O ex-presidente Lula fez nesta quarta um dos melhores pronunciamentos de sua carreira política, ainda que eu discorde de alguns aspectos pontuais. Não endosso, por exemplo, a crítica genérica às privatizações. A sua síntese para a gente sair do atoleiro econômico pode não ser a melhor porque o Estado não tem como investir. Não estava ali, no entanto, expondo um programa de governo. O que me interessou foi outra coisa: a fala de Lula (re)conferiu dignidade à política.
O cadáver adiado do udenismo até pode indagar: “Que país é este em que recebemos lições de um ex-presidiário?” É aquele que assistiu calado, quando não estava aplaudindo, à escalada de ações ilegais de Sergio Moro, alçado à condição de herói nacional e saudado com frequência por sua habilidade em ignorar as garantias legais. Afinal, seu propósito seria nobre: caçar corruptos. É o país que viu o doutor confessar em embargos de declaração que nem mesmo era o juiz natural do caso do tríplex.
Vivemos anos de insanidade judicial, de loucura mesmo! E caímos no atoleiro que aí está.
Lula passou 580 dias preso. Edson Fachin, o mesmo ministro do Supremo que anulou todos os processos que corriam na 13ª Vara Federal de Curitiba por reconhecer, finalmente, que Moro não era o juiz natural das causas, liderou os seis votos que mantiveram o ex-presidente na cadeia em abril de 2018 — nesse caso, ao arrepio do que dispõem a Constituição e o Código de Processo Penal. Assim, se você quiser saber que país é este que recebe lições de um ex-presidiário, convenham: a pergunta deve ser dirigida àqueles que contribuíram para coonestar a farsa.
DELÍRIO PUNITIVISTA
Vivemos a fase do delírio punitivista, pouco importando o que fizessem os procuradores da Lava Jato e o juiz. Afinal, havia um objetivo maior, que se sobrepunha ao devido processo legal: combater a corrupção. E muitos se desinteressaram de saber quais meios eram empregados para supostamente atingir esse fim. Sim, é preciso que a imprensa se pergunte que papel desempenhou nesse desastre.
Não havia Moro, afinal de contas, confessado em embargos de declaração que o juiz não era ele? Por que a admissão não causou espécie? “Ah, Reinaldo, porque há evidência de que houve corrupção”. É verdade, e a dinheirama devolvida por alguns diretores da Petrobras o evidencia de maneira insofismável.
Ocorre que as provas contra Lula no tal processo jamais apareceram. A sentença condenatória de Moro tem de ser estudada nas faculdades de direito país afora como exemplo do que um juiz não deve fazer. E daí? Tudo parecia irrelevante diante da missão. Ainda agora, alguns textos malandros insistem que até se pode estar a fazer justiça, mas que isso enfraquece o enfrentamento da corrupção. Bem, quem diz atuar ao arrepio da lei sob o pretexto de fazer o bem são esquadrões da morte e milícias. Como sabemos, são todos bandidos, criminosos.
DE VOLTA AO PRONUNCIAMENTO
A fala de Lula poderia estar cheia de rancor, voltada apenas para o passado. Mas não. Ele falou sobre o futuro e disse que vai conversar com todas as forças políticas do país — suponho que exclua o bolsonarismo — porque todas foram eleitas e representam a vontade do povo. “Ah, olha o caminho da bandalheira aí…” Não! A bandalheira não está em admitir, como é o correto, a representatividade do Congresso Nacional, mas na compra perniciosa de apoio — agora e antes.
O ex-presidente fez um firme pronunciamento em defesa da vacina, devidamente protegido por uma máscara — e assim também estavam seus assessores — e criticou duramente o negacionismo de Bolsonaro. Mais: falou diretamente ao povo:
“Eu vou tomar minha vacina e quero fazer propaganda pro povo brasileiro: não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina. Tome vacina porque a vacina é uma das coisas que podem livrar você do covid. Mas, mesmo tomando vacina, não ache que você possa tomar a vacina e já tirar a camisa, ir pro boteco, pedir uma cerveja gelada e ficar conversando, não! Você precisa continuar fazendo o isolamento, você precisa continuar usando máscara e utilizando álcool em gel.”
Lula soube tornar a sua dor menor do que a de milhares de famílias enlutadas e não perdeu o notável senso de didatismo que sempre teve. Não ameaça a população nem com negacionismo nem com a polícia. Era como se uma onda de senso de ridículo tomasse o país, e, mais do que nunca, o discurso negacionista de Bolsonaro se revelou em todo o seu despudorado absurdo. Parece que até o biltre se deu conta. Estávamos nós também nos acostumando à truculência, à falta de empatia, ao discurso destrambelhado. E Lula recolocou as coisas no lugar:
“É essa dor que a sociedade brasileira está sentindo agora que me faz dizer pra vocês: a dor que eu sinto não é nada diante da dor que sofrem milhões e milhões de pessoas. É muito menor que a dor que sofrem quase 270 mil pessoas que viram seus entes queridos morrerem. Seus pais, seus avós, sua mãe, sua mulher, seu marido, seu filho, seu neto, e sequer puderam se despedir dessa gente na hora que nós sempre consideramos sagrada: a última visita e o último olhar na cara das pessoas que a gente ama. E muito mais gente está sofrendo. E por isso eu quero prestar a minha solidariedade nesta entrevista às vítimas do coronavírus. Aos familiares das vítimas do coronavírus. Ao pessoal da área da saúde, sobretudo. De toda a saúde, privada e pública.”
SIM, OUTROS FALARAM
Sim, é claro que outros políticos expressaram a sua solidariedade ao povo e fizeram críticas muito duras ao desgoverno em curso. Mas nenhum deles foi vítima de uma das maiores farsas judiciais da história, a maior havida no Brasil. Ninguém transitou do céu ao inferno como Lula, perdendo, no percurso, a mulher, um irmão e um neto — o que rendeu uma penca de piadas infames daquelas pessoas que compunham a Lava Jato.
E, no entanto, ali estava ele, fazendo a defesa da política. Afirmou:
“Às pessoas que me destratam durante todos esses anos, eu quero dizer pra vocês. Eu quero conversar com a classe política. Porque, muitas vezes, [Fernando] Haddad, muitas vezes, [Guilherme] Boulos, muitas vezes, a gente se recusa a conversar com determinados políticos: é da nossa natureza.
Mas veja, eu gostaria que. no Congresso Nacional. só tivesse gente boa, gente de esquerda, gente progressista, mas não é assim. O povo não pensou assim. O povo elegeu quem ele quis eleger. Nós temos que conversar com quem está lá para ver se a gente conserta esse país.”
Eis aí.
“Ah, então jamais houve corrupção no país?”, pergunta-se aqui e ali. A indagação é tão errada que inexiste a resposta certa. Houve, há e haverá. E tem de ser duramente combatida. Segundo o devido processo legal. Não se cometem crimes para combater os crimes.
RODRIGO MAIA
A melhor leitura e a melhor síntese do discurso de Lula veio da pena de um político liberal, que, tudo indica, não estará ao lado de Lula ou de quem o PT escolher para disputar a Presidência em 2022. Escreveu Rodrigo Maia no Twitter:
“Você não precisa gostar do Lula para entender a diferença dele para o Bolsonaro. Um tem visão de país; o outro só enxerga o próprio umbigo. Um defende a vacina, a ciência e o SUS; o outro defende a cloroquina e um tal de spray israelense. Um defende uma política externa independente; outro defende a subserviência. Um defende política ambiental; outro a política da destruição. Um respeita e defende a democracia; o outro não sabe o que isso significa. Um fundou um partido e disputou 4 eleições; o outro é um acidente da história. Tenho grandes diferenças com o Lula, principalmente na economia, mas não precisa ser petista fanático para reconhecer a diferença entre o ex-presidente e o atual”.
É isso! De fato, não precisa.
Que se note: é muito pouco provável que eu vote num candidato do PT no primeiro turno. Se o nome do partido passar para o segundo, vai depender de quem seja o adversário. Por óbvio, este texto não é uma declaração de voto ou de adesão ao petismo.
A exemplo de Maia, dou relevo a quem dignifica a política como o lugar da resolução de conflitos, em oposição àquele que faz da destruição a sua profissão de fé.
Não entender isso corresponde a não entender nada.
Artigo publicado originalmente no UOL.
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