Por Juliana Domingos de Lima
Ao ‘Nexo’ o professor Silvio Almeida analisa a onda de protestos contra violência policial e racismo nos EUA, e comenta a relação dos atos americanos com manifestações brasileiras
Meses após a chegada do novo coronavírus a países como Estados Unidos e Brasil, a crise deflagrada pela pandemia divide espaço com agitações de ordem política e social.
Nos EUA, o assassinato de um homem negro, George Floyd, por um policial branco, Derek Chauvin, em 25 de maio, levou a protestos que ganharam escala nacional.
Ao redor do país, o cenário que já completa uma semana inclui marchas pacíficas, situações de saques e vandalismo em algumas cidades e forte repressão da polícia. Floyd, que estava desarmado, foi imobilizado pelo policial no chão e morreu por asfixia enquanto avisava que não conseguia respirar. Um vídeo da ação, gravado por um transeunte e compartilhado nas redes sociais, foi o combustível para a indignação popular.
Setores que se opõem à violência policial, ao racismo e a posicionamentos antidemocráticos do presidente Jair Bolsonaro também se manifestam no Brasil em meio à pandemia. Operações policiais em comunidades cariocas continuaram a acontecer durante a quarentena, e tiveram entre as vítimas mais recentes o adolescente João Pedro Pinto, de 14 anos, que jogava sinuca dentro de casa em São Gonçalo quando levou um tiro de fuzil pelas costas, em 18 de maio.
Moradores da comunidade protestaram no dia seguinte, em seu enterro. Centenas de pessoas se manifestaram em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do Rio de Janeiro, na tarde de domingo (31), contra operações violentas nas comunidades. O protesto foi chamado de “Vidas negras importam”, nome traduzido do movimento Black lives matter, criado em 2013 nos EUA e que atua em diversos países.
A manifestação foi encerrada pacificamente, mas a polícia lançou bombas de gás lacrimogêneo e fez disparos de balas de borracha para dispersar pessoas que ainda chegavam ao local. Também no domingo (31), atos marcados por torcidas organizadas de times de futebol reuniram pessoas no Rio, São Paulo e Belo Horizonte com um discurso em defesa da democracia.
Tanto no Brasil quanto nos EUA, a letalidade do novo coronavírus é maior entre pessoas negras, em geral mais vulneráveis social e economicamente.
Professor visitante da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e presidente do Instituto Luiz Gama, o jurista e doutor em filosofia Silvio Almeida falou ao Nexo na segunda-feira (1º) sobre a centralidade da questão racial nos protestos em curso nos dois países, além das aproximações e distanciamentos entre seus contextos.
Qual é o peso da pauta antirracista nos protestos no Brasil e nos EUA?
SILVIO ALMEIDA A questão racial sempre esteve no centro. Mas o próprio racismo, que é também um processo de constituição da consciência das pessoas, da maneira como elas veem o mundo e são afetadas por ele, [fez com que] a pauta racial fosse desprezada. A maioria das pessoas que tomam decisões desprezaram a pauta racial. O jornalismo desprezou a pauta racial. Os juristas desprezaram a pauta racial. Os economistas desprezaram a pauta racial. Grande parte dos políticos desprezou a pauta racial. Os educadores desprezaram a pauta racial, em sua grande maioria.
As vozes – negras em especial, mas também de pessoas brancas –, que sempre viram a questão racial como central têm razão. Porque disseram o seguinte: não dá para falar de desigualdade no mundo, nem de democracia, sem falar de questão racial.
Então no momento em que se vê a ruína da economia mundial, que é um processo que já vem de muito tempo, e a ruína da democracia liberal, obviamente que emerge a questão racial, que sempre foi abafada com discursos ideológicos que pregavam um consenso onde não havia. E o mundo se vê absolutamente perplexo.
[Pergunta-se] ‘O que está acontecendo? Por que as pessoas estão contestando as instituições, por que elas estão questionando o american way of life?’ É óbvio, porque a questão racial sempre esteve no centro, sempre afetou a vida das pessoas com violência institucional. E isso explodiu agora, em um momento de pandemia, que é o que a gente chama de tempestade perfeita.
Todas as condições para a revolta e para a insatisfação se colocaram em um único momento. E com o agravante de que há no Brasil e nos Estados Unidos – que é o país mais rico e poderoso do mundo – um presidente que não tem qualquer tipo de sensibilidade para os problemas que fazem com que essas pessoas se dirijam às ruas agora.
Estão dadas as condições para o inconformismo, para que as pessoas arrisquem a vida por acharem que ela não tem valor diante do que está acontecendo agora. É isso que a gente está vendo.
Como a luta antirracista se relaciona, nos dois países, com os movimentos antifascista e pró-democracia?
SILVIO ALMEIDA Não há que se falar em democracia – na ideia de democracia com uma ampla participação popular nas decisões políticas, nos rumos de um país, de uma comunidade – se não há igualdade racial.
A desigualdade racial sempre foi e será um constrangimento a qualquer projeto verdadeiro de democracia que vá além da mera formalidade. Quando há uma desigualdade racial gritante, que se manifesta na desigualdade econômica que atinge as pessoas negras, no tratamento institucional, na violência policial, no encarceramento em massa, na ausência de representatividade política e social, tudo isso vai gerando fissuras no discurso ideológico que diz que vivemos em democracia.
É apenas uma aparência de normalidade, quando, ao fim e ao cabo, temos uma sociedade fraturada e em convulsão. E, quando as instituições não conseguem dar conta de produzir mínimos consensos para sustentar essa aparência de participação popular e de igualdade formal, há uma explosão social. Quando há uma ausência de lideranças políticas capazes de unificar e legitimar um discurso e práticas de coesão social é isso que se dá, uma ausência de suportes ao discurso democrático.
As instituições que sustentam a democracia liberal estão sendo corroídas. É um modelo que não se preocupa com a substância da participação política, a efetiva participação das minorias para que elas possam, ao decidir, tomar conta do próprio destino.
E assim os discursos que pregam que o modelo de sociedade em que nós vivemos é um modelo igualitário, que ele é a única forma de viver, e a mais civilizada, não se sustentam diante da situação real das pessoas. Ainda mais em uma sociedade em que as pessoas estão tendo que escolher entre morrer doentes, de fome ou assassinadas pela polícia. Quando as pessoas só têm essas três escolhas, elas vão, obviamente, buscar estabelecer uma outra via.
A luta antifascista hoje é uma luta antirracista também. E a luta antirracista é uma luta antifascista em tudo aquilo que o fascismo significa, inclusive [contra] a face concentradora de renda e elitista do fascismo. Como disse [o filósofo e sociólogo] Herbert Marcuse, o fascismo quer destruir as possibilidades de contradição. O fascismo é a tentativa política de esmagar o outro, o contrário, esmagar a fissura que abre espaço para algo novo. O horror econômico, os projetos de concentração de renda, de superexploração do trabalho, têm tudo a ver com fascismo. O fascismo é um projeto político, econômico e cultural e que envolve o racismo.
Por que os protestos eclodiram agora, e com tanta força?
SILVIO ALMEIDA O assassinato do George Floyd, evento que catapultou isso, foi o estopim de uma insatisfação crescente, diante de assassinatos sistemáticos pela polícia nos Estados Unidos.
Não é a primeira vez que isso ocorre, e em grande parte das vezes não há reforma nas instituições policiais. E mais: os indivíduos que estão diretamente envolvidos na situação muitas vezes não recebem punição. Ou seja, é um sistema que falha porque produz esse tipo de aberração e a própria instituição não consegue estabelecer mecanismos punitivos que funcionem contra seus agentes que se desviam daquilo que o sistema de Justiça se propõe a realizar.
Isso passa um recado muito ruim para as pessoas. As manifestações são resultado de uma profunda desesperança e desconfiança no sistema político e no sistema econômico. Mas o fato de elas estarem desesperançadas com relação ao sistema não quer dizer que elas não tenham esperança de que a vida delas possa ter um outro rumo.
Esses protestos não têm um horizonte claro, e não é um problema não ter. Porque esse horizonte político muitas vezes é dado no interior do próprio processo.
A violência se apresenta [nos protestos] não como alternativa ou método, mas simplesmente como um fenômeno que ocorre justamente porque não são apresentadas pelas autoridades políticas alternativas para o diálogo.
Na verdade, não há condições objetivas ou subjetivas das atuais lideranças políticas institucionais para oferecer o diálogo e, individualmente, os ocupantes do poder, principalmente do poder federal dos Estados Unidos, não têm sequer capacidade para isso. Isso porque foram eleitos justamente para implantar uma plataforma política de não-diálogo com as pessoas que estão protestando agora.
A administração atual dos Estados Unidos foi eleita como o avesso a tudo que os manifestantes têm como horizonte existencial. É uma administração que abriga supremacistas brancos, e o supremacismo branco é calcado também na naturalização da desigualdade política e econômica entre brancos e negros.
Isso não começou nessa administração, os EUA são um país secularmente atravessado por isso. Mas hoje, no ano de 2020, há alguém [no poder] que expressa de maneira aberta esses valores que são, no fundo, anticivilizatórios se a gente entender civilização como aquilo que leva a uma dinâmica de resolução de conflitos que podem ser deduzidos não pela violência, mas pela possibilidade consenso.
Se há hoje lideranças institucionais que não têm a menor capacidade de oferecer um diálogo que se coloque como alternativa à violência, a violência aparece.
Quais os pontos comuns e as diferenças entre os atuais protestos nos EUA e no Brasil?
SILVIO ALMEIDA Há um discurso muito desinformado segundo o qual os negros no Brasil não lutam da mesma maneira que nos Estados Unidos. Mais do que desinformação, isso é mentira.
Não leva em consideração as similaridades e também as profundas diferenças que existem na formação social tanto do Brasil quanto dos Estados Unidos. As estratégias de luta e de resistência antirracista, de luta social, são resultado dos processos históricos vividos por cada país. O tipo de racismo é que vai definir o tipo de luta antirracista.
A posição que os Estados Unidos ocupam na organização do capitalismo internacional é muito distinta da que o Brasil ocupa, e isso tem consequências na compreensão da desigualdade racial. Nós somos a periferia do capitalismo, os Estados Unidos são o centro. Isso implica uma diferença na organização do trabalho [nos dois países], um processo diferente de formação dos sujeitos que vão pertencer a essa organização social e econômica. Os processos históricos de racialização são, por conta disso, diferentes.
Em comum, Brasil e Estados Unidos têm o fato de que são economias forjadas a partir do colonialismo e do processo do tráfico de escravos. A formação das economias, a conexão com a industrialização se deu justamente com a exploração do trabalho escravo, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Mas em posições distintas. Por isso cada país viveu um processo histórico.
Vieram quase cinco milhões de pessoas escravizadas para o Brasil, que foi o último país a abolir a escravidão. Isso faz com que o Estado brasileiro seja muito mais violento. Vamos lembrar o número de pessoas assassinadas no Brasil. Nem todas foram mortas pela polícia, mas dessas pessoas a maioria era homens negros jovens. Isso tem a ver com o racismo. É um país portanto que normaliza, naturaliza a morte de pessoas negras.
Nos Estados Unidos, ainda que haja esse nível de violência policial, não se chega ao nível de assassinatos do Brasil. O Estado [nos EUA] é assassino e suicidário, mas não como no Brasil. Aqui, nós tivemos que desenvolver estratégias de sobrevivência, de luta e de resistência negra. O Brasil é um país autoritário, economicamente dependente e racista. Essas são as condições históricas contra as quais a população brasileira e especialmente a população negra brasileira teve que sobreviver e lutar.
Acho inclusive que nós temos algumas coisas para ensinar aos americanos, assim como eles também têm para ensinar pra gente. Cada vez mais, e esse movimento que está acontecendo demonstra isso, as condições do mundo, as redes sociais, a conexão que existe, faz com que haja um intercâmbio das formas de luta, de tal sorte que esses movimentos tendem a se espalhar.
Estamos vivendo uma situação muito complexa e não há uma saída fácil para isso. Não é só desarmar uma bomba. Nós vamos ter que abrir possibilidades políticas para que essa insatisfação seja tratada.
Todos nós, negros, sentimos o peso do joelho do policial no nosso pescoço. Dificilmente uma pessoa negra não se sentiu sufocada junto com o George Floyd. Antes dele, Eric Garner foi assassinado [de forma semelhante]. Tivemos também o assassinato de um jovem dentro de um supermercado em São Paulo, enforcado por um segurança. O racismo sufoca, nos tira o direito de respirar.
Entrevista publicada originalmente no Nexo Jornal.
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