Por Uirá Machado
Em ‘O Terceiro Excluído’, ex-prefeito apresenta novo enfoque sobre evolução das sociedades
Quando Fernando Haddad (PT) publicou um artigo na Ilustríssima sobre a criação de uma moeda sul-americana e a integração regional, muita gente observou que o conteúdo nada tinha a ver com a agenda de um pré-candidato a governador de São Paulo.
O que o ex-prefeito da capital paulista e ex-ministro da Educação no governo Lula queria com o texto escrito em parceria com o economista Gabriel Galípolo?
A resposta, ou parte dela, está no livro que Haddad lança pela Zahar: “O Terceiro Excluído – Contribuição para uma Antropologia Dialética”.
Nele, o petista reapresenta a história da humanidade a partir de um novo enfoque, procurando mostrar como avanços da biologia e da antropologia deveriam ser incorporados ao materialismo histórico, uma linha de pensamento que tem em Karl Marx (1818-1883) seu intelectual mais célebre.
Como fica claro desde o título, trata-se de obra acadêmica recheada de termos técnicos que provavelmente se revelarão uma barreira para boa parte dos potenciais leitores.
Até porque Haddad, que é professor de ciência política da USP, dedica um capítulo à biologia, outro à antropologia e o terceiro à linguística, costurando os três com referências de economia, história, sociologia e filosofia. Ao todo, 161 pensadores são mencionados, e é difícil imaginar que alguém estará familiarizado com todos.
Em entrevista à Folha, Haddad não se diz preocupado com a possibilidade de muita gente se assustar com o formato do livro, que a princípio seria uma tese de livre-docência na USP.
“Meu livro é ciência, não literatura. E se debruçar sobre a ciência é tarefa que exige esforço”, diz o ex-prefeito. “Além disso, estamos vivendo uma dramática crise socioambiental para a qual não haverá respostas fáceis.”
O petista também diz que é da tradição brasileira atualizar o debate acadêmico local com o que vem sendo produzido no resto do mundo.
“Acabei me estendendo na apresentação de alguns autores por ter a certeza de que poderia prestar um serviço para o leitor”, afirma Haddad. “Sobretudo para aquela parte da juventude que quer transformar o mundo, eu entendo que isso pode ser proveitoso.”
Quebrará a cara, porém, quem comprar o livro pensando que Haddad apresenta soluções para as crises contemporâneas. Ele não faz isso, embora sua maneira de recontar a história dê pistas sobre um plano de ação política.
Uma delas é que o desenvolvimento nacional não tem relação necessária com o debate sobre as soluções (ou emancipação, no jargão). Um país pode enriquecer e melhorar sua posição no ranking das nações sem que isso traga qualquer melhoria para os problemas centrais da humanidade.
A outra, conectada à primeira, é que os desafios só podem ser enfrentados com respostas supranacionais, seja na economia, seja na ecologia. Ou seja, não adianta cada país fazer a lição de casa sem pensar em uma ação conjunta de toda a espécie humana.
Mas esses são apenas possíveis desdobramentos de “O Terceiro Excluído”, pois o foco da obra está em fazer um novo diagnóstico de velhos problemas.
E bota velho nisso, porque Haddad retoma as origens da espécie humana e o surgimento da cultura para propor uma perspectiva que ele considera ausente tanto na antropologia quanto na tradição do materialismo histórico.
De um lado, ele sustenta que a antropologia, cada vez mais influenciada pela biologia, tem sido dominada por um pensamento que reduz o ser humano ao seu código genético.
Para Haddad, essa maneira de enxergar perde de vista o que a humanidade tem de específico em relação aos demais seres vivos, que é a cultura. Além disso, é uma visão incapaz de perceber que os seres humanos, diferentemente dos demais organismos, convive com a contradição.
Enfatizando essas diferenças, Haddad aproveita o neologismo “revoluir” no lugar de “evoluir” ao tratar da evolução (ou revolução) da cultura.
Quanto ao materialismo histórico, o ex-prefeito observa que, na época de Marx, a antropologia estava nos seus primórdios. Assim, muito do que se descobriu depois precisa ser incorporado a essa linha de pensamento.
Uma dessas teorias recentes é que a relação entre sujeito e objeto não acompanha a humanidade desde sempre. Isto é, houve um momento da história em que os seres humanos não tinham a capacidade de se perceberem como sujeitos diferentes dos objetos (como uma árvore, uma pedra, um animal).
De acordo com Haddad, essa relação entre sujeito e objeto, contudo, não começou entre o ser humano e a natureza, e sim entre um ser humano e outro –um outro que passou a ser visto como objeto, isto é, como se não fosse humano, apesar de ser humano.
Teria sido essa maneira de ver o outro como um objeto que permitiu a escravidão e os genocídios, por exemplo.
Em “O Terceiro Excluído”, essa relação com o outro –em geral um estrangeiro, visto como se fosse de outra espécie— aparece como um dos motores da história, ao lado da luta de classes.
Daí, por sinal, o título do livro. “O terceiro excluído” é o nome de uma das leis do pensamento da lógica clássica, segundo a qual uma coisa não pode ser e não ser (ou estar e não estar) ao mesmo tempo. É uma lei que bane a contradição.
Avanços da lógica no século 20 botaram essa lei em xeque, mas antes disso a linha de pensamento conhecida como dialética já indicava que a contradição não é necessariamente uma falha do pensamento, e sim a maneira certa de pensar certos fenômenos.
Haddad, por seu turno, quer mostrar que a antropologia é muito mais pobre sem levar em conta a contradição inerente ao ser humano –ou seja, é mais pobre sem o “terceiro excluído”.
Talvez mais importante, ele sugere que as soluções para os problemas atuais da humanidade passam por aceitar o outro como um igual, por mais diferente que esse outro seja.
É uma proposta de incluir esse “terceiro excluído” que é visto como objeto inumano, embora seja humano. De acordo com ele, a abordagem vale para qualquer forma de objetificação: por motivos nacionais, religiosos, de gênero, de raça etc.
“É um exercício permanente de aceitar esse outro como alguém como você”, diz Haddad.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *