmente necessária uma covardia, mais do que aquela normalmente desprezível, para se chutar uma mulher grávida, pelas mais óbvias razões.
“O cantor tripudia da condenação que sofreu e esse travo amargo hei de sentir, ele está certo. Depois de chutes na barriga de uma mulher grávida, a pena que lhe restou foi de ridículos 18 dias, quase um dia por chute que deu.”
Não entendo como não passou pela cabeça dos operadores de direito que chutes na barriga de uma mulher grávida é, no mínimo tentativa de promover-lhe um abortamento, à evidência, sem seu consentimento. Ninguém leu o art. 125, do Código Penal? Ninguém se deu conta que uma mulher grávida atirada no chão e chutada poderia, ao menos, potencialmente sofrer a interrupção de sua gestação?
Que argumento canastrão é esse que não poderia ser ele enquadrado na Lei Maria da Penha, por não terem os peritos encontrado vestígios de agressão? Desde quando se há de exigir vestígios de agressão, para fins da Lei Maria da Penha, que visa justamente a proteção da mulher de relações abusivas e opressoras?
Uma única explicação apenas é possível: machismo, ainda que a sentença tenha sido prolatada por uma juíza de direito, motivo a se lamentar duplamente. O machismo não gera a impunidade, não alimenta a impunidade.
O machismo é a própria impunidade. Enquanto prevalecer, essas agressões e essas decisões, igualmente horrendas, se repetirão; ninguém precisa estimular o machista, ele vem já estimulado por uma licença para punir, agredir e matar, que imagina ter pela condição de macho que ostenta. Macho e covarde.
A cultura patriarcal é o berço dessa decisão, da qual se espera que alguém, com pensamento republicano e livre, venha a recorrer. O Ministério Público de Minas Gerais não pode, em hipótese alguma, deixar esse assunto transitar em julgado.
O raciocínio óbvio: se fosse ele negro e favelado, alguém cogitaria de presenteá-lo com vias de fato, ou estaria engrossando as estatísticas prisionais? Se ao invés de retirá-la de um elevador de luxo, ele o fizesse nas vielas imundas de uma comunidade abandonada de tudo, alguém pensaria em 18 dias, imediatamente convertidos em alguma pena alternativa?
Ou alguém está pensando que esse cantor ficaria mesmo seus módicos dezoito dias em cana? Ora, por favor, ele teve mil motivos para rir, imaginando dar um cavalo de pau na fazenda com um Camaro amarelo.
Há condenações que nos envergonham porque revelam perseguições ideológicas abjetas, que nos envergonham porque transformam o Direito Penal em instrumento de perseguição e de opressão, milhares delas. Mas, também existem as condenações que nos impressionam pelo seletivismo inaceitável e pela revelação das entranhas de um país dominado pelo preconceito e pela supremacia de gênero.
E eu que sempre odiei essa música sertaneja, do Camaro amarelo, passo a odiá-la ainda mais, porque é o veículo cultural dessa cultura machista, misógina e sexista. O sucesso dessas duplas sempre me aterrorizou.
Elas são as vias do retrocesso.
Artigo publicado originalmente na Carta Capital.
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