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Julgamento da presunção de inocência: até onde o STF poderá chegar?

Julgamento da presunção de inocência: até onde o STF poderá chegar?

Por Bruno Salles Pereira Ribeiro e Marcela Fleming Soares Ortiz

Na próxima semana o Supremo Tribunal Federal deverá julgar, em definitivo, a possibilidade da prisão antecipada da pena privativa de liberdade, após o julgamento em segundo grau de jurisdição.

As correntes favoráveis a essa possibilidade sustentam que a inovação trazida pela própria Corte Suprema, no âmbito do julgamento incidental de um habeas corpus, é um elemento essencial no combate à criminalidade, tendo na bandeira do combate à corrupção seu maior sustentáculo. Sobejam, nesse campo, argumentos retóricos relativos a uma suposta impunidade generalizada, o que fomentaria o aumento da criminalidade – seja a violenta, seja a de colarinho branco. Nesse sentido, a prisão antecipada, antes do julgamento definitivo do processo pelas Cortes Superiores, é elevada à categoria de instrumento de política de segurança pública.

Ainda que se observe todos os dias o sol nascendo a leste e se pondo a oeste, a ciência já provou, pela matemática e pela observação astronômica, que é a Terra quem gira em torno do Sol e não o contrário. Ainda que possa parecer que o encarceramento de mais pessoas possa diminuir os índices de criminalidade, todas as ciências criminais evidenciam que o aumento do número de prisões não tem qualquer impacto direto no combate à criminalidade. Por outro lado, o encarceramento em massa é um fator criminógeno, o que se comprova pelo absurdo índice de reincidência no Brasil (com expressiva porcentagem em crimes mais graves que o primeiro) e pelo fortalecimento cada vez maior de organizações criminosas oriundas do sistema carcerário. Paradoxalmente, quanto mais se prende, mais se fomenta a criminalidade.

Do ponto de vista jurídico, não há nada mais claro do que a redação do art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, que diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E só há o trânsito em julgado, quando exauridas todas as possibilidades de recursos. Assim sendo, para justificar a prisão por sentença condenatória antes do trânsito em julgado, socorrer-se de exegese que dá ao texto da legal um sentido diametralmente oposto ao que tem.

Os defensores dessas correntes de pensamento alegam que a constituição deveria ser um organismo vivo e dinâmico e que a seu texto poderia ser dada interpretação conforme as circunstâncias políticas e sociais de seu tempo. A constituição, de pacto por um projeto ideal de sociedade, deveria ser lida como um instrumento de propulsão da sociedade se adaptando aos seus anseios e objetivos. Daí a necessidade de se ouvir os fantasmagóricos “clamores sociais”, as “vozes das ruas” da “opinião pública”.

A racionalidade (e um pouco de humildade) nos força a reconhecer que não há e jamais haverá sistema auditivo constitucional eficaz para traduzir em palavras os ruídos das ruas. E ainda que houvesse, o clamor social jamais poderá ser erigido há fonte normativa pois, em um sistema constitucional, nem todo clamor social é legítimo, é correto ou justo. Nem todo clamor público é constitucional.

Portanto, o julgamento das ações diretas de constitucionalidade não trata somente da batalha contra o terraplanismo jurídico-penal; esse não será vencido tão cedo, eis que sempre se amontoarão aqueles que sem evidências defenderão a punição e, especificamente, a prisão, como forma de dissuasão da criminalidade.

Mais do que isso, trata-se dos limites que a própria Suprema Corte terá de impor a sua prerrogativa hermenêutica que, muito além de elucidar e dar sentido à norma, tem criado e derrogado normas, muitas vezes, como no presente caso, com sentido diametralmente oposto ao texto literal da garantia constitucional.

Se a redação da garantia constitucional “ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado” pode ser lida como “ninguém poderá ser considerado culpado até o julgamento em segunda instância”, quais outras garantias constitucionais poderão ser suprimidas pela hermenêutica daquele que deveria ser o garantidor da constituição?

O que impediria que o mandamento de que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, inciso III, da CF) recebesse da Suprema Corte novas ressalvas para situações específicas, diante do clamor popular? O que impediria que se criassem novas exceções à vedação da pena de morte, diante da opinião pública? Certamente, tais modulações refletiriam os gritos estridentes da grande turba, com ainda mais precisão do que a prisão antecipada.

A Constituição Federal de 1988 foi criada por meio de uma assembleia constituinte: essa sim, a legítima expressão democrática do espírito do povo brasileiro. A Constituição Federal pode ser emendada, por um processo legislativo específico, para que possa refletir novas necessidades econômicas, sociais, culturais e políticas. No entanto, o texto constitucional não pode ser vilipendiado e distorcido para refletir supostos anseios populares. Pelo contrário, a Constituição da República deve cumprir o papel de refrear erupções sociais episódicas que firam as garantias constitucionais.

As garantias fundamentais são invioláveis, inalienáveis, inegociáveis e não podem ser erodidas por artifícios retóricos. São os alicerces fundamentais do próprio Estado democrático de direito. Distorcê-los na procura por uma constituição viva, que expresse supostas demandas da sociedade, sempre contingenciais, é o que, justamente, poderá acabar por ferir de morte todo o ordenamento jurídico constitucional.

Artigo publicado originalmente no Congresso em Foco.

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