Por Isaías Dalle
Alguns dias antes das mortes produzidas em Jacarezinho, Rio, pela incursão de agentes policiais em mais uma ação da chamada guerra às drogas, o advogado e doutorando em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional pela UnB Jorge Messias concedeu entrevista para falar das propostas do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil para a defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito.
A conversa abordou, inclusive, o combate aos grupos armados de poder paralelo que assolam as periferias, uma vez que o tema é tratado pelo plano e representa uma das graves ameaças à luta por democracia e justiça no Brasil.
As duas propostas centrais da entrevista de Jorge Messias são a defesa de maior participação e controle popular nas decisões e ações de governo, de baixo para cima – ou seja, a partir dos territórios – e um novo pacto federativo, que dê mais poder para que os municípios e estados implementem políticas e ações que efetivamente cheguem à população. Incluindo segurança pública.
“Quando a população não está representada, a política vira conflito”, diz Messias, ex-assessor no governo Dilma e atual assessor do senador Jacques Wagner (PT-BA). Messias é também um dos redatores do Plano de Reconstrução do Brasil, elaborado pela Fundação Perseu Abramo com a participação de especialistas em diversas áreas.
Para a defesa da democracia e do Estado Democrático de Direito, o plano defende, em linhas gerais:
maior participação popular – nas decisões de governo e no acompanhamento das ações, por intermédio de orçamento participativo, eleição, ampliação e fortalecimento de conselhos, e na revisão de rumos e estabelecimento de novas políticas, com referendos e plebiscitos;
remoção do chamado “entulho autoritário” – revogação da Lei de Segurança Nacional (aprovada na Câmara semana passada e que será enviada ao Senado) e combate à violência policial e às forças militarizadas paralelas;
mudanças no sistema de Justiça – maior controle externo do Judiciário e novas formas, mais abertas, para a escolha de juízes, procuradores, ministros, de forma a incluir pessoas de fora de uma elite jurídica
Acompanhe a entrevista:
Jorge, a partir da retirada da Dilma da Presidência e da prisão do Lula – surgem cada vez mais evidências de decisões fraudulentas – houve um desmonte profundo de diversas estruturas e mecanismos de proteção social e da própria democracia. O arcabouço da democracia não é tão firme como a gente imaginava. Como é que o Plano pretende superar isso? Qual medida deve ser tomada primeiro nesse sentido?
O Plano parte de um eixo fundante que é o reconhecimento de que é preciso radicalizar a democracia, um processo de refundação do Estado, e propõe um caminho de democracia de alta intensidade. Uma ampla participação popular em várias etapas da vida pública nacional. Nós reconhecemos que não é suficiente, a participação popular não pode se encerrar na simples ida às urnas. Nos nossos governos tivemos experiências bem-sucedidas, com conferências, fortalecimento dos conselhos. Todos esses elementos como suporte para a tomada de decisão da gestão pública. E nós temos visto o enfraquecimento absoluto desses mecanismos de gestão. As conferências foram interditadas nos níveis federal, estadual e municipal. Então a população se vê sub-representada. Umas das primeiras ações do governo Bolsonaro foi extinguir a participação popular nos conselhos no âmbito dos ministérios. A população não tem mais voz no processo de decisão. Nós reconhecemos que é preciso radicalizar a democracia nesse nível. Porque a tomada de decisão sem a participação popular levará inevitavelmente a visões autoritárias. Sem a contraposição de visões, que ajude o gestor a apresentar melhores soluções, é isso o que está acontecendo hoje: a sombra do totalitarismo, onde poucos tomam decisões. A sub-representação de grandes parcelas da população leva inexoravelmente ao conflito.
Do ponto de vista constitucional, os poderes devem ser harmônicos entre si. E diante da sub-representação, você vê cada vez mais acionados os poderes Judiciário e Legislativo. Que intervêm no processo conhecido como ativismo judicial, revendo políticas públicas do Poder Executivo, muitas vezes por reconhecer a ausência de participação popular no processo. E também no âmbito do Poder Legislativo: esse governo bate recorde de pedidos de suspensão de propostas, de decretos e portarias, a partir do decreto legislativo, que é um instrumento constitucional. Por quê? Quando você retira a população da construção das políticas, você não vai varrer para debaixo do tapete os problemas. Eles vão eclodir. A externalização da crise se dá através do excesso de recursos aos poderes Judiciário e Legislativo. Isso leva ao alto grau de degradação institucional, não contribuindo para a harmonia entre os poderes.
As experiências e instrumentos de participação popular – o orçamento participativo, a realização de conferências, a presença de trabalhadores nos conselhos das empresas estatais – tudo isso, ao que parece, foi desmontado com uma facilidade muito grande. Como fazer para que este tipo de participação seja menos vulnerável? E como seria o processo de escolha, de eleição dos representantes populares para essa tarefa?
Você lembrou do orçamento participativo, e devemos lembrar que a grande disputa se dá sempre na disputa orçamentária. Diversos setores disputam. Se a gente não democratizar a peça orçamentária, não vamos conseguir fazer boas entregas para o conjunto da população. Porque é o momento em que haverá a intervenção elementar da cidadania na construção do orçamento que se pretende executar, seja no plano federal,
estadual e municipal. É claro que é menos complexo no plano territorial, do município, mas é uma experiência bastante exitosa também no plano federal.
Qual é o processo de legitimação natural desses conselhos, dessas conferências? É eleição. Existem avanços nesse sentido. Eu quero lembrar aqui que na época da designação de conselheiros tutelares, no primeiro momento você tinha indicação direta de autoridades, de políticos. Hoje, por força de lei, os conselheiros tutelares são eleitos. A gente precisa ter essas boas experiências como referência para a construção de nossas propostas.
Outra questão central é a fragilidade institucional, que é evidente. Na medida que você tem uma mudança de governo, que por um simples decreto faz ruir toda uma estratégia de participação popular, você vê como é frágil a nossa democracia. Então é necessário que a gente fortaleça a participação popular – e eu quero dizer que não é necessariamente na Constituição, mas do ponto de vista legal, o instrumento elementar de participação da cidadania na construção das políticas públicas.
Eu quero lembrar por exemplo que esse governo, muito obcecado pela liberdade econômica, pelo neoliberalismo, uma das primeiras medidas que ele tomou foi a medida provisória prenunciada como medida provisória da liberdade econômica, e que desregulamentava geral, e que preconizava que nenhuma medida do governo poderia ser tomada a partir da ausência de um instrumento chamado análise de impacto regulatório. No nosso processo de radicalização da democracia, nós temos de fazer o mesmo, mas com sinal trocado: nenhuma medida adotada pelo governo pode ser formulada prescindindo da participação popular. Com instrumentos que nós já temos. Eu cito aqui a consulta pública: ela deve ser o ponto de partida para a construção de políticas públicas.
O Brasil tem muitas leis, mas tem um déficit de cumprimento das leis. Exatamente porque em muitas delas a população não se vê representada, porque ela não participou da construção das políticas.
Em alguns países, a eleição de representantes populares para conselhos locais, ou de diversas instâncias, acontece junto com a eleição para cargos majoritários, como prefeitos, governadores. Os países utilizam sua estrutura eleitoral para difundir e realizar a escolha, simultaneamente. Você acha que essa é uma modalidade viável para o Brasil?
Sim, e está no radar do Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil. Cito os exemplos dos Estados Unidos e do Canadá, onde os processos de consulta são amplíssimos. O eleitor é chamado a falar não só na escolha de seus representantes, mas também em relação a temas, matérias que são colocadas lá. Nós padecemos de um déficit de consulta popular. Aqui, qual foi a última grande consulta popular? A questão do desarmamento, que já faz 15 anos. Recentemente, foi alterada a legislação de trânsito, com um impacto gravíssimo para toda a população, e ela não foi chamada a opinar.
Nós temos um sistema eleitoral robusto e altamente tecnológico. É muito factível que a população seja chamada nesses momentos. A cada dois anos a população é chamada para opinar nas urnas, mas isso é insuficiente. Ela precisa falar sobre outros temas, ela precisa escolher seus representantes locais para fóruns, para conselhos. O povo quer participar, e não somente através das redes sociais.
Queria te perguntar sobre esse papel preponderante que o Judiciário tem hoje, também um tanto quanto errático, num determinado momento tem um entendimento sobre uma determinada questão, em outro momento a opinião muda. Isso deve confundir um bocado a cabeça da maioria das pessoas. Isso está descalibrado ou é assim mesmo? Há uma forma de atingir um ponto de moderação?
Nós temos reflexões, um ponto de partida para o debate, não tem nada fechado. Entendemos nessas reflexões que a mídia, o whatsapp, o processo de publicização exacerbado a partir da mídia no processo judicial foi danoso para a democracia. Isso deixa a magistratura e o sistema de Justiça muito vulnerável à pressão popular, em momentos em que o sistema de justiça tem que entender que o seu papel tem de ser contramajoritário em defesa de minorias e de posições que estão expressas na Constituição. O papel do magistrado, seja do piso até o ministro, é o de garante da Constituição. O papel do Ministério Público original, decorrente da Constituição, é o de defensor da ordem democrática. Até que ponto este papel não está transmudado pelo impacto midiático? Que tipo influência se trouxe para o debate jurídico intervenções de ordem jornalísticas no leito natural do processo judicial? Então é preciso que se proponha uma reforma do sistema de justiça. É insuficiente você falar do Judiciário, como a gente fez na reforma do Judiciário, porque temos todos um sistema de Justiça que precisa ser repensado. Como é que nós vamos blindar o tomador de decisão desse tipo de pressão, que é indevida. Ninguém acha razoável o tipo de pressão, que causa ojeriza, de agressões a ministros do Supremo, de maus-tratos pela sua tomada de decisão, nem de um lado nem de outro, aqui não tem questão ideológica ou partidária. A tomada de decisão precisa ser calcada na lei, na Constituição. Agora, é o transbordamento do fundamento judicante é que nos preocupa. Eu não posso citar matéria jornalística ou votar pensando no Jornal Nacional. Muitas decisões são hoje tomadas na busca de se cacifar socialmente. Não deve ser papel do magistrado se cacifar socialmente. Existe aí uma desconformidade com a Constituição. Muito se fala de uma nova Constituição, de uma reforma constitucional, mas nós temos uma boa Constituição em relação à separação de poderes, em relação ao papel de cada um. O exercício regular do que estabeleceu o constituinte para cada um já seria de bom tamanho.
A reflexão que o plano traz é que essa tensão se dá na ausência de participação popular, porque a resistência à construção de propostas a partir de sub-representação é natural dentro do processo da gestão pública. Quanto mais sub-representados os grupos na formulação de propostas, mais questionamentos. Quando construídas com participação popular, as políticas podem enfrentar resistências, é natural, mas não se transformam numa crise nacional, interditando a política e o bem maior que é o benefício à população. Esse é a na nossa visão o ponto de virada.
O Plano tem uma outra proposta neste capítulo de garantia do Estado de Direito, que é combater a violência policial e o poder paralelo de grupos militarizados e armados, como as milícias. Tarefa complicada, não? Como você imagina que isso possa ser enfrentado?
Esse é um desafio é real. Nós reconhecemos o estado paralelo, existe uma milícia hoje, que tem fortalecida pelo atual governo, pela forma de pensar, pela construção ideológica e pela ausência de gestão e pela força da narrativa. Quem aposta na narrativa e não a aposta na gestão. Quando você aposta na narrativa e não aposta na gestão, você vê a população compelida à força de milícias. Porque o território é onde as pessoas vivem e é onde as milícias estão presentes. O principal ponto decorre da ausência do Estado. O Estado quando é ausente, e aí é ausente em políticas de educação, saúde, de comunicação, de ciência e tecnologia e de segurança pública, dá espaço para poder paralelo. Então o que eu acho é que as políticas sejam bem concebidas para que estejam na ponta. Aí a gente precisa realmente pensar a construção do nosso pacto federativo. Existe uma centralização de poder, uma centralização de recursos muito forte no âmbito federal, e isso leva ao enfraquecimento dos municípios. A pauta das municipalidades precisa ser muito fortalecida e reconhecida como elemento-chave de entrega de serviços de qualidade para a população. É preciso que o Estado chegue ao território. Mas é pretensão da União querer chegar no seu bairro, no meio bairro. Não adianta. É a municipalidade que vai dar conta disso. Nós não vamos dar conta de fazer a discussão da segurança pública sem debater a questão do pacto federativo e da reforma tributária para o fortalecimento orçamentário, para entrega de bons serviços, para os estados e para os municípios.
Essa participação popular, com a eleição de representantes locais, não tornaria o processo decisório lento demais para um país que precisa de soluções muito rápidas?
Algo que parece um elemento conflituoso. O processo de participação popular torna a construção da política mais lenta, e isso é fato. Agora a grande questão é o seguinte: que tipo de política você quer construir? Uma política deficiente ou uma política que vai ficar? A política do alto para baixo é mais rápida, mas a experiência indica que a ineficácia também é. Participação popular garante mais estabilidade.
Entrevista publicada originalmente no site da Fundação Perseu Abramo.
Deixe um comentário
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados com *