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Entenda como Villa-Lobos, astro da Semana de 22, só virou moderno anos depois

Entenda como Villa-Lobos, astro da Semana de 22, só virou moderno anos depois

Por Gustavo Zeitel

Um dos destaques do modernismo, maestro ganha nova biografia e tem obra explorada em concertos da Osesp

O carioca Heitor Villa-Lobos achava que a Semana de Arte Moderna de 1922 poderia não dar em nada. Sem especial identificação com os integrantes do grupo modernista, o convite inicial, do escritor Graça Aranha, foi recebido com pouco entusiasmo.

Não fosse o fausto cachê e a possibilidade de apresentar suas composições pela primeira vez em terras paulistanas, além da providencial insistência do escritor Ronald de Carvalho, seu conterrâneo e autor de algumas das letras das canções de seu repertório, talvez ele nem subisse ao palco do Theatro Municipal de São Paulo —de casaca e chinelo, em decorrência dos sintomas da gota​.

Desse modo, a adesão de Villa-Lobos à Semana de Arte Moderna se revela hoje um tanto ambígua, como sustenta a jornalista Camila Fresca, que prepara uma nova biografia do compositor ­—ainda sem título—, a ser lançada no fim deste ano pela editora Todavia.

Não causam estranhamento, portanto, as vaias que Villa-Lobos recebeu depois dos três dias de apresentação. Ao público brasileiro, os programas entre 13 e 17 de fevereiro de 1922 pareciam vanguardistas, mas as obras rompiam só timidamente com a tonalidade.

No primeiro dia, foram apresentados a “Sonata nº 2” para violoncelo e piano, o “Trio nº 2” para violino, violoncelo e piano, além de três obras para piano, entre elas a “Valsa Mística”. Fresca destaca a última composição do primeiro programa, “Danças Características Africanas”, que, segundo ela, prenunciou o tema da identidade nacional, tão caro a Villa-Lobos.

O segundo e o terceiro dias foram tomados por canções, metade em português, metade em francês, mas sempre destacando a forma francesa. Influenciado pelos impressionistas, sobretudo pelo francês Claude Debussy, o compositor fazia questão de mostrar ao público saber compor aos moldes europeus, daí a presença de tantas sonatas e trios. Mostrava ali o que de melhor fez durante os anos 1910.

Todas as obras podem ser ouvidas hoje no álbum “Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna”, que acaba de chegar às plataformas digitais pelo selo Sesc. Uma das idealizadoras do projeto, Fresca ressalta a presença, no repertório executado há cem anos, de composições dos franceses Erik Satie e Francis Poulenc, que já propunham uma reação ao impressionismo.

“Com os modernistas, ele sentiu um desejo renovador para a música. Mas ele só encontrou o caminho depois, em Paris”, ela conta, acrescentando que na época ele, na verdade, estava concentrado em ir para a Europa, onde poderia desenvolver uma carreira internacional.

Pouco tempo depois, o sonho se concretizaria. Em julho de 1923, Villa-Lobos embarcou para Paris, um acontecimento tão ou mais importante do que a Semana de Arte Moderna, segundo Fresca.

Na capital francesa, ele, até então acostumado a compor ao modo de Debussy, iria se deparar com o anacronismo do estilo. A obra do próprio impressionista, morto havia cinco anos, estava fora de moda e dera lugar às inovações do grupo Les Six. Dele, fazia parte Poulenc que, influenciado por Satie, pregava a valorização do exótico —e de certa “cor local”. Villa-Lobos inventaria, enfim, um Brasil.

A biografia corrige as datas de algumas obras, o que ajuda a compreender a mudança estética empreendida pelo compositor. Os poemas sinfônicos “Uirapuru” e “Amazonas”, erroneamente datados de 1917, são, na verdade, de 1935 e 1929, respectivamente. Brasileiríssimas, as obras foram, desse modo, concluídas após a Semana de Arte Moderna e a viagem a Paris.

O livro desmistifica a fama de que Villa-Lobos não trabalhava intensivamente na elaboração das composições. Na verdade, relata Fresca, a primeira mulher do compositor, a pianista Lucília Guimarães, exerceu papel fundamental na carreira do músico. Guimarães era formada pelo Instituto Nacional de Música e, com seus conhecimentos acadêmicos, ajudou o marido a compor para piano.

Segundo Fresca, as famosas viagens de Villa-Lobos pelos rincões do país, na década de 1900, foram supervalorizadas pelo próprio compositor. Era mais uma tentativa de vender a imagem de pesquisador musical. As idas às regiões Norte e Nordeste de fato ocorreram, mas Villa-Lobos não estava ali como um coletor.

Por outro lado, a antropofagia modernista está presente em Villa-Lobos na arquitetura musical do país. Arthur Nestrovski, diretor artístico da Osesp, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, diz que existe uma clara simbiose entre o folclore e a forma europeia no trabalho do maestro.

“Didaticamente, em muitos pontos da música sinfônica de Villa-Lobos, temos planos sonoros simultâneos”, ele afirma. “Villa-Lobos não usava ritmos como o maxixe em formas de citação. Ele usava tudo da música. Podemos dizer, por exemplo, que ‘Choros nº10’ é um samba-enredo antes de essa forma existir.”

Por extensão, os registros popular e erudito formam em sua obra uma música movediça, modernista por excelência. Não à toa, a temporada deste ano da Osesp chamada “Vasto Mundo: Clássicos Modernistas” seleciona peças diversificadas entre as mil obras de Villa-Lobos, como o “Quarteto de Cordas nº15”, o “Concerto para Harmônica”, além dos “Choros” de números cinco, seis, oito e dez.

A temporada propõe um diálogo entre o compositor brasileiro e expoentes da modernidade, como Richard Strauss, Jean Sibelius e o próprio Debussy. “Villa-Lobos é um grande compositor modernista. Ponto. Mas o mundo ainda não o descobriu”, pondera Nestrovski.

Para ele, é preciso ir além do ciclo das “Bachianas”. Afinal, ainda que repetidas à exaustão, elas foram escritas num momento conservador e representam uma volta à forma neoclássica, defende.

A exemplo de sua obra —e da adesão à Semana de 1922—, Villa-Lobos cultivou uma personalidade ambígua. Até a morte, em 1959, teve um comportamento pendular. Indigesto ao revisionismo, foi transgressor e conservador, como mostra a biografia. Uniu os choros das praças à música de concerto, valorizando expressões artísticas populares. Ao mesmo tempo, apoiou o Estado Novo, difundindo o canto orfeônico nas escolas como missão civilizadora.

Para a moderna música popular brasileira, foi um visionário, associando o Brasil ao violão bem antes da bossa nova. “Ele é o mais importante compositor de obras para violão do século 20”, afirma Nestrovski.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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