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Encarceramento feminino e tráfico de drogas: uma tragédia invisível

Encarceramento feminino e tráfico de drogas: uma tragédia invisível

TATIANA, 24 anos, grávida do segundo filho, foi denunciada por associação para o tráfico de drogas por colocar créditos em um celular a pedido do marido preso – que dizia que precisava deles para se comunicar com ela, mas, na realidade, os utilizava para continuar gerenciando o comércio ilícito de entorpecentes de dentro do presídio.

OLGA, 21 anos, russa, foi presa quando, a serviço de uma organização criminosa internacional, desembarcou no aeroporto de Guarulhos com cocaína para distribuição e venda no Brasil. Denunciada por tráfico internacional de entorpecentes, aguarda seu julgamento em um presídio no interior paulista. Sem falar português e sem família ou amigos no país, atravessa os dias sozinha, em silêncio. Para passar o tempo, faz tricô.

MÁRCIA, 36 anos, foi denunciada e condenada por lavagem de dinheiro e associação para o tráfico por ter “emprestado” sua conta corrente a seu companheiro, que alegava ter restrições bancárias – mas, que na realidade, utilizava a conta da namorada para conferir aparência lícita aos ganhos ilegais auferidos com o tráfico de entorpecentes.

As mulheres que protagonizam os relatos acima tiveram seus nomes trocados neste artigo, a fim de resguardar sua intimidade. Suas histórias, todavia, são reais – e se repetem, aos milhares, nos presídios femininos Brasil afora, nos quais a esmagadora maioria da população carcerária é fruto de variações dessas mesmas narrativas.

De fato, de acordo com perfil elaborado pelo Departamento Penitenciário Nacional ao realizar o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) no ano de 20171, existiam, naquele ano, 42.355 mulheres encarceradas no Brasil – número que corresponde a aproximadamente 5% do total da população carcerária do país.

Desse montante, 62% são negras, 50% têm entre 18 e 29 anos, 74% têm filhos, 45% não concluíram sequer o ensino fundamental, e 41% cumprem penas que vão dos 4 aos 8 anos de encarceramento – sendo que a esmagadora maioria dessas penas foi cominada em função da prática dos delitos de tráfico de drogas (64%), roubo (11%) e furto (8%)2.

Ou seja: a mulher presidiária brasileira é negra, jovem, mãe, semi-analfabeta, e está atrás das grades pela prática de crimes não violentos – no mais das vezes, tráfico de drogas.

É raro, todavia, ver uma mulher nos postos de chefia das grandes organizações criminosas dedicadas ao comércio ilícito de entorpecentes: o papel das mulheres no tráfico é, via de regra, periférico, limitando-se a funções de cunho administrativo – tais como a realização da contabilidade da quadrilha – ou, ainda, a atividades relacionadas ao transporte da droga, tarefa para qual se utilizam, muitas vezes, do próprio corpo (“mulas”).

São, como se vê, posições laterais, facilmente substituíveis e, por isso mesmo, praticamente invisíveis.

A lateralidade, no entanto, aqui, não é via de mão dupla: embora a mulher seja pouco relevante para o tráfico, o tráfico não é – nem de longe – pouco relevante para a mulher. Muito ao contrário, aliás: o comércio ilegal de entorpecentes é, como visto, de longe, o maior responsável pelo encarceramento feminino no Brasil.

E, embora o percentual de mulheres encarceradas possa parecer pequeno comparado ao de homens – representando apenas 5% da população carcerária total -, fato é que ele vem crescendo exponencialmente – e de forma ainda mais vertiginosa que o masculino.

De fato, no início dos anos 2000, menos de 6.000 mulheres se encontravam atrás das grades no Brasil. Já em 2016, esse número ultrapassou os 40.000 – o que representa um assustador aumento de mais de 650% em apenas 16 anos, e faz com que a população carcerária feminina brasileira seja a que mais cresce no mundo3.

E o grande marco encarcerador desse período foi, sem sombra de dúvidas, a Lei n 11.343/06 – a chamada nova Lei de Drogas.

De fato, em 2006, o Brasil – seguindo, de forma acrítica, as já questionáveis diretrizes norte-americanas para o combate às drogas – incorporou a seu ordenamento jurídico texto legal que procurava reduzir o tráfico e o consumo de substâncias ilícitas por meio do meio mais drástico possível: o controle penal. Para tanto, o novo diploma legislativo aumentou drasticamente a pena mínima do delito de tráfico, equiparando-o, ainda, a crime hediondo – o que aumentou o prazo para a progressão de regime e para a concessão de livramento condicional, entre outros.

Hoje, quinze anos depois da promulgação da nova lei, é mais do que evidente a ineficácia desse modelo proibicionista: se, de um lado, não se viu redução na traficância ou no uso de drogas, de outro os níveis de encarceramento aumentaram exponencialmente no país.

Conforme sintetiza, com maestria, LUCIANA BOITEAUX, com a estratégia legislativa adotada no país para combate às drogas, “que inclui o aumento da pena mínima do crime de tráfico e o maior tempo de cumprimento para obter transferência de regime e livramento condicional (por ser equiparado a hediondo), somados à ausência de distinção legal objetiva entre usuário e traficante, o resultado é que a Lei de Drogas constitui hoje uma das principais causas do desproporcional crescimento dos níveis de encarceramento no Brasil4.

A bem da verdade, o impacto encarcerador da Lei de Drogas foi muitíssimo sentido nas populações carcerárias de ambos os sexos: no período compreendido entre 2000 e 2016, o número de homens encarcerados saltou de 169.000 para 665.000 – aumentando assustadores 293%, portanto5.

No entanto, é inegável que, para as mulheres, as consequências do novo diploma legislativo tiveram magnitude muito maior. E, de fato, o crescimento sem precedentes da população carcerária feminina no período – da ordem de 650%! – apenas faz comprovar o papel determinante exercido pelo tráfico no aprisionamento de mulheres.

Nesse sentido, aliás, LUCIANA BOITEAUX lembra que, “embora em termos absolutos haja mais homens presos por tráfico de drogas, em termos relativos, as mulheres estão super-representadas entre os condenados por esse crime. A análise da questão do gênero no tráfico de drogas é um tema bastante sensível, sendo relevante destacar que o aumento desproporcional do encarceramento feminino por crimes ligados a drogas é observado em vários países, inclusive nos EUA, onde foram realizados estudos específicos sobre o tema”6.

E, aqui, a invisibilidade feminina se repete mais uma vez: na condição de esmagadora minoria da população carcerária, as mulheres sofrem com as agruras de um sistema que não foi – e não é – pensado para elas.

LUIS CARLOS VALOIS, em inspirado trecho, anota que “as prisões foram construídas para homens, suas paredes, muros e grades, foram pensados para conter homens e sua violência, sequer foram imaginados para o encarceramento de pessoas que cometeram delitos sem vítimas, como são os casos dos crimes relacionados às drogas, quanto mais para recolher mulheres envolvidas com tais fatos. Todas as práticas prisionais, o ritual do encarceramento, assim como uniformes, algemas, camburões, desconhecem gênero e são igualados em um nível de violência que agride qualquer coisa que se imagine como feminino. (…) Em meio a presas tendo que usar miolo de pão como absorvente e presas grávidas dando à luz algemadas, atentados à própria saúde pública que a Lei de Drogas pretende proteger, crianças circulam, vivem em estabelecimentos penais ou são abandonadas em alguma instituição. Sobre nenhuma punição se pode tanto dizer que está passando tanto da pessoa do criminoso como no caso da prisão de mulheres”7.

De fato, o número relativamente pequeno de mulheres encarceradas faz com que seja mais fácil para a sociedade fechar os olhos para a árdua realidade do encarceramento feminino. A política de guerra às drogas, todavia – e o consequente aumento exponencial na taxa de aprisionamento de mulheres -, parece estar tornando a tarefa progressivamente mais difícil.

Afinal, conforme lembra LUIS CARLOS VALOIS, “diante do grande número de mulheres presas por envolvimento com drogas, proporcionalmente muito superior do que o de homens, a guerra às drogas pode ser mesmo considerada ‘guerra às mulheres, particularmente mulheres pobres e mulheres negras ou imigrantes…’”8.

4 BOITEAUX, Luciana. Drogas e cárcere – repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In: Drogas: uma nova perspectiva. SCHECAIRA, Sérgio Salomão (org.). São Paulo: IBCCRIM, 2014, p. 90.

6 BOITEAUX, Luciana. Drogas e cárcere…, ob. cit., p. 96.

7 VALOIS, Luis Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 623.

8 VALOIS, Luis Carlos. O direito penal…, ob. cit., p. 634.

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