Justiça para todos conta a história de advogado criminal, Arthur Kirkland (Al Pacino), em sistema judicial hipócrita e corrupto. Dirigido por Norman Jewison e lançada em 1979, o filme centra-se no conflito entre o criminalista idealista e destemido e o (aparentemente honesto) juiz Henry T. Fleming (John Forsythe).
Em seu desenrolar, no entanto, a relação entre os dois, sempre muito conturbada, já que Fleming perseguia Kirkland e os clientes por ele patrocinados. O advogado recebe com surpresa a notícia de que o magistrado foi preso, sob acusação de estupro.5 E que, ironicamente, Fleming quer ser defendido por Kirkland, pois, como todos sabem da rivalidade preexistente, só o defenderia se tivesse certeza da sua inocência.
A título de retribuição, Fleming promete rever a condenação de cliente inocente de Kirkland, Jeff McCullaugh (Thomas G. Waites), preso há dezoito meses.
O advogado é o raio de luz, a janela de esperança que se abre, o único que verdadeiramente pode trazer ajuda e ânimo. Por isso mesmo, defender é muito mais que redigir petições, pleitear e recorrer. Na defesa criminal o advogado tem que revelar amor e compreensão pelo ser humano em desgraça e também a sua dedicação ao serviço dos outros. (4)
Sinopse
Justiça para todos conta a história de advogado criminal, Arthur Kirkland (Al Pacino), em sistema judicial hipócrita e corrupto. Dirigido por Norman Jewison e lançada em 1979, o filme centra-se no conflito entre o criminalista idealista e destemido e o (aparentemente honesto) juiz Henry T. Fleming (John Forsythe).
Em seu desenrolar, no entanto, a relação entre os dois, sempre muito conturbada, já que Fleming perseguia Kirkland e os clientes por ele patrocinados. O advogado recebe com surpresa a notícia de que o magistrado foi preso, sob acusação de estupro. (5) E que, ironicamente, Fleming quer ser defendido por Kirkland, pois, como todos sabem da rivalidade preexistente, só o defenderia se tivesse certeza da sua inocência.
A título de retribuição, Fleming promete rever a condenação de cliente inocente de Kirkland, Jeff McCullaugh (Thomas G. Waites), preso há dezoito meses.
Nota introdutória
“A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. (6)
Observando-se os desafios por quais passa o advogado criminal Arthur Kirkland, em Justiça para todos, compreendem-se, um pouco, as circunstâncias e as interpretações da lindíssima missão do criminalista. Porém, mais que isso, testemunha-se a dura, extenuante e conflituosa vida profissional (e pessoal, porque esta é comumente atropelada por aquela, em várias situações) daqueles que abraçam o mister.
Nessa seara, os de alma fortes o são pela forja das agruras que absorvem das misérias humanas levadas aos bancos dos réus dos tribunais penais.
Numerosos filmes transportam a temática forense-criminal ao público do mundo inteiro. São poucas, contudo, as que sondam em profundidade a psicologia do advogado de defesa, como o faz o clássico em estudo. O personagem principal é combativo criminalista empurrado às fronteiras éticas da profissão, por se ver confrontado entre seus valores pessoais e profissionais.
Calcifica-se, de um lado, o perfil de Kirkland, que não mede esforços para bem cumprir sua missão e fazer cessar as injustiças contra seus clientes. De outro, iniciase a discussão dos limites éticos profissionais e pessoais, uma vez que o advogado também se vê preso, por agredir e desacatar o juiz Henry T. Fleming, num rompante de combatividade contra o abuso do magistrado, que mantinha preso seu inocente cliente, Jeff McCullaugh.
Há nítido paralelo com a realidade da advocacia criminal. Vários são os eventos em que o advogado, tendo certíssimo o direito de seu patrocinado, sente-se manietado pelo cerrar de olhos da justiça. (7)
Se se voltarem às luzes para a atualidade brasileira (talvez, para a realidade mundial, exceto em ínfimos países), será constatado que a justiça, muito popularizada no meio social, (8) tem sido posta à prova diuturnamente, mas nem sempre se desincumbe de seu relevante papel. (9)
Sistema carcerário: um cancro
No limiar do filme, descortinam-se as agruras do sistema penitenciário, com o qual o criminalista tem pesadelos diários e contra o qual luta com todas as forças. Retratam-se, às escancaras, sua superlotação e as condições indignas e insalubres a que submetidos os presos. Demonstra-se, outrossim, a hostilidade do tratamento (de parte) da guarda penitenciária – que exprime a indiferença de parcela significativa da sociedade aos abusos funcionais e perpetua preconceitos contra quem destoa dos standarts do povo.
Justiça para todos veio a público no final da década de 1970, porém ainda retrata indesejadas semelhanças com a situação das masmorras deste primeiro quarto do século XXI.
Com 726.712 presos, (10) segundo dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública, (11) o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. Sessenta e quatro por centro são negros12, e somente 38% terminaram o ensino fundamental. (13)
O alarmante e indecente número de mortes de pessoas negras, declarados no Mapa da Violência (14) , demonstra que, tirante a escancarada falência do sistema penitenciário, (15) o crescimento do estado penal atua como estratégia de controle social das classes despossuídas. Vergonhoso.
Augusto Thompson, em Quem são os criminosos, (16) informa que só parte dos delitos entra nas estatísticas, pois parcela de crimes cometidos forma a denominada cifra negra:
Criminoso, em sentido formal, é o indivíduo condenado pela justiça – sobretudo se for recolhido à prisão, fazendo jus, dessa maneira, ao rótulo de delinquente por parte de grupo social. De outro lado, cabe recordar que, da prática do delito à condenação do autor (e, indo um pouco adiante, até seu encarceramento), há um obrigatório caminho a ser percorrido, o qual oferece como etapas marcantes as seguintes: a) ser o fato relatado à polícia; b) se relatado, ser registrado; c) se registrado, ser investigado; d) se investigado, gerar um inquérito (17); e) se existente o inquérito, dar origem a uma denúncia (18) por parte do promotor; f) se denunciado, redundar em condenação pelo juiz; g) se havendo condenação e expedido o consequente mandando de prisão, a polícia efetivamente o executa.
Estigmatizada como criminoso a suportar a constelação de preconceitos e tratamento diferenciado por parte da sociedade (marginal, bandido, meliante, elemento antissocial, perigoso, criminoso mesmo) será a pessoa que, além de haver concretizado um comportamento previsto em abstrato em alguma norma penal, percorre todas as fases acima indicadas e termina confinada numa penitenciária. Se alguém viola um preceito criminal, porém escapa de cumprir na íntegra este trajeto, oficialmente não será tido por criminoso.
A criminalidade é inerente ao homem. É comportamento encontrado em todas as sociedades, incluindo as mais oxigenadas e democráticas. A escolha das condutas a criminalizar, entretanto, perpassa funil seletivo. Essa é a preliminar advertência para a compreensão do sistema penal. Entre a criminalidade real e a aparente, há enorme quantidade de crimes que jamais será conhecida pelas instâncias oficiais de controle. (19)
O fato de que se fiscalizam certos grupos de pessoas de modo mais intenso do que outros distorce a taxa de infratores, que ficarão escondidos na cifra negra; um falso-positivo. Em decorrência, as estatísticas oficiais ostentam número elevado de criminosos oriundos das classes baixas, enquanto o relativo aos situados nas camadas superiores será menor. Isso não significa, nem de longe, que os indicadores revelam o padrão da criminalidade brasileira ou que a criminalidade se liga aos que pertencem a camada mais baixa da pirâmide social, mas revela somente aquilo, ou
melhor, aqueles a quem a “justiça penal” busca coibir.
O número oculto restringe e distorce o conhecimento do que se entende, aparentemente, por criminoso. Como corolário, a atividade da justiça penal se despreocupa com o que o acusado fez, para se atentar cuidadosamente para o que ele é; e aí a figura típica de um membro da “escória social” já é fator decisivo para taxar alguém como pessoa fora da lei.
Na vã tentativa de atenuar as consequências dessa seletividade, faz-se importante que o sistema penal – nesse âmbito compreendem-se todas as agências de controle social formal – esteja alinhado à Constituição da República, como estrutura legal fundante do estado democrático. (20)
Indispensável, portanto, que haja congruência entre os fins da sociedade e os do direito, de modo que o direito penal se oriente pela ordem constitucional. O processo penal deve assegurar que o direito material (21) seja aplicado nesse sentido, em respeito aos direitos e as garantias fundamentais.
Apesar disso, no dia a dia, por diversos fatores, caminha-se para sistema criminal superestimado, que educa e tipifica amplamente as condutas ilícitas. Surge o mito de que o direito penal tem aptidão para conter a criminalidade e proteger a sociedade.
Não se reconhece alternativa à lei penal, senão a de “tranquilizar” a opinião pública. Induzem as pessoas a acreditar em sua efetividade, abrandando-se a ansiedade ou, mais claramente, mentindo-se e dando lugar a direito promocional, que acaba se convertendo em mero difusor de ideologia (22) ou oportunismo no discurso repressivo.
O tema não varia. Violência pela manhã. Violência à tarde. Violência à noite. Ela dá Ibope, e todos a temem. Ninguém a quer por perto. Câncer do qual a sociedade se crê imune. Poucos admitem encontrar remédio com especialistas. Preferem, sem ou com base em cópias distorcidas de outros países (Itália não é Brasil e Manhattan não é Rio de Janeiro), vender à população solução milagrosa: o fim da criminalidade com o aumento das penas. Bazófia!
Cadeia, sustentam os defensores do rigor penal, os sempre conhecidos oportunistas da calamidade. Nesse campo não existem milagres, por fervorosas que sejam as rezas. Criminalidade não se combate com lei. Por ser fenômeno social, não tem fim; quando muito, controle. Controle depende de política governamental séria, comprometida e ininterrupta. O Estado não pode abandonar espaços sociais nos quais sua presença se faz imprescindível. Abandonando esses espaços públicos, permite a invenção de um “Estado paralelo”, ultimamente em voga.
Outro fator bem recortado em Justiça para todos, a demonstrar a falência do sistema prisional, é o tratamento indigno e desumanizante dispensado às mulheres transexuais e travestis. Além do aparato repressor e seletivo, a “justiça penal” vitimiza e condena parcela já vulnerável da sociedade, que, assim como no filme, é, em certas ocasiões, trancafiada em presídios masculinos, sofrendo desde a exposição de sua intimidade, que abrange, por exemplo, o corte obrigatório de cabelo e banhos de sol sem camisas, a humilhações, torturas, estupros etc. (23)
Em 2015, no Ceará, ao ser levada para audiência de custódia, (24) vomitando e com marcas de espancamento, uma transexual relatou todos os abusos e violências pela qual passou durante os vinte dias em que permaneceu trancafiada na penitenciária. (25) Cabeleireira no salão da mãe, ela não possuía antecedentes criminais e havia sido presa em flagrante, por ter subtraído um telefone celular durante uma festa.
Os desoladores relatos não são poucos. Enquanto esteve na cadeia, por alguns meses, Fernanda Falcão, com dezenove anos na época, dividiu a cela com cem homens e mais duas travestis. Foi violentada. Teve o cabelo raspado. Era chamada, por agentes penitenciários, pelo nome civil.
Os menosprezos não estancaram por aí.
Fernanda e as colegas de cela eram coagidas a fazerem limpeza no presídio e massagens nos detentos. “Se a sociedade, fora da prisão, já é machista, dentro, isso é elevado à décima potência”, desabafou. (26)
De acordo com Marina Reidel, (27) coordenadora-geral de Promoção de Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos do Brasil, praticamente a totalidade de travestis e mulheres transexuais são detidas em presídios masculinos. (28) Segundo ela, não há projeto específico sobre o tema no Congresso Nacional, e o único direito que existe é a Resolução Conjunta nº 1/2014 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, que procura estabelecer parâmetros de acolhimento àquela população em privação de liberdade. Falta muito para se emprestar dignidade à comunidade carcerária, assunto destacado em 2006, nas Crônicas de mortes anunciadas: breve ensaio sobre a cegueira; (29) veja-se:
O Estado e seus dirigentes têm que começar a ser responsabilizados, nacional e internacionalmente, (30) porque não podemos mais conceber, em pleno século XXI, homens sendo tratados com tamanha desumanidade. De fato, embora tenhamos a pétrea convicção, como Evandro Lins e Silva tinha, de que a cadeia é o reconhecimento mais explícito de que a sociedade dita moderna é incompetente para tratar de seus males, cremos que o Judiciário deva pensar (pensar muito, é dizer) antes de mandar, sem pejo, para as prisões, homens que lá não deveriam estar, porque os crimes por eles praticados não estão a merecer tamanha reprimenda. Aliás, por onde andam mesmo as penas alternativas?
Mas é preciso mais. É preciso que o Judiciário se humanize. É preciso que o juiz tenha a consciência de que está ali, a mando da sociedade, para julgar um semelhante. Um ser humano como outro qualquer, e não um monte de folhas numeradas e sujas que formam, sem alma, um processo, no mais das vezes falho desde o seu nascedouro, por exclusiva culpa do Estado.
Uma pessoa que tem o direito à vida e à sua dignidade. (…) O Estado não pode esquecer que esses infelizes condenados à masmorra não perderam, e não perderão jamais, o direito de ter a sua dignidade pessoal preservada. Isso não é um sonho. É um dever cívico que deve brotar na alma de cada cidadão.
No filme, o pesadelo produzido pelo estado penal na vida das pessoas encarceradas é retratado pela história da cliente negra e travesti, Ralph Agee (Robert Christian), que, após ser condenada injustamente à prisão, suicida-se, ainda na carceragem do fórum, por meio de enforcamento. (31)
Ao tomar ciência da tragédia, límpida a posição de Arthur Kirkland, como advogado de defesa: independentemente da responsabilidade de Agee, devem-se proteger direitos e garantias assegurados pela Constituição da República, porque o sistema penal é um ataque à liberdade, à integridade psicofísica e à própria vida, como o filme demonstra de maneira excruciante.
O papel do criminalista é essencial no sistema de justiça penal. Sua ausência ou a deficiência da defesa matam. Se não matam fisicamente, matam o espírito de quem tem sua liberdade e dignidade ceifadas pelo Judiciário. Matam, por osmose, seus familiares e amigos. Matam também o advogado criminal. Contudo, este talvez prefira que assim o seja, que seu partir se dê na tribuna de defesa a bramir pela liberdade daquele que o nomeou patrono.
E se o cliente for culpado?
Outro choque da narrativa fica a cargo do sócio de Kirkland, que sofre de surto psicótico, ao descobrir que um cliente, após ser absolvido em processo criminal no qual funcionou na defesa, voltou à prática de crimes, assim que saíra da prisão, assassinando duas crianças.
A partir de então, a perspectiva lançada pelo longa-metragem expõe as vísceras da advocacia criminal. Difíceis são as situações e os conflitos de natureza concreta e íntima a que subjugados ininterruptamente os criminalistas. Em suas veias, correm sangue. Sangue de liberdade. Sangue de justiça equânime. Não um arranjo.
Embora indispensáveis à administração da justiça, como dispõe o art. 133 da Constituição da República, (32) permanecem os defensores criminais em nada compreendidos pela sociedade. Pior. Não é incomum localizar, inclusive entre os que bem conhecem o sistema de justiça, como magistrados, membros do Ministério Público, policiais etc., aqueles que (fingem) não compreender a missão constitucional e legal do criminalista. Vida que segue.
Se se trouxer para o diálogo a mídia, o Quarto Poder, (33) que entorpece, desinformando, a população, a falta de compreensão aumenta sobremodo. Tem de se lutar, sem esmorecer, contra tudo e contra todos sem perder a sensibilidade, a fidalguia e a lucidez defensiva, no objetivo de melhor representar os que são submetidos a julgamento criminal. (34)
Ao advogado não é dado considerar sua opinião, quando assume a defesa criminal, como impõe o art. 23 do Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, voltado à consagração das garantias fundamentais, notadamente a não
culpabilidade, a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal:
Art. 23. É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado.
Parágrafo único. Não há causa criminal indigna de defesa, cumprindo ao advogado agir, como defensor, no sentido de que a todos seja concedido tratamento condizente com a dignidade da pessoa humana, sob a égide das garantias constitucionais.
Essa vertente brota na película, quando Kirkland contrapõe o sentimento de aversão pelo crime eventualmente cometido pelo cliente − com o qual o advogado criminal não compactua, não concorda e não aquiesce − e o valor profissional daqueles que se dedicam à incansável defesa da justiça.
Em relação ao patrocínio do juiz Fleming, todavia, a trama propõe uma insólita relação advogado-cliente. Kirkland somente “aceita” representá-lo no processo criminal em que é acusado de estupro, porque é chantageado, em função de processo ético-disciplinar que contra ele tramita no equivalente americano da OAB. Anos antes, Kirkland havia violado gravemente a ética profissional, ao denunciar um constituinte à promotoria, por crime que negava ter praticado.
Demais isto, na contramão do direito e da ética, (35) Kirkland pleiteia que o juiz, em troca da aceitação do patrocínio, reveja a sentença condenatória de cliente, não pelas vias processuais normais, mas como uma prestimosidade. Deveria ter recusado o obséquio. Não se advoga com pires na mão. Advoga-se deduzindo argumentos de defesa perante o Judiciário. Não pode o advogado aceitar benesses de quem quer que seja, por mais justas que possam parecer.
Na raiz, Kirkland se convence de que o juiz é inocente, inclusive por ter passado no teste de polígrafo (conhecido como detector de mentiras), vedado no Brasil e também no estado norte-americano onde acontece o crime desvelado no filme, e por haver testemunha ocular a comprovar o álibi de Fleming
Sucede que, dias antes do julgamento do juiz, o criminalista recebe provas de que Fleming é culpado pelo estupro. Evidente que o juiz quebra a confiança imprescindível da relação entre o cliente e seu advogado, e isso o obrigaria a renunciar ao patrocínio da defesa.
Por sinal, a namorada do advogado, Gail Packer (Christine Lahti), integrante da direção da ordem dos advogados, aconselha-o a se retirar da causa. Arthur não renuncia e entra em embate interno com seus princípios morais. Prevalece, porém, o medo de ser banido da profissão, diante das chantagens que sofrera para assumir a causa.
A defesa prossegue sob seu comando. Tal situação agudiza o conflito entre seu Eu-advogado e seu Eu-pessoa que acaba prevalecendo no tribunal, quando Kirkland passa, em atentado aos princípios deontológicos, à figura de intrépido acusador. Diante do júri, Kirkland expõe todos os meandros da conduta delituosa de seu cliente, fato que acarretará merecidamente à sua inabilitação para o exercício da advocacia.
Ao contrário do que sugere a trama, não é dado ao advogado, na área criminal, perquirir sobre a culpa ou inocência do cliente. Sua função é defendê-lo com denodo. Afinal, como salientado por Evandro Lins e Silva, “não se elimina o mal com o ódio ou com a crueldade ou com o sentimento de vingança, mas com a caridade, com o amor e com a compreensão. O crime tem causas e raízes que os cientistas sociais, os criminologistas continuam investigando. Como acentuou Darrow não será castigando, prendendo, enforcando, nem com a adoção de um terror geral que iremos estancá-lo.” (36)
Pouquíssimos têm compaixão bastante para exercer, com destemor, a advocacia criminal.
Para Rui Barbosa, em célebre carta enviada a Evaristo de Moraes, em meados da primeira metade do século XIX:
[…] não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente. (37)
Enfim, prossegue Rui:
[a] defesa não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz de seus direitos legais. Se a enormidade da infração reveste caracteres tais, que o sentimento geral recue horrorizado, ou se levante contra ela em violenta revolta, nem por isso essa voz deve emudecer. Voz do Direito no meio da paixão pública, tão suscetível de se demasiar, às vezes pela própria exaltação da sua nobreza, tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel. (38)
Diferentemente do que a esmagadora maioria idealiza, ledo engano pensar que o cliente abrirá sua vida e confessará seus crimes ao advogado. Não. Não fará isso; pelo menos, não, nas primeiras reuniões que mantiver com seu futuro patrono. O próprio cliente é, em si, enigma a ser desvendado. Como mostra o filme com a travesti Ralph Agee, em geral, o cliente é o primeiro a negar sua verdade, inclusive para aquele que o defenderá, por acreditar que não será bem digerida nem por seu defensor.
Lins e Silva assegura que a primeira pessoa para quem o cliente mente é para o seu próprio advogado, porque nele vê o primeiro teste sobre a versão dos fatos por ele arquitetada:
O acusado que nega [o crime] não confia o seu segredo nem ao advogado, ao contrário dos que muitos supõem. Alegando inocência, o réu encastela-se numa posição defensiva total, e procura convencer a todos, inclusive ao seu defensor, de que não é culpado. Além disso, o advogado não se comporta diante do cliente como inquiridor ou como investigador, formulando perguntas que seriam contrárias ao próprio desenvolvimento da defesa. (39)
É frequente que o advogado não tenha, ao início da defesa, qualquer domínio sobre a causa em si, exceto o permitido pelo patrocinado, cujo grau de sinceridade ou de abertura varia consoante às circunstâncias e segundo os mais recônditos motivos. Não é incomum que, nem mesmo ao final do processo, o advogado tenha a exata compreensão do todo. Assim, por vezes, nasce a relação advogado-cliente. Assim, por vezes, finda a relação advogado-cliente.
A defesa de uma pessoa não importa a salvaguarda de seus crimes. O advogado não se confunde com seu cliente. Peça fundamental para o funcionamento do sistema de justiça, o criminalista age em busca de debate de teses, de equação processual equilibrada, para assegurar os valores garantidos pela Constituição da República.
No fim das contas, “o direito legal existe apenas no papel, a menos que haja advogados com ardor suficiente para dar-lhe vida”. (40) A aplicação de qualquer sanção penal exige um processo democrático. Do inverso, tudo é expiação.
Em tempos de crescimento de crimes violentos, somados a grandes operações policiais de combate à corrupção, carreadas com indesejável estrépito midiático e amiúde vazamento criminoso de informações em segredo de justiça, acaba-se por gerar uma demanda social por punição.
Tal sensação, até compreensível para os não técnicos, não é justificativa, todavia, para o desrespeito do devido processo penal. E, consequentemente, para o descrédito à instância de proteção da pessoa.
O art. XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos determina que a qualquer homem acusado de ato criminoso são “asseguradas todas as garantias necessárias para sua defesa”
Por isso, o direito de defesa é conquista histórica da civilização moderna contra as arbitrariedades do Estado e as violações de direitos fundamentais. E tem de ser preservada em sociedade (que se diz ou deseja ser) democrática.
Antonio Evaristo de Moraes Filho, ensinava:
Aos que insistem em não reconhecer a importância social e a nobreza de nossa missão, e tanto nos desprezam quando nos lançamos, com redobrado ardor, na defesa dos odiados, só lhes peço que reflitam, vençam a cegueira dos preconceitos e percebam que o verdadeiro cliente do advogado criminal é a liberdade humana, inclusive a deles que não nos compreendem e nos hostilizam, se num desgraçado dia precisarem de nós, para livrarem-se das teias da fatalidade. (41)
A advocacia criminal é um sacerdócio. Só alguns são os merecedores de integrar esta casta; “(…) muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos”. (42)
Sistema judiciário: breve panorama
De retorno ao longa-metragem, o magistrado Fleming mostra-se pessoa de ímpar dureza moral e sem qualquer compaixão. Assim, julga os submetidos à espada da Justiça com rigor implacável, recusando-se a rever seu posicionamento, fruto de preconceito oriundo de premissas falsas.
Nada obstante, a película prossegue para seu conflito principal. O próprio juiz Henry T. Fleming passa a ser réu, acusado de estuprar uma jovem. Seja no filme, seja na vida real, a inusitada inversão dos papéis, passando o julgador à figura de cliente, impulsiona o criminalista para o centro do palco, deparando-se com a grande carga que recai não só sobre os ombros do acusado, mas, igualmente, sobre os do defensor. É o que se contempla na cada vez mais latente criminalização da advocacia, principalmente a criminal. (43)
O embate não reside isoladamente na acusação contra o juiz Fleming. Ele é encontrado, fundamentalmente, no móvel que o levou a escolher Arthur Kirkland para defendê-lo. A eleição, ou, tanto melhor, a imposição do patrocínio da causa, por intermédio de chantagem, longe de se cingir à capacidade, experiência ou pugnacidade do criminalista, finca raízes interesseiras em sua boa reputação, em sua notória adoração pela Justiça. E almeja subalternos efeitos midiáticos a respeito do patrocínio da causa por tão distinto advogado.
O foco deixa de ser o direito do cliente, para se tornar em dizer à sociedade o que ela almeja ouvir ou pensa almejar. Por certo, soubesse ela das nefastas consequências, alteraria a ideologia significativamente repressora, porque ela sai esfacelada, como comprovam os indicadores que a referenciam. Está, aí, o verdadeiro marco da diferença entre a opinião pública e a opinião publicada. (44)
Ao advogado, ao inverso, atribui-se o papel de vilão, em péssima interpretação do arraigado exercício do dever da defesa, (45) porque não são pequenas as oportunidades em que é confundido com o cliente, cujos interesses patrocina, sendo-lhe atribuídos os mesmos estigmas incriminadores.
Talvez encontre berço, aí, a contundente advertência de Zuenir Ventura sobre os poderes da imprensa: “O poder da imprensa é arbitrário e seus danos irreparáveis. O desmentido nunca tem a força do mentido. Na Justiça, há pelo menos um código para dizer o que é crime; na imprensa não há norma nem para estabelecer o que é justiça, quanto mais ética. Mas a diferença é que no julgamento da imprensa as pessoas são culpadas até prova em contrário.” (46)
A luta dos defensores criminais por julgamento justo e imparcial é diária. Nada os esmorece.
No âmbito de estado democrático de direito, (47) sedimentado por modelo constitucional acusatório, (48) a ação penal constitui garantia de que o suposto transgressor só será sentenciado após o devido processo legal.
Por seu turno, o desempenho do juiz, garantidor do processo, (49) deve ser independente, dissociado de qualquer influência. Não está obrigado a deliberar conforme a maioria. Suas decisões hão de estar limitadas somente pela prova do processo (o que foi recolhido durante a investigação policial ou pelo Ministério Público – as investigações criminais diretamente conduzidas pelo Ministério Público (50) têm, a despeito do decidido no recurso extraordinário nº 593.727, como sempre adverte o ministro Marco Aurélio, (re)encontro marcado com o Supremo Tribunal Federal – há de passar pelo crivo do contraditório), com plena observância às garantias fundamentais e convenientemente fundamentadas.
O devido processo penal serve, então, de instrumento − paradigma de racionalidade −, para a aplicação de direito penal do fato e minimalista, (51) aliviando a sociedade de qualquer tipo de resposta punitiva arbitrária ou cujo interesse oculto ultrapasse a mera repressão à acusação confirmada judicialmente.
Em episódios recentes, a sociedade brasileira tem constatado algumas situações em que motivações subalternas prevalecem sobre a boa técnica.
Juízes (por sorte, alguns, ainda que barulhentos, não representam a generalidade da magistratura nacional) fogem da missão de condutores-garantidores da escorreita relação processual e tornam-se protagonistas do processo penal, atuando na busca de provas, com se acusadores públicos fossem. E relativizando procedimentos e direitos fundamentais, em prol do suposto combate à criminalidade, que não lhes compete, por força de norma constitucional; verdadeira faxina social. Tudo como se a inflação da máquina judiciária fosse fator determinante para a salvação do país.
Não se ignora que o sistema de justiça penal integra a estrutura do Estado e que, nessa condição, permeia-se por questões políticas. Sem embargo, a falta de lealdade à sua dimensão cerra os olhos de seus atores para o reconhecimento de sua seletividade e estímulo à manutenção de privilégios.
Certamente, não se trata de inaptidão de enxergar o óbvio, mas de falta de conscientização, quanto aos danos à vida da pessoa submetida às agruras do processo penal. (52) Este, por si só, é bastante forte para deixar, com marcas indeléveis, suas mazelas.
Privilegia-se a máquina e seus componentes, alçados ao status de salvadores da nação, em detrimento das garantias constitucionais. Daí advém a noção do processo penal como espetáculo, porque a observância da presunção de inocência e da legalidade estrita se tornam empecilhos na luta do bem contra o mal. Rubens Casara, no particular, doutrina que:
No processo espetacular desaparece o diálogo, a construção dialética da solução do caso penal a partir da atividade das partes, substituído pelo discurso dirigido do juiz: um discurso construído para agradar as maiorias de ocasião, forjadas pelos meios de comunicação de massa, em detrimento da função contramajoritária de concretizar direitos fundamentais (o Poder Judiciário, para concretizar direitos fundamentais, deveria julgar contra a vontade da maioria).
(…)
Se no processo penal democrático, a preocupação é com a reconstrução eticamente possível do fato atribuído ao réu, no processo penal do espetáculo o que ocorre é o primado do enredo sobre o fato. O enredo, a trama que envolve os personagens do julgamento-espetáculo, é conhecido antes de qualquer atividade das partes e o processo caminha até o final desejado pelo juiz-diretor. O primado do enredo inviabiliza a defesa e o contraditório, que no processo penal do espetáculo não passam de uma farsa, um simulacro. Em nome do “desejo de audiência”, as consequências sociais e econômicas das decisões são desconsideradas (para agradar à audiência, informações sigilosas vazam à imprensa, imagens são destruídas e fatos são distorcidos), tragédias acabam transformadas em catástrofes: no processo penal do espetáculo, as consequências danosas à sociedade produzidas pelo processo, não raro, são piores do que as do fato reprovável que se quer punir. (53)
No julgamento do juiz Fleming, quando apresenta sua defesa inicial, Kirkland inicia sua retórica questionando o que é justiça e qual seu desiderato em sociedade civilizada. Destaca os papéis contrapostos do defensor criminal, isto é, resguardar os direitos dos indivíduos para, como fiscal, fazer prevalecer as garantias e direitos constitucionais, bem como as leis do Estado, e do promotor, qual seja, defender as leis do Estado. Mas critica a produção de processo, no qual o objetivo é unicamente vencer, independentemente da aplicação da efetiva justiça.
No processo-crime de matiz constitucional não existe vencedor nem vencido. A justiça se dá quando consegue chegar à verdade processual. (54) Se não conseguir, o réu tem de ser absolvido, por mais odiento seja o crime que lhe foi imputado e por mais que a patuleia deseje sua condenação.
Compreender a dimensão política do processo penal é, portanto, essencial à construção de práticas processuais éticas e verdadeiramente democráticas, evitandose, por conseguinte, reduzir a discussão a uma visão maniqueísta de mundo. Afinal, o Estado que considera legítima a punição daqueles que transgridem a lei, não pode, sob suposta busca do bem-estar social, violar suas regras. (55)
Advocacia e ética: gêmeos univitelinos
Os valores pessoais e profissionais de Kirkland vêm à tona, em diferentes ocasiões simultâneas ao debate central da obra: a) seja em seu relacionamento amoroso com advogada pertencente ao conselho de ética que julgaria seu processo, com quem tem inúmeras conversas quanto à escolha dos casos a serem investigados, deixando sempre de lado os de grande expressão, para atingir só os de menor importância; b) seja no grave baque pessoal quando vê um cliente ser executado, em rebelião causada por ele em repulsa às violências e violações sofridas no cárcere; c) seja, ademais, quando descobre que cliente travesti, Ralph Agee, suicida-se mediante enforcamento, após ser injustamente condenada à prisão.
Quanto a esta última patrocinada, torna-se expressivo o atuar defensivo: não é a responsabilidade do cliente que viola seus íntimos valores, mas a indispensabilidade da relação de confiança advogado-cliente, de quem ele exige apenas a verdade, para o melhor exercício de seu múnus público. (56)
O advogado não tem nenhuma curiosidade, quando insta seu cliente a lhe dizer o que aconteceu. Necessita conhecer o fato, com todas suas circunstâncias, unicamente para, de modo mais satisfatório, articular a defesa que apresentará aos tribunais.
Já os valores de Fleming minguam com o avançar do filme. Inicialmente de inabalável senso moral, de que resultam julgamentos particularmente rigorosos e desapiedados, mostra, durante o processo no qual figura como réu, sua faceta corrupta e sua falta de caráter. Chantageia Kirkland a defendê-lo, ameaçando-o, o que já fizera por interposta pessoa, de expulsão da ordem dos advogados, depois de armar a instauração de processo ético
Fleming submete-se a teste de polígrafo, o qual se descobre posteriormente ter sido adulterado e faz surgir testemunha ocular do crime cujo relato é inteiramente falso, (57) enganando seu advogado a respeito de sua inocência.
Considerando verdadeiras as falsas provas, Kirkland empenha sua palavra e sua respeitabilidade, ao se dirigir ao promotor, Frank Bowers (Craig T. Nelson), para que ele arquivasse o processo. O pedido, entretanto, foi rejeitado, porque o acusador público − não muito diferente do que se vê, aqui e ali, em tempos modernos −, percebia naquela acusação grande oportunidade de ascensão profissional ou aplausos fáceis.
Apenas quando velho cliente lhe leva fotos de Fleming com uma mulher e um terceiro, (58) em contexto de abuso sexual, Kirkland confronta o magistrado. Nessa oportunidade lhe são revelados todos os estratagemas empreendidos para quebrantar o sistema judiciário e torpemente montados para ludibriá-lo.
Exsurge um dos fictos dilemas do criminalista: defender o juiz mesmo que culpado, tendo ele ultrajado a confiança advogado-cliente e fraudado todo o sistema de justiça, pelo qual Kirkland tinha verdadeira devoção, ou deixar a causa, diante da violação da confiança e sofrer as consequências da chantagem de Fleming.
Com o início do julgamento e após a exposição inicial do promotor, o filme atinge o clímax. Ao reconhecer que ganharia facilmente a peleja, uma vez que a acusação não dispunha de qualquer prova de suas imputações, exceto a palavra da vítima, (59) Arthur Kirkland decide abandonar a tribuna de defesa para ser implacável acusador. Diante dos juízes, Kirkland expõe todos os meandros da conduta delituosa de seu cliente, o que acarretaria, merecidamente, sua inabilitação para a advocacia.
A ética é imposta ao advogado em todas as circunstâncias de sua vida profissional e pessoal. Seja na relação com seus clientes, seja com seus pares ou demais profissionais atuantes na área jurídica. A conduta ética, em síntese, a tudo supera. (60)
Os deveres do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não são apenas orientações de bom comportamento, consistem em normas cogentes que devem ser cumpridas com imaleabilidade. (61)
Ao assumir o patrocínio do processo, cumpre ao advogado informar ao cliente, de modo claro e inequívoco, sobre eventuais riscos de sua pretensão e as consequências que poderão advir da demanda.
Por óbvio, deve o profissional imprimir à causa a orientação que lhe pareça mais adequada (a defesa técnica, (62) por força de lei brasileira, é de exclusiva responsabilidade do advogado), sempre almejando esclarecer ao patrocinado a estratégia lançada, na medida em que a relação entre o cliente e o advogado se lastreia na confiança, transparência e lealdade.
Não só em terras patrícias a lealdade ao cliente compreende atributo essencial na atuação do defensor, especialmente o criminal. Em maio de 2018, em interessante case decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, anulou-se julgamento, porque o advogado ignorou a vontade do réu.
Muito embora o cliente houvesse insistido, reiteradamente, em que se lhe defendesse a inocência, o advogado Larry English declarou, em manifestação inicial, que seu assistido realmente havia matado três pessoas, como alegava acusação.
Quando o processo referente ao assassinato era julgado, a corte de justiça norte-americana reconheceu que o criminalista engendrou linha de defesa correta, porque todas as evidências caminhavam em desfavor de seu constituinte.
A estratégia por ele formulada consistia, por isso, em ganhar credibilidade, para convencer os jurados a não condenar seu cliente à pena de morte, pois seria mais eficaz tentar mitigar a sentença do que insistir em sua inocência. Porém, o plano não funcionou. O réu foi condenado à pena de morte, em 2008, por triplo homicídio.
Ao rever o episódio, a Suprema Corte julgou, por maioria (6 a 3), na esteira do voto da juíza Ruth Bader Ginsburg, que o advogado não detinha o direito de desconsiderar as instruções do seu assistido, por melhor que fosse sua tese, motivo pelo qual a deslealdade ao cliente ensejava novo julgamento.
Destacou a magistrada que “[…] um réu tem o direito de insistir na defesa de sua inocência, mesmo que o advogado tenha percebido, com base em sua experiência, que confessar a culpa seria a melhor chance de evitar a pena de
morte”. (63)
A confiança é, pois, o revestimento que protege a relação entre advogado e cliente. Ainda que lhe seja conferida a liberdade para traçar a tática da causa, o defensor não se pode desvencilhar das premissas transmitidas pelo patrocinado, porque sobre este recairão eventuais consequências da derrota. Se conflito houver entre a defesa técnica e a autodefesa, não sendo possível, aos olhos do advogado, compatibilizá-las, deve deixar a condução do processo para que outro o assuma.
Além disso, cabe ao advogado atentar, em suas relações com os colegas de profissão, agentes políticos, autoridades, terceiros em geral etc., para o dever de urbanidade, tratando a todos com civilidade e consideração, ao mesmo tempo em que preservará seus direitos e prerrogativas, exigindo consideração igualitária.
A jurisdição penal brasileira, assim, firma-se em tripé, composto por juiz, acusador e advogado de defesa, no qual todos os atores, que não têm qualquer hierarquia entre si, se devem mútua consideração.
Além do compromisso, responsabilidade e empenho inerentes a qualquer profissional, exige-se do advogado atuação ética e proba compatível com a defesa de direitos e interesses de pessoas e instituições, na essencial e necessária administração da justiça.
Nota conclusiva
A abnegação profissional de Arthur Kirkland é latente em Justiça para todos. No entanto leva à sua vida pessoal os transtornos da profissão, tal qual acontece no mundo real.
Não são poucas as noites em claro ou mal dormidas e distantes de seus familiares. Não são mais escassas as indisposições assumidas com outros atores do sistema de justiça, para que o devido processo penal seja (re)estabelecido e o réu julgado com justiça que, como diz o filme, é para todos (ou para alguns poucos, como se denota do ensaio).
De forma inconteste, o longa-metragem desnuda o verdadeiro dever do criminalista: o imperativo do exercício do contraditório e da ampla defesa para a consolidação do estado democrático de direito. Ele se dá por intermédio, sobretudo, da defesa do próprio direito de defesa no exercício férreo dos interesses processuais de seus clientes, independentemente dos crimes eventualmente cometidos por eles. Ainda que isso frustre interesses punitivistas, intenções revanchistas das eventuais vítimas ou mesmo as autoridades que não toleram ser confrontadas, como se estivessem imunes a tudo e a todos.
Ao advogado é imposto arregalar os olhos e apurar o olfato para perceber abusos de autoridade e violações aos direitos mais basilares de seus assistidos. Ao mesmo tempo, compete-lhe servir com ternura sem descurar da elevação, como escudo e lança no inderrogável debate civilizatório em prol do direito de defesa, mas também baixar a guarda, quando perceber que a contenda assim exige.
Seu cotidiano impõe muita doação. Muita compaixão. Muita leitura. Muito estudo. Muita reflexão. Se se deparar com suas desilusões, suas derrotas, seus medos, enfim, com todos os sentimentos inerentes à pessoa humana, reunindo os cacos d’alma, tem de erguer o seu corpo e a sua mente, porque os desventurados, juntamente com seus familiares e amigos, que com eles sofrem e são penalizados diante dos preconceitos, esperam o conselho técnico, o apoio, o amparo e o aconchego que só o advogado sabe emprestar.
Essa é a penosa, mas demasiadamente gratificante missão do criminalista, em prol de justiça para todos; confia-se.
NOTAS
1 And Justice for All, no título original. Desenhado sob os ares da primavera de 2018, este ensaio foi elaborado para integrar livro de autoria coletiva, organizado pelo amigo e advogado José Roberto de Castro Neves, a quem agradeço a amabilidade do convite. Por ser direcionado ao público em geral, o corpo do artigo e notas de rodapé fornecem algumas explicações desimportantes para os conhecedores do sistema judicial, mas de difícil compreensão para leigos.
2 Luís Guilherme Vieira é advogado criminal; fundador e membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Sociedade dos Advogados Criminais do Rio de Janeiro (SACERJ). Foi, dentre outros, membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), do Ministério da Justiça, e da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio de Janeiro. Foi, também, secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, no qual presidiu a Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito, e coordenador e professor do Curso de Especialização em Advocacia Criminal (Rio de Janeiro e Paraná) da Universidade Candido Mendes.
3 Registro a colaboração dos criminalistas Lucas Rocha e Ana Carolina Soares, colegas de escritório, a quem agradeço pelas contribuições, pesquisas e debates cotidianos, quase todos incorporados no corpo do ensaio; tenho-os coautores.
4 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da liberdade: a defesa nos processos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 154.
5 Art. 213 do Código Penal: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
6 Oscar Wilde.
7 “A justiça é um conceito abstrato de aplicação universal e é somente através dela que se pode organizar e equilibrar o caos do mundo, bem como o caos que vive em nós mesmos. A justiça é um sentido de consciência moral elevado. A justiça busca reger um modo ideal e perfeito de interação social, de modo racional, imparcial e totalmente livre de interesses. Na doutrina católica, a justiça é uma das quatro virtudes cardinais (Justiça, Fortaleza, Prudência, Temperança) e representa um firme compromisso de dar aos outros o que lhes é devido. Na iconografia da justiça há três elementos que representam atributos tradicionais − olhos vendados, espada e balança − os quais aparecem frequentemente conjugados, uma vez que a simbologia de cada elemento complementa a simbologia do outro, criando uma unidade para o sentido de justiça; muito embora os elementos também apareçam isoladamente. A justiça é representada com os olhos vendados tanto na tradição grega (deusa Themis), como romana (deusa Iustitia). Os olhos vendados simbolizam a imparcialidade e transmitem a ideia de que diante da lei todos são iguais.
Com frequência, as representações da deusa (Themis) da justiça podem ter também mais dois elementos: uma espada [representando a decisão judicial, o rigor e a força da condenação] e uma balança [representando o equilíbrio das correntes antagônicas, a ponderação e a imparcialidade da justiça], ou apenas um deles. A espada pode aparecer no colo, ou apoiada no chão, geralmente sendo segurada pela mão direita. Já a balança é frequentemente segurada pela mão esquerda”. Disponível em: https://www.dicionariodesimbolos.com.br/simbolos-justica/. Acesso em 23 de maio 2018.
8 Em tom de blague, mas com muita propriedade, diz-se que, hoje (maio de 2018), é mais fácil nominar os onze ministros do Supremo Tribunal Federal do que os onze jogadores titulares da seleção brasileira, mesmo às vésperas de copa do mundo.
9 “Quase noventa por cento (para ser exato 89,35%) dos 2.002 cidadãos ouvidos, na última segunda-feira (dia 14/05), pelo instituto de pesquisa MDA (contratado pela Confederação Nacional do Transporte) desconfiam da Justiça brasileira. Algo como 90,3% afirmaram que ela não é igual para todos. Mais da metade (55,7%) consideram a atuação dela ruim ou péssima.” (CESAR, Arnaldo. Mídia esconde desaprovação do Judiciário. Disponível em: https://marceloauler.com.br/midia-esconde-desaprovacao-do-judiciario/. Acesso em 23 maio 2018.)
10 Destaque-se que advertências sobre a superpopulação carcerária vêm de muito tempo, porém os governantes fazem ouvidos moucos. No final do século passado, Cláudia Chagas, então “(…) secretária nacional de Justiça entre 2003 e 2007, [advertia que] se o Judiciário continuar a encarcerar nas proporções que hoje ocorre, teremos, em 2010, 500 mil presos!” VIEIRA, Luís Guilherme. Arte na Cadeia. In: RAHAL, Flávia; FINGERMANN, Isadora; CARDOSO, Luciana Zaffalon Leme; VIEIRA, Luís Guilherme; GARCIA, Roberto (org.). O direito do olhar: publicar para replicar. São Paulo: Instituto de Defesa do Direito de Defesa, 2009, p. 19. Obra selecionada pelo Programa Petrobras Cultural. Disponível em: https://redejusticacriminal.org/wp-content/uploads/2016/09/O-direito-do-olhar.pdf.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em jan/2017, havia 564.198 mandados de prisão expedidos aguardando cumprimento no Brasil. E o mais alarmante: esse número supera as 376.669 vagas oficialmente existentes nos presídios, de acordo com o último balanço do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), publicado em 2014. Logo, se todos os mandados fossem cumpridos, de uma só vez, seria preciso ocupar todas essas vagas e ainda criar mais 50%, para abrigar somente esses réus. PIRES, Breno. Com cadeias já superlotadas, País tem 564 mil mandados de prisão em aberto. Brasil. Estadão, 2017. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,com-cadeias-ja-superlotadas-pais-tem-564-mil-mandados-de-prisaoem-aberto,70001643216. Acesso em: 28 de maio 2018.
11 Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias − Infopen, jun/2016. Secretaria Nacional de Segurança Pública, jun/2016; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dez/2015; IBGE, 2016.
12 Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias − Infopen, jun/2016; PNAD, 2015.
13 Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias − Infopen, jun/2016.
14 Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/>. Acesso em: 21 maio 2018.
15 Ao evoluir seu pensamento sobre o ponto, Thompson, reverenciado como o maior penitenciarista da segunda metade do século findo, decreta que o sistema penitenciário “não tem solução ‘em si’, porque não se tratar de um problema ‘em si’, mas parte integrante de um outro maior: a questão criminal, como referência ao qual não desfruta de qualquer autonomia. (…) a questão criminal também nada mais é que mero elemento de outro problema mais amplo: o das estruturas sócio-políticas-econômicas. Sem mexer nestas, coisa alguma vai alterarse em sede criminal, e menos ainda, na área penitenciária”. THOMPSON, Augusto. A questão penitenciária. 5 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 110.
16 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 3.
17 Inquérito policial é o meio pelo qual, conforme a legislação brasileira, a polícia investiga os crimes.
18 Denúncia é a petição formalizada pelo Ministério Público que, recebida pelo juiz, dá início ao processo penal no Judiciário.
19 GROSNER, Marina Quezado. A seletividade do sistema penal na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: IBCCRIM, 2008, p. 54.
20 CASARA, Rubens R. R. Juízes e segurança pública: uma pesquisa e um mito. In: Não passarão: por Rubens. R. R. Casara. Disponível em: http://naopassarao.blogspot.com.br/2012/01/juizes-e-seguranca-publica-umapesquisa.html. Acesso em 25 maio 2013.
21 São as normas que impõem condutas e disciplinam relações jurídicas. Contrapõe-se ao direito processual, que determina as regras de procedimento que devem ser adotados no processo penal.
22 GRECO, Rogério. Direito penal do inimigo. Disponível em: http://www.rogeriogreco.com.br/?p=1029. Acesso em: 17 jul 2013.
23 ROSA, Vanessa de Castro. Mulheres transexuais e travestis no sistema penitenciário: a perda da decência humana e do respeito aos Direitos Humanos. In: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Boletim nº 280, março/2016. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5730-Mulheres-transexuais-e-travestisno-sistema-penitenciario-a-perda-da-decencia-humana-e-do-respeito-aos-Direitos-Humanos. Acesso em: 21 maio 2018.
24 O artigo 7º, 5, do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), dos quais o Brasil é signatário, dispõe: “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.” Por isto, o Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2015, regulamentou, ainda que tardiamente e à mingua de lei, a audiência de custódia, determinando que todo o preso em flagrante seja apresentado, em 24 horas, à presença de um juiz, para que este avalie a constitucionalidade, a legalidade e a imprescindibilidade de mantêlo encarcerado.
25 ROMÃO, Rosana. Defensoria pública investiga estupro sofrido por transexual em cela masculina de presídio. Tribuna do Ceará, 2 out. 2015. Disponível em: http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/segurancapublica/defensoria-publica-investiga-estupro-sofrido-portransexual-em-cela-masculina-de-presidio/. Acesso em: 18 maio 2018.
26 LIMA, Luís. Travestis detidas em presídios masculinos relatam agressões e violência psicológica. Brasil. Jornal O Globo, 21 fev. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/todo-dia-durante-um-mes-fui-estuprada-diztransexual-ex-detenta-22419265#ixzz5FsPUL0bK. Acesso em 18 maio 2018.
27 Idem.
28 Tímidos passos para reverter esta dantesca situação começam a ser dados no Rio de Janeiro, por intermédio da recém-criada Coordenação de Unidades Prisionais Femininas e Cidadania LGBT. In: HEREINGER, Carolina. Estado poderá ter presídio exclusivo para grupos LGBT. O Globo, caderno Rio, 26 maio 2018, p. 12.
29 VIERIA, Luís Guilherme. Crônicas de mortes anunciadas: breve ensaio sobre a cegueira. In: BESTER, Gisela Maria (org.) Sistema penal contemporâneo: a crítica e o debate. Estudos em homenagem a Antonio Claudio Mariz de Oliveira. 1 ed. Anápolis: Editora da Universidade Estadual de Goiás, 2010.
30 Em sede de medida liminar, na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) no 347, ajuizada pelo Partido Socialista e Liberdade (PSOL), o ministro relator Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, reconheceu a figura do estado de coisas inconstitucional (expressão utilizada por empréstimo da Corte Constitucional da Colômbia), no tocante ao quadro fático do atual sistema penitenciário brasileiro, de violência excessiva − recorrente, persistente e generalizada − de direitos fundamentais, a afetar um sem-número de pessoas encarceradas; de omissão reiterada das autoridades públicas, no cumprimento de suas obrigações de defesa e promoção dos direitos fundamentais; de premente e necessária adoção de medidas complexas de superação a violações de direitos, por uma pluralidade de órgãos; e, do notório congestionamento da justiça.
Indica, para tanto, o julgamento do recurso extraordinário (REXT) no 580.252/MS, em curso naquele tribunal, e faz menção a partes do voto do ministro Teori Zavascki, emblemáticas daquele anunciado estado de coisas, pondo em destaque o fato de que “em nossas prisões as condições de vida são intoleráveis” e, na prática, “os presos não têm direitos”.
Nesse contexto, o ministro Luís Roberto Barroso fez o registro de que “mandar uma pessoa para o sistema é submetê-la a uma pena mais grave do que a que lhe foi efetivamente imposta, em razão da violência física, sexual e do alto grau de insalubridade das carceragens, notadamente devido ao grave problema da superlotação”.
No âmbito internacional, sinaliza as sucessivas intervenções da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no exposto quadro fático de prisões legitimadoras de verdadeiros infernos pavorosos, e a condenação do Brasil a tomar medidas que erradiquem situações de risco e a proteção à vida e à integridade pessoal, psíquica e moral de pessoas privadas de liberdade, em várias penitenciárias do país.
Tal cenário se traduz em substancial violação a diversas garantias fundamentais, postas na Constituição Federal, assim especificadas, pelo princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1 o, inc. III); da solidariedade social (art. 3 o , inc. I e III); pela proibição da tortura, tratamento desumano ou degradante (art. 5 o, inc. III); pela imposição de sanções cruéis (art. 5 o , inc. XLVII, “e”); e, pelo essencial cumprimento de pena, em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5 o, inc. XLVIII); tudo a assegurar a sua integridade psicofísica (art. 5 o , inc. XLIX) e os direitos à saúde, educação, alimentação adequada e acesso à Justiça.
Como se não bastasse, o quadro carcerário deformante, retratado no voto do relator, se revela por falhas estruturais em políticas públicas, que se impõem também como práticas omissivas, em inobservância a tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil, a saber: Pacto dos Direitos Civis e Políticos; a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes; e, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF no 347, relator o ministro Marco Aurélio. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=ADPF&numero=347&origem=AP. Acesso em: 24 maio 2018.
Sendo assim, recomenda-se a leitura da obra de Celso Albuquerque Mello, que, em doutrina sobre a responsabilidade internacional do Estado, ainda contemporânea, defende o emprego do instituto do abuso de direito, em demandas que envolvam atividades estatais, recorrentes e gravosas, no âmbito do direito internacional público (DIP), pela funcionalidade que lhe é intrínseca, na medida em que se apresenta por meio do “exercício abusivo pelo estado de uma competência que lhe é dada pelo DIP. Este simples ato já constitui um ilícito internacional. (…). Pois, a noção de abuso de direito corresponde a uma tendência moderna do direito que é a sua socialização. O Direito tem em vista o estabelecimento de um equilíbrio entre o interesse individual e o coletivo. Ora, não há razões para que este último seja sacrificado em nome do primeiro. Salienta Raucent com toda razão que o abuso de direito é ‘o conceito graças ao qual se consegue denunciar o formalismo jurídico e atingir diretamente os valores subjacentes à lei’. O Estado não pode exercer as suas competências de modo a prejudicar a sociedade internacional. Devemos, contudo, reconhecer a dificuldade existente para a penetração desta noção no DIP, que ainda é extremamente individualista. Ela só seria possível com uma maior integração e consequente hierarquização da sociedade internacional. O abuso de direito acarretando a responsabilidade do seu autor é um ideal e não uma realidade a não ser em casos excepcionais”. MELLO, Celso Albuquerque. Responsabilidade internacional do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 163-165.
31 De se notar que Arthur teve de pedir a um colega que realizasse a audiência, porque encontrava-se envolto com seu sócio, que após um surto, por razões que se dissertará mais à frente deste artigo, fora hospitalizado. De qualquer sorte, descortina-se que o advogado responsável pela audiência de Agee não lhe prestou efetiva defesa. Fê-lo com irresponsabilidade tamanha que mereceria ser submetido a processo ético-disciplinar da Ordem dos Advogados norte-americana, sem falar nos processos por dano moral que familiares de Agee deveriam mover contra ele.
32 “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. A lei a que se refere a Constituição Federal é a lei nº 8.906/1999, conhecida como Estatuto da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil.
33 “A ideia de quarto poder surgiu a partir de meados do século 19 como recurso no meio de sociedades democráticas: um órgão responsável por fiscalizar os abusos dos três poderes originais (Legislativo, Executivo e Judiciário). Esse poder, representado pela imprensa, teria como dever denunciar violações dos direitos nos regimes democráticos – o que ocasionalmente não acontece – nos quais as leis são votadas democraticamente e os governos são eleitos pelo sufrágio universal.
Por muitos anos, o quarto poder recebeu o título de voz dos sem vozes e seus representantes sofreram grandes retaliações por diversos segmentos, o que não impediu que se mantivesse como forte contrapeso na balança social com os demais poderes. A mídia, com suas ferramentas de alcance e representatividade, seria os olhos e ouvidos da humanidade, a vontade e opinião do povo. Inclusive, as informações produzidas/veiculadas pelo quarto poder são o meio pelo qual a opinião pública se expressa. Ou seria o contrário?
O quarto poder hoje é orientado por um feixe de grupos econômicos e financeiros planetários e de empresas globais. A revolução midiática agrupa uma imprensa centralizadora e por vezes totalitária, imprensa que já possui autonomia e autoridade e controla o fazer jornalístico, cinematográfico, editorial, como um tentáculo sem fim. Sendo assim, como um quarto poder poderá não alcançar e construir uma opinião pública nivelada? ” CARVALHO NETTO, Reynaldo Carilo. O “Quarto Poder” e a censura democrática. In: Observatório da Imprensa, 2013. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/diretorioacademico/_ed765_o_quarto_poder_e_censura_democratica/. Acesso em 23 maio 2018.
34 Sobre o tema: VIEIRA, Luís Guilherme. O fenômeno opressivo da mídia: uma abordagem acerca das provas ilícitas. In: VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 45-56.
35 Sobre ética, recomenda-se: COMPARATO. Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
36 SILVA, Evandro Lins e. A defesa tem a palavra. 3 ed. Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 28.
37 BARBOSA, Rui. O dever do advogado: carta a Evaristo de Morais. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2002, p. 39.
38 Ibidem, p. 36.
39 SILVA, Evandro Lins e. Op. Cit., p. 53.
40 CHEATHAM, Elliot. Apud MORAES FILHO, Antonio Evaristo de. Advogado criminal, esse desconhecido. In: VIEIRA, Luís Guilherme; LIRA, Ricardo Pereira. Antonio Evaristo de Moraes Filho, por seus amigos. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 26.
41 Ibidem, p. 49.
42 Mateus, 22, 14.
43 “Criminalização da advocacia é exatamente o nome apropriado para descrever o processo de destruição simbólica da figura do advogado que a grande imprensa está conduzindo nos últimos meses. Certamente essa é uma surpreendente novidade, ainda que condizente com o histórico das últimas décadas”. KHALED JR., Salah H. Justificando: mentes inquietas pensam Direito. Disponível em http://justificando.cartacapital.com.br/2016/02/12/a-criminalizacao-da-advocacia-no-brasil/. Acesso em: 23 maio
2018.
44 VIEIRA, Luís Guilherme. O fenômeno opressivo da mídia: uma abordagem acerca das provas ilícitas. In VIEIRA, Luís Guilherme. Casos Penais. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 45-56.
45 Acerca das belezas da advocacia criminal, recomenda-se: SILVA, Evandro Lins e. O salão dos passos perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, FGV, 1997; e TRANJAN, Alfredo. A beca surrada: meio século no foro criminal. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1994. Acerca do importante papel dos advogados mundo afora, indica-se: NEVES, José Roberto de Castro. Como os advogados salvaram o mundo. 1 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
46 VENTURA, Zuenir. Apud BARANDIER, Antonio Carlos. As garantias fundamentais e a prova (e outros temas). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1977, p. 3.
47 O estado democrático de direito refere-se à concepção de um estado que busca garantir, democraticamente, por intermédio de uma Constituição, o exercício dos direitos fundamentais individuais, sociais e políticos, a liberdade, a igualdade e a justiça.
48 Conforme Geraldo Prado, o sistema penal acusatório refere-se a um sistema processual penal em que há a separação da figura do acusador e do juiz. O processo, assim, desenvolve-se a partir de um duelo público, oral e contraditório, entre acusador e acusado, perante um juiz imparcial. PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 112-113.
49 O fundamento da legitimidade da jurisdição e da independência do Judiciário está no reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição. Nesse sentido, Ferrajoli esclarece que “o Poder Judiciário se configura, em relação aos outros poderes do Estado, como um contrapoder, no duplo sentido que é atribuído ao controle de legalidade ou de validades dos atos legislativos assim como administrativos e à tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as lesões ocasionadas pelo Estado”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 465.
50 VIEIRA, Luís Guilherme. O Ministério Público e a investigação criminal. Rio de Janeiro. Rabaço: Rio de Janeiro, 2004.
51 O direito penal do fato compreende a noção de que o indivíduo somente pode ser punido pelo fato típico concretamente realizado; características pessoais não devem influenciar na aplicação da sanção penal. Por sua vez, a concepção minimalista do Direito Penal defende a sua mínima intervenção, buscando alternativas para a redução do encarceramento. Para Zaffaroni, “o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça”. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 106.
52 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Conan, 1995.
53 CASARA, Rubens. R. R. Processo Penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 12.
54 A impossibilidade de formular um critério seguro quanto à verdade decorre do fato de que a verdade “certa”, “objetiva” ou “absoluta” representa sempre a “expressão de um ideal” inalcançável. Assim, a verdade processual pode ser concebida apenas como uma verdade aproximada, obtida a partir das provas existentes no processo. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 42.
55 CASARA, Rubens. R. R. Processo Penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 146.
56 O advogado, por ser indispensável à administração da justiça, exerce, embora na atividade privada, uma missão pública, como os juízes e os promotores.
57 A testemunha que mente ou omite fato em juízo comete crime de falso testemunho.
58 A “vítima” foi industrializada por seu ex-cliente para atiçar o juiz – e o presidente do bar e um dos julgadores do processo ético-disciplinar a que Kirkland responde em seu órgão de classe, o qual, por pedido de Fleming, chantageara o criminalista − a praticar com ela o mesmo que praticara com a vítima do processo a que lhe movem.
59 Em contraposição aos tratadistas estudiosos da prova, os tribunais brasileiros muito valorizam estes depoimentos, mormente em crimes contra os costumes.
60 “A ética do advogado é a ética da parcialidade, ao contrário da ética do juiz que é a ética da isenção. Contudo, não pode o advogado cobrir com o manto ético qualquer interesse do cliente, cabendo-lhe recusar o patrocínio que viole sua independência ou a ética profissional. Não há justificativa ética, salvo no campo da defesa criminal, para a cegueira dos valores diante da defesa de interesses sabidamente aéticos ou de origem ilícita. A recusa, nestes casos, é um imperativo que engrandece o advogado.” (LÔBO, Paulo Luiz Neto. Comentários ao novo estatuto da advocacia da OAB. Brasília: Brasília Jurídica, 1994, p. 118).
61 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Comentários ao novo estatuto da advocacia da OAB. Brasília: Brasília Jurídica, 1994, p. 116.
62 Divide-se a defesa em defesa pessoal ou autodefesa, sendo esta a que é realizada pelo próprio réu, sem necessitar da intervenção de um advogado, e aquela a produzida por um advogado no curso do processo penal.
63 MELO, João Ozorio. Advogado não pode ignorar instrução de cliente, decide Suprema Corte dos EUA. Publi. 21 maio 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mai-21/julgamento-anulado-eua-porque-advogadoignorou-instrucao-cliente. Acesso em: 22 maio 2018.
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