Por João Paulo Martinelli e Leonardo Schmitt De Bem
A definição pela retroatividade configura importante marco, mas a questão requer outros passos
O acordo de não persecução penal, após duplo regramento pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Resoluções nº 181/2017 e nº 183/2018) e das críticas recebidas por um setor da doutrina[1], ganhou previsão legal com a promulgação da Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro.
Tratando-se de mecanismo de diversificação da pena criminal, visa não somente auxiliar no desafogo do abarrotado sistema de justiça criminal, senão, especialmente, impedir a estigmatização e a dessocialização que decorrem de processos com sentença condenatória.
Sua respectiva legalização, não restam dúvidas, acarretará várias discussões[2], uma delas atinente ao direito transitório, ou seja, à possibilidade ou não de sua aplicação retroativa a infrações ocorridas anteriormente à existência da Lei n. 13.964/2019.
O início desta análise requer, necessariamente, uma definição sobre a natureza jurídica da norma que regula o acordo. Afinal, estar-se-ia diante de norma penal, processual penal ou híbrida?
Embora formalmente esteja inserido no Código de Processo Penal, art. 28-A, também se reveste de conteúdo de direito material no que diz respeito às suas consequências, apresentando-se como verdadeira norma de garantia e, com efeito, retroativa.
Em outros termos, é norma que interfere diretamente na pretensão punitiva do Estado, e não uma simples norma reguladora de procedimento. Se tomarmos a lembrança histórica da promulgação da Lei dos Juizados Especiais (que também criou outras medidas de diversificação penal), a carga retroativa é coincidente (STF, Pleno, INQ 1055QO/AM)[3].
A definição pela retroatividade configura importante marco, mas a questão requer outros passos. O seguinte diz respeito a saber até que momento as disposições do art. 28-A do CPP podem produzir efeitos nos processos iniciados em momento pretérito a sua existência?
Para o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, desde que não recebida a denúncia[4]. Para a Corte Constitucional, em precedente remoto relacionado a instituto diversificador da Lei n. 9.099/1995, um pouco mais além, de sorte que a incidência do benefício estaria condicionada à inexistência de condenação penal, ainda que recorrível (1ª Turma, HC 74.463-0, rel. Min. Celso de Mello, DJ 07/03/1997).
Essas alternativas condicionam o efeito retroativo do instituto à inocorrência, respectivamente, de um despacho de natureza interlocutória simples ou de uma sentença condenatória.
Bem vistas as coisas, cada qual cria uma barreira insuperável não prevista pelo constituinte no inciso XL do art. 5º (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”) e tampouco pelo legislador infraconstitucional, afinal, nem mesmo o trânsito em julgado da sentença condenatória impede a aplicação retroativa de lei posterior favorável (art. 2º, parágrafo único, do Código Penal).
O argumento de que a condenação compromete a finalidade precípua para a qual o instituto do acordo de não persecução penal foi concebido, vale dizer, o de afastar a imposição da pena criminal, não pode representar um impedimento à retroatividade, visto que a mesma restrição não consta dos textos constitucional e legal.
Nestes termos, em atenção ao art. 28-A do CPP, a defesa deverá requerer – em preliminar da apelação – a conversão do julgamento em diligência. Por sua vez, para os processos com decisão definitiva, os contornos da solução são mais específicos, mas, como bem pontua Paulo Busato, “a garantia da coisa julgada não serve para amparar pretensão punitiva do Estado”[5].
No último contexto se faz necessário separar os condenados ainda em fase de execução penal daqueles que já cumpriram a reprimenda. Aos primeiros, entende-se possível a aplicação por analogia da regra do caput do art. 2º do Código Penal e, como tal, em análise hipotética, satisfeitos os requisitos legais, a execução ficaria suspensa e a respectiva pena seria substituída pelas condições ajustadas no acordo que, efetivamente cumpridas, ensejariam a extinção da punibilidade do agente, deixando de acarretar maus antecedentes e de gerar reincidência (ou seja, também cessariam os efeitos penais secundários da condenação).
Na eventualidade de o agente descumprir injustificadamente as condições ajustadas, retornaria ao cumprimento do restante da pena que estava suspensa.
Para aqueles que cumpriram totalmente a respectiva pena, a princípio, parece não ter sentido a incidência do acordo, no entanto, tal conclusão seria incorreta, pois é notório que a condenação gera outros efeitos além da primária imposição da pena criminal.
Dentre os efeitos secundários se destaca a reincidência e, a partir dela, inúmeras outras restrições de benefícios, como a definição de um regime de cumprimento de pena menos rigoroso ou a incidência de penas alternativas.
Assim, entende-se que a defesa deve peticionar ao juízo da execução penal requerendo que o órgão de acusação se pronuncie se, à época do fato, o agente preenchia os requisitos previstos em lei (art. 28-A, caput e § 2° do CPP) que viabilizariam, neste contexto, a proposição de hipotético acordo.
Em caso positivo, a retroatividade incidirá justamente para extinguir os efeitos acessórios da condenação (v.g. reincidência). Ao agente, por evidente, não será legítimo impor quaisquer condições, visto que já executou a totalidade da pena, de modo que tal exigência representaria violação gritante ao princípio ne bis in idem.
Há quem possa argumentar que não seria razoável, e muito menos exequível, que a totalidade das condenações pretéritas tivesse de ser reformada diante da nova legislação que passou a prever a atenuação das consequências jurídico-penais por meio do acordo de não persecução. Tal argumento, ainda que consistente, pode ser relativizado, definindo-se uma limitação temporal da retroatividade.
A propósito, para obstar um efeito regressivo infinito, o último passo é definir até que momento estaria o Ministério Público obrigado a analisar o eventual preenchimento pelo agente dos requisitos legais do acordo no que se refere às infrações pretéritas.
Neste aspecto, entende-se que a análise se realizará unicamente nos processos em que a data do cumprimento total da pena ou de sua extinção tenha ocorrido nos cinco anos anteriores à existência da Lei n. 13.964/2019, de sorte que o quinquídio corresponderia ao prazo expurgador da reincidência.
Como nesse período persistem os efeitos secundários da condenação, é cogente a atuação ministerial por meio do acordo para arrefecer eventuais danos decorrentes de nova prática delitiva. Em síntese, eventual concretização do acordo recobriria o agente de primariedade.
[1] Por exemplo, o Defensor Público Eduardo Newton: www.justificando.com/2017/09/15/e-grave-resolucao-de-cupula-do-mp-sobre-acordo-de-nao-persecucao-penal Acesso em 10/02/2020.
[2] A propósito, veja-se: MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. Direito penal: lições fundamentais, parte geral. 5ª ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 1253-1264.
[3] A relatoria foi do Ministro Celso de Mello, com publicação no Diário Oficial em 24 de maio de 1996. O mesmo se confirmou no julgamento da ADIn n. n. 1.719-9, rel. Min. Joaquim Barbosa, DOU 28/08/2007.
[4] CNPG. Comissão especial: enunciados interpretativos da Lei Anticrime, 2020, p. 6 (Enunciado 20).
[5] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013, p. 128.
Artigo publicado originalmente no Jota.
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