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O Congresso são os outros

Por Gabriela Prioli e Luiza Oliver

“Ir para as ruas” tornou-se prática comum no Brasil, o que, em tese, configura um belíssimo e elogiável exercício democrático.

Contudo, as pautas que têm servido de mote às manifestações, não raramente, possuem claro apelo antidemocrático.

E aí, se não compreendermos bem o que é democracia, corremos o risco de bradar desavisados por um país que não é, de fato, o que nós queremos.

Vamos ao exemplo atual. Lê-se de uma das convocações para a passeata do dia 15.3, “Basta de sermos reféns de um Congresso que vive em função de satisfazer interesses próprios”.

Pergunta: quem é esse Congresso? Estamos falando de todos os parlamentares e, numa alternativa autoritária, a proposta é literalmente fechar as portas do Congresso? Ou fazem parte “desse congresso de que somos reféns” somente os que divergem do presidente da República e a ideia é “apenas” calar (ou cassar) os deputados de oposição, numa alternativa também autoritária?

É urgente que entendamos como funciona a democracia, que pressupõe pluralidade de ideias e de convicções. É certa a legitimidade de um presidente eleito segundo as regras do jogo. Ele pode e deve governar. Isso não significa, entretanto, que possa fazê-lo sem limites, sem oposição e sem discordância. É presidente, não Deus.

Se a legitimidade do presidente vem do voto popular, é daí também que vem a legitimidade do Congresso. Deputados federais e senadores são, como o presidente da República, eleitos segundo as regras do jogo.

Parecem obviedades, mas, nesta semana de ataques ao Congresso, assistimos, atônitas, a um deputado federal dizer que “o importante é o povo ficar contra o Congresso”, já “que nenhum deputado foi eleito com o tanto de votos que teve o presidente”.

Não bastasse a ironia contida na crítica ao Congresso vinda de um congressista, questionar a legitimidade do Congresso Nacional usando, para isso, votações nominais em deputados — ou senadores — é argumento que só poderia ser levantado por alguém que, ou age de má-fé, ou desconhece, em absoluto, o nosso sistema eleitoral (embora tenha sido eleito por esse sistema…).

O presidente é eleito pelo sistema majoritário e seu distrito eleitoral é o país. Os senadores, por sua vez, também eleitos pelo sistema majoritário, têm como distrito eleitoral os Estados. Já os deputados federais são eleitos pelo sistema proporcional (cada Estado elege entre 8 e 70 deputados federais) e representam o povo das unidades da federação, suas diferentes bandeiras, demandas e pleitos. Têm como distrito eleitoral também os Estados.

Dito isso, é evidente que o número de votos do Executivo e do Legislativo será diferente, pois seus distritos eleitorais são diversos!

A comparação válida seria entre os votos, em âmbito nacional, do presidente e os votos, também em âmbito nacional, das casas do Congresso.

De um universo de 146 milhões de eleitores, Jair Bolsonaro teve 57 milhões de votos no segundo turno. No primeiro — que possivelmente representa melhor aqueles que partilham das suas ideias —, teve pouco mais de 49 milhões. A atual composição da Câmara dos Deputados, por sua vez, contados os votos nominais e os de legenda, teve aproximadamente 60 milhões de votos. Vejam só, parece que tem mais povo brasileiro na Câmara dos Deputados do que na Presidência da República.

Dito isso, precisamos insistir na legitimidade de quem discorda. Fugir disso é pavimentar o caminho antidemocrático.

Aliás, é justamente porque o presidente representa o discurso da maioria que o conjunto representado pelo Congresso é fundamental: é lá que as minorias têm casa e voz. Há no Congresso quem represente os interesses dos 57 milhões de brasileiros que votaram em Jair Bolsonaro no segundo turno. Há também quem represente pessoas que estão entre os outros 89 milhões que não votaram nesse presidente.

No Congresso, são as maiorias formadas por quem representa interesses tão distintos que, encontrando caminhos de consenso, decidem se uma lei será aprovada, uma CPI instalada, qual será o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento anual. Isso é diálogo, é consenso, é política e, mais importante de tudo, é democracia.

O Congresso representa, assim, todas as bandeiras, todas as demandas, dos mais variados interesses, dos mais diferentes lugares do país. Ficar contra o Congresso, assim, genericamente, é silenciar tudo que contraria o governo.

Isso é democracia?

Ao que parece, esse Congresso do qual falam e em relação ao qual exigem o repúdio popular são os outros, os que discordam, os que se opõem.

Quando deixamos de reconhecer a legitimidade do outro, é simples, tornamo-nos autoritários.

Fechar ou calar o Congresso é amordaçar a população; é nulificar a vontade de 89 milhões de pessoas que não votaram em Jair Bolsonaro e de outras tantas que, apesar de terem votado nele, têm nos congressistas — que também elegeram — voz para representá-los em questões não necessariamente defendidas pela Presidência.

Cuidemos, atentamente, da nossa democracia.

Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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