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O caso Dona Bernadete

O caso Dona Bernadete

Por Manuellita Hermes

O Brasil de volta na arena de desafios democráticos e interamericanos

No dia 17 de agosto, Dia do Patrimônio Histórico Nacional, o Brasil perdeu Maria Bernadete Pacífico, ialorixá e liderança feminina do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador, Bahia. Após a agressão ao patrimônio material e imaterial brasileiro no dia 8 de janeiro, o dia 17 de agosto surge como um novo marco para desafiar a nossa democracia.

O falecimento de Dona Bernadete Pacífico traz à tona três pontos: a proteção e a efetivação de direitos de quilombolas; o papel e a vulnerabilidade da mulher negra; e o cumprimento, pelo Estado brasileiro, do seu mandato interamericano. Foquemos no último, que pode ser um caminho de mitigação dos dois primeiros.

Além da imperatividade de cumprimento do projeto de cidadania estabelecido pela Constituição de 1988, o Brasil, como integrante do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, promulgou, em agosto de 1996, a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994.

Já em janeiro de 2022, foi promulgada a Convenção Interamericana contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, firmada pelo país na Guatemala, em 5 de junho de 2013. O seu art. 4º determina que “os Estados comprometem-se a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância”.

Além disso, a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), ao desenvolver os contornos do chamado controle de convencionalidade, preconiza que todos os agentes do Estado —ou seja, todos os Poderes— devem agir em consonância com as normas internacionais do aludido sistema.

Em 19 de agosto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos condenou o assassinato de Dona Maria Bernadete e instou o Estado brasileiro a imediatamente investigar o caso de forma diligente e com perspectiva étnico-racial e de gênero.

Ciente disso, rememoro que, no último dia 2 de agosto, a Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e a Defensoria Pública da União (DPU) celebraram um acordo de cooperação técnica para imprimir celeridade ao pagamento de indenizações decorrentes da condenação do Brasil pela Corte IDH no caso empregados da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil, em razão de uma explosão ocorrida em uma fábrica de fogos de artifício de Santo Antônio de Jesus, na Bahia, que gerou o óbito de 60 pessoas em dezembro de 1998.

Sim, dezembro de 1998. A cerimônia foi marcada pelo registro emocionante de que o tempo para a reparação tem o potencial de produzir uma revitimização e afastar o país dos seus papeis constitucional e interamericano.

A compreensão do que somos como nação pressupõe buscar no passado linhas de raciocínio que nos permitam refletir sobre as demandas do presente. Afinal, são disputas de memórias que sempre estão em jogo, de modo que todas as tensões que por ora estão em evidência merecem estar em sincronia com todo percurso já vivido. O Direito é reflexo da estrutura da sociedade, das representações ideológicas, das práticas discursivas hegemônicas e contra-hegemônicas, das manifestações de poder e, sobretudo, dos conflitos entre atores sociais.

Que o Brasil saiba se apropriar das lições da sua própria história para lidar com o caso Dona Bernadete, de posse de todo o patrimônio normativo-jurídico já erigido.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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