Por Ana Flávia Gussen
No país que mais mata negros e que se faz sobre uma estrutura racista e misógina, Ester Judite Rufino tornou-se a primeira mulher preta na direção do Instituto Brasileiro de Ciência Criminais.
Filha de semianalfabetos, criada na periferia e ativista do movimento negro e direitos humanos, ela tornou-se bacharel em direito aos 43 anos, trabalhou por dez anos como empregada doméstica e, agora, assume a função com poder de gestão, fazendo história dentro do IBCCRIM.
Criado após o massacre do Carandiru em 1992, o instituto atua unindo o setor acadêmico, poder público e sociedade civil no diálogo da segurança pública.
Moradora de São Paulo, onde atua a polícia militar mais letal do Brasil – média de duas mortes por dia – ela conversou com exclusividade com a CartaCapital e contou um pouco sobre sua trajetória, além de expectativas de ajudar a mudar a forma como a segurança pública atua nas periferias.
CartaCapital: Conte um pouco sobre a sua história de vida e a relação com a militância
Ester Rufino: Em me formei em 2014, aos 43 anos e sou filha de pais semi-analfabetos. Meu pai era porteiro, um homem muito digno, que nos ensinou tudo e minha mãe era dona de casa. Tenho nove irmão e nasci na periferia da zona sul de São Paulo. Há 14 anos vim pra zona leste, então vivo intensamente os dois extremos da cidade. Dos 14 aos 24 anos eu também trabalhei como empregada doméstica com uma família que minha avó também trabalhou e foi quando tive minha primeira carteira assinada. Lutei muito, consegui bolsa de estudo e me formei advogada. Nada foi fácil, mas tudo veio mudar a partir do entendimento que tive com a minha militância também.
CC: Você é a primeira mulher negra a ter função de gestão em uma instituição com foco em segurança pública. Mas sabemos que essa não é a realidade da maior parte das instituições brasileiras.
ER: Somos as últimas na pirâmide. Primeiro vem o homem branco, depois a mulher branca, depois o homem preto e, por último, a mulher negra. Esse capitalismo perverso nos deixa na base e como bem avalia o Silvio de Almeida é reflexo de um racismo estrutural institucional. Fomos sempre deixadas de fora dos espaços do capital, do intelectual. São mais de 40 anos de luta incessante, mas quando vem a Marielle Franco, uma mulher preta, bissexual, em um espaço político com voz, ela é assassinada. Acredito que ali uma parte das pessoas acaba acordando. Mas precisamos falar que todo dia tombamos, todo dia nossos filhos tombam. A cada 23 minutos morre um filho nosso. É uma guerra civil.
CC: Como você pretende mudar essa realidade a partir de sua função na instituição?
ER: Vamos tirar do campo das ideias e levar pra ação. Precisamos sair desse lugar construído academicamente, como um guardião do direito penal, e partir para uma mudança real de entendimento. Primeiro a luta contra a letalidade policial, principalmente em São Paulo onde 780 foram mortos em 2020. Já sentamos à mesa com o conselho de Direitos Humanos da prefeitura da capital e vamos assinar um convênio para criar monitorias de defensores e advogados dentro das subprefeituras com os mais elevados índices de periculosidade para ajudarem na prevenção a práticas de abusos dentro da seguraria pública. O objetivo é mostrar na prática como funciona o racismo também durante abordagens policiais, a truculência de parte dos agentes de segurança. Existem casos de delegados que se negam a registrar boletim quando é crime de injúria racial. Estamos dialogando também com o governo do estado, esperando abrir a agenda para criarmos o mesmo sistema.
CC: Dos 14 milhões de armas nas mãos de brasileiros, menos de 10% são legalizadas. Sabemos também que elas escoam para a ilegalidade a promovem o aumento de mortes na periferia. Como você avalia os decretos do presidente Bolsonaro que flexibilizam porte e posse e liberam compra de até seis armas por pessoa?
ER: Sim, esse debate é muito sério e o IBCCRIM consta como amicus curiae em uma das ações que está Supremo Tribunal Federal. Nossa presidenta Marina Pinhão fez a sustentação oral essa semana e destacou dados reunidos a partir das comissões parlamentares de inquérito das milícias e das armas. Também apresentamos um estudo detalhado sobre o escoamento do armamento que, uma vez na ilegalidade, promove uma matança generalizada nas periferias. Reunimos ao menos 60 teses de cientistas políticos e acadêmicos tratando desse tema. E, levando em conta o funcionamento da pirâmide que mencionei antes, é a base da pirâmide – onde estamos as mulheres negras e periféricas – o alvo preferencial desse armamento civil.
CC: Como você avalia essa política de segurança reativa e repressiva, e o fato dos governos terem tanta dificuldade de discuti-la do ponto de vista da prevenção, educação e direitos humanos?
ER: O estado, nesse caso destaco o papel do governo federal atual, age de forma premeditada para que a matança ocorra. É parte da necropolítica, tanto que experimentamos um aumento da letalidade nas periferias. O crime chega mais rápido até nós do que a educação, por exemplo. Por isso precisamos pensar as ciências criminais para além de pesquisa e do academicismo. É o que eu proponho como mulher negra, de periferia e militante. Tem que ter ação e muita cobrança.
CC: Quais as prioridades de atuação dessa nova gestão agora quanto à segurança pública?
ER: Nossa gestão, que começa agora e dura dois anos, vai priorizar cinco eixos: o controle da violência estatal: desencarceramento e enfrentamento de ações letais seletivas; combate à intolerância e à violência de gênero; ciências penais e novas tecnologias; quanto ao processo Penal: discutir a construção do sistema acusatório e a tensão entre liberdade e coerção; e atuar contra o autoritarismo estrutural, que possui relevantes reflexos na política criminal e no sistema de justiça.
Entrevista publicada originalmente na Carta Capital.
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