Reagir ao desgoverno é preciso. Reação pacífica, na hora precisa. E parece ser esta a hora
Os bacharéis em Direito, no curso da nossa História, sempre se destacaram na vanguarda das lutas cívicas e nativistas, em prol dos anseios de liberdade e de democracia do nosso povo. Os estudantes, por seu turno, jamais se ocultaram em salas de aula.
Os acadêmicos das Arcadas transformaram o pátio e o púlpito em frente à faculdade, no território livre do Largo de São Francisco. Também nas ruas, nas praças, em todo e qualquer lugar onde houvesse pessoas, suas vozes eram ouvidas e acatadas.
No final dos anos 30 até 1945, os estudantes pugnaram com ardor e denodo pela queda de Getúlio Vargas, o que aconteceu nesse mesmo ano. Primorosos oradores pregavam a construção de uma sociedade livre e solidária com respeito aos direitos da pessoa humana, à liberdade de opinião e às garantias democráticas. Entre muitos se destacaram Waldir Troncoso Peres, Germinal Feijó e Arrobas Martins.
Proclamavam eles, dentre outras questões, a chocante contradição da convocação dos jovens para lutar na Itália em prol da liberdade, enquanto no Brasil ela nos faltava. Falava-se que a convocação de estudantes era uma retaliação contra aqueles que tantos embaraços criavam ao governo.
Anualmente, uma festa mobilizava todos os estudantes da Faculdade de Direito, com intensa repercussão na sociedade paulistana. Era o Baile das Américas. Em 1943 ele foi realizado no Hotel Esplanada.
Durante o baile, entre uma música e outra, eram ouvidos sonoros “abaixo a ditadura!”. Oradores de tempo em tempo interrompiam as danças e davam contundentes recados contra o governo. Em determinado momento houve absoluto silêncio, para que uma quadra fosse recitada: “Oh! Valente legionário do Corpo Expedicionário,/ por que vais lutar a esmo,/ se a luta cruenta e fria é pela democracia?/ Vamos travá-la aqui mesmo”.
Tais manifestações provocaram a prisão de vários estudantes, incluída a de Hélio Mota, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto.
Nos dias seguintes São Paulo assistiu a uma chocante demonstração de truculência policial, comandada pelo secretário de Segurança, Coriolano de Gois, e executada pelo major Anísio Miranda, contra os acadêmicos de Direito. Três professores, Luiz Soares de Melo, Waldemar Ferreira e Ernesto Leme, tiveram decretada a sua prisão domiciliar.
A repressão policial continuou com maior intensidade. Na madrugada de 2 de novembro a faculdade foi invadida e numerosos acadêmicos foram presos, literalmente debaixo de cacetadas e de coronhadas.
Entre os primeiros detidos estavam Haroldo Santos Abreu e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, meu pai. Ambos foram agredidos nas costas e na cabeça. Haroldo, ao ver a viatura descendo a Rua do Riachuelo, onde eles foram detidos, pensou tratar-se do entregador de pão. Foi contestado por meu pai, que disse: “É a polícia, melhor não correr”. Não tiveram tempo sequer de se abrigar na sede do Centro Acadêmico.
Talvez como efeito da pancada que levou, Haroldo teve uma crise não de choro, mas de riso. Ria sem parar, deixando meu pai em pânico. Os policiais poderiam estar se sentindo alvo de gozação. Sua reação era imprevisível. Estavam armados com metralhadoras. No entanto, nada fizeram. Divertiam-se com a inusitada conduta do detido.
Nessa madrugada a faculdade foi vítima de vandalismo policial. Quadros, estátuas, livros, móveis e outros bens foram danificados. Uma pintura de dom Pedro II foi danificada por um golpe de baioneta.
No dia 9 de novembro os estudantes organizaram uma grande passeata para verberar as violências praticadas. Saíram todos pelo centro da cidade de São Paulo com uma mordaça negra a cobrir-lhes a boca, como símbolo do silêncio imposto pelas armas. O povo nas ruas ia aderindo à passeata.
O luto que se abateu sobre toda a academia foi evidenciado pelas tarjas negras colocadas em vários dos seus espaços externos e internos.
Nas imediações do Largo de São Francisco a polícia disparou contra os estudantes. Uma senhora que estava na porta da igreja e o jovem Jaime da Silva Teles, que não era estudante de Direito, foram mortos.
Vários estudantes tiveram ferimentos graves. Dentre eles, João Brasil Vita carregou durante os seus quase 70 anos seguintes de vida uma bala alojada no tórax. Ali foi deixada porque a extração poria sua vida em risco.
Na História do País, essa não foi a única nem a última mobilização de estudantes e da sociedade como um todo em prol de valores superiores que informam uma sociedade que se pretende democrática e justa.
Os fatos narrados acima e outros semelhantes, anteriores e posteriores a 1943, retratam a reação histórica dos estudantes e da própria sociedade sempre que se tornou necessária, em face do autoritarismo instalado ou prestes a sê-lo e em face do desgoverno que deixa o povo desnorteado, intranquilo, sem rumo e à beira do caos.
Reagir é preciso, inadmissível é a inércia, pois ela nos torna cúmplices. Reação pacífica, na hora precisa. E parece ser esta a hora.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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