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O Machismo estrutural e a certeza da impunidade – um desabafo

O Machismo estrutural e a certeza da impunidade – um desabafo

Por Aline Carvalho Giacon

O título desse desabafo não é nem um pouco misterioso e tenho certeza que todas as mulheres que eu conheço e a maioria dos homens com quem convivo sabem exatamente do que se trata. Senti, porém, uma necessidade de colocar em palavras os sentimentos das últimas horas, que não me permitiram pensar em amenidades ou em qualquer outro assunto que não o estupro de uma parturiente.

O caso é chocante, mas não exatamente pelo ato em si. Disso temos notícia todos os dias. Um estupro é registrado a cada 8 minutos no Brasil. Considerando a quantidade de casos que não chega às autoridades, podemos ter certeza que, no tempo em que estou escrevendo essas primeiras linhas, uma mulher ou criança, foi estuprada.

O que tornou esse caso midiático foi o registro das imagens do crime.

Um homem, médico anestesista, durante o parto via cesárea, com toda uma equipe médica na sala, estuprou a parturiente.

Aquela mulher, última a ser estuprada pelo criminoso, estava no momento de maior vulnerabilidade que podemos imaginar. Na ocasião que certamente é uma das mais difíceis da vida de uma mulher e também a que deveria representar um dos momentos de maior felicidade, um homem a atacou, certo de que não seria pego.

Crimes sexuais são, senão a única, uma das únicas situações em que podemos falar em certeza da impunidade.

Aquele homem não é doente, psicopata ou louco, é apenas mais um homem que se vale do machismo estrutural e da cultura do estupro que permeiam a nossa sociedade.

Ele estava certo que não seria pego. Ele sabia que, ainda que fosse pego, a palavra da vítima de nada valeria, afinal, além de mulher, estava dopada, ainda mais que o necessário, para que pudesse cometer o crime e para impossibilitar qualquer relato consistente; sabia que não seriam obtidos vestígios do crime e sabia que, caso houvesse alguma testemunha, poderia desacreditá-las, alegando ser “perseguido” ou que estava “apenas ajustando as calças”, qualquer argumento é válido para rebater uma acusação de estupro.

Num processo criminal, ele se valeria de tudo isso para eventual absolvição. Isso, claro, contando que chegasse a um processo criminal.

A equipe de enfermagem, ao que parece, composta majoritariamente por mulheres, desconfiou da quantidade de sedativos aplicados às parturientes e da “cabana” montada para impossibilitar a visão da cabeça das vítimas. Sabiam, no entanto, que suas palavras de nada valeriam. Sabiam que precisavam das imagens para ter alguma chance de levar o criminoso à Justiça.

Mais uma mulher, ao que parece já há notícia de outras vítimas, teve que sofrer essa inenarrável violência para se obter provas, afinal, não basta a palavra da vítima, não basta o relato de testemunhas. Nada disso é suficiente quando a vítima é uma mulher.

Todos os dias ouvimos algum relato de violência sexual contra a mulher. Todos os dias presenciamos alguma atitude de menosprezo contra a mulher, mas entre a palavra de um homem e de uma mulher, a tendência é desconfiar da vítima.

Damos o benefício da dúvida para estupradores, mas não fazemos o mesmo com acusados de furto, roubo ou tráfico. Ouvimos relatos policiais completamente fantasiosos, mas condenamos jovens, em sua maioria periféricos e negros, por tráfico de drogas única e exclusivamente com a palavra do policial que o prendeu.

Condenamos acusados de roubo por reconhecimento da roupa que usava, do cabelo (novamente o racismo estrutural faz vítimas), mas absolvemos estupradores, afinal, é a palavra de um contra o outro.

Os índices de violência sexual indicam que, majoritariamente, mulheres são as vítimas e homens os agressores, mas é mais fácil, conveniente, confortante, acreditar que a mulher está mentindo do que constatar que homens são responsáveis pela violência de gênero.

Chegamos ao ponto em que há quem defenda penas iguais para estupro e para falsas acusações de estupro. Ignora-se que a grande maioria dos casos de absolvição pelo crime de estupro se dá, não em razão da constatação da falsa acusação, mas da ausência de provas de um delito que é, por natureza, clandestino.

“Nem todo homem, mas sempre um homem” sintetiza em uma frase a cultura do estupro.

Na minha privilegiada caminhada tive a sorte de me deparar com homens feministas. Quando estagiária, tive um chefe que, por vezes, era ridicularizado pelos colegas. O motivo? Ele não assediava as estagiárias que com ele trabalhavam. Ele tratava todos com respeito, mas, especialmente as mulheres eram protegidas por ele, sabedor dos males que enfrentávamos e enfrentamos.

Na faculdade e mesmo depois, não tive, na minha convivência, homens que abusaram de seu poder ou que se valeram da minha vulnerabilidade para me atacar.

Isso não significa que cheguei ao auge dos trinta e poucos anos sem qualquer agressão, que, claro, não chega nem perto dos relatos que já ouvi e li.

Em certa ocasião, indo para o trabalho, uma pessoa deu um tapa nas minhas nádegas. Virei, surpresa, esperando encontrar minha irmã ou alguém conhecido, que estaria “brincando”, ou “tirando sarro”. Me deparei com um jovem em uma bicicleta que passou por mim e se sentiu no direito de tocar meu corpo. Quando percebi o que ocorrera fui tomada de uma revolta que lembro até hoje, detalhadamente. Pensei que deveria ter jogado o material que carregava na direção do agressor para derrubá-lo da bicicleta, quando caísse eu bateria com todas as minhas forças, ainda que fosse presa. Não fiz nada disso. Chorei, muito, de raiva. E xinguei de todos os nomes que pude pensar na hora. Liguei para a minha mãe, que me buscou e queria tentar segui-lo, queria ir para a delegacia, queria alguma ação para a agressão sofrida. No final fui para casa tomar banho, colocar a roupa para lavar e fui trabalhar chorando de raiva e frustração.

No ônibus, indo para a faculdade, para o trabalho ou qualquer outro lugar, percebi que alguns homens tinham uma técnica para “passar a mão” nas mulheres. Usavam as costas das mãos, assim poderiam alegar uma confusão e desacreditar a vítima.

A cultura do estupro não consiste apenas na agressão física, no estupro propriamente dito. Os comentários indesejados na rua sobre o corpo da mulher, os toques sem consentimento, as decisões sobre sua autonomia, tudo isso permite a perpetuação dessa cultura machista.

Aprendemos desde cedo a nos censurar, a não usar certas roupas em determinados lugares; a passar rápido e de cabeça baixa por um grupo de homens; a atravessar a rua para não passar sozinha perto de homens; a andar com as chaves entre os dedos no retorno, à noite da faculdade ou do trabalho; a não usar rabo de cavalo, pois facilita que um homem a agarre; a ignorar os comentários indesejados.

Há poucos dias li a notícia de que uma atriz britânica, após usar um vestido transparente, com os seios à mostra, desabafou sobre as críticas recebidas. Ela disse ter recebido inúmeros comentários ofensivos sobre seu corpo, sobre o quão desapontados estavam os homens com seus ‘peitos minúsculos’.

Esse é o princípio da cultura do estupro. Homens se sentindo no direito de criticar e comentar sobre o corpo de uma mulher, como se nosso propósito de vida fosse agradá-los visualmente e, de preferência, quietas.

Se revoltam com a generalidade, defendendo “nem todo homem…”, mas chamam as feministas, ditas radicais, de feminazi.

Até hoje não entendo o que seria uma feminista radical. Seria radical demais querer igualdade, isonomia? É muito radical a noção de que devemos ter direito e autonomia sobre nossos corpos? É algo fora de série querer respeito e pagamento igualitário?

Nunca ouvi uma única mulher defendendo o extermínio ou agressões a homens, mas o machismo faz vítimas todos os dias.

Sangramos por dias, todos os meses. Passamos por uma miríade de emoções em razão dos nossos hormônios. Muitas sofrem com dores e alterações do sistema reprodutivo que as debilitam ao extremo. Engravidamos. Nossos corpos passam por mudanças inimagináveis durante a gestação. Ao final, um longo e doloroso processo de parto, que é seguido por novas alterações hormonais tão relevantes que há previsão legal do crime de infanticídio, seguimos com o sofrimento com a amamentação (seja por conseguir amamentar e sofrer com mamilos rachados, dentre outras complicações, seja pelo sofrimento de não conseguir prover o leite para o filho).

Com tudo isso ainda somos chamadas de sexo frágil.

Essa é a cultura do estupro. Os homens, novamente, em sua maioria os agressores sexuais, sentem que tem algum direito sobre o nosso corpo. E isso não se limita ao toque indesejado. A proibição do aborto é outra questão que precisa ser repensada, mas isso ficará para outra ocasião. O ponto em comum é a vulnerabilidade da mulher. Como ouvi hoje mesmo de uma amiga, “não podemos baixar a guarda nem por um segundo”. Não temos paz nem para parir.

Por fim, li algumas críticas ao modo que a Delegada de Polícia comunicou e conduziu a prisão do agressor. Apesar de entender a revolta, especialmente diante das abordagens com pessoas negras, não posso aderir. Como já diziam nossas avós e mães “o certo é certo ainda que ninguém faça e o errado é errado ainda que todos estejam fazendo”.

O que precisamos mudar é a abordagem errada, os abusos cometidos e enaltecer quem cumpre a lei, com seriedade e profissionalismo, o que evita o reconhecimento de nulidades.

Há também os que querem a retribuição imediata, física, ao agressor. De minha parte, desejo que ele seja protegido, que seja levado à Justiça por tudo o que cometeu e pague, na forma da lei, pelos crimes.

Qualquer outro resultado significará, mais uma vez, a impunidade. Não temos justiça quando não há provas e, se algo acontecer com ele antes do julgamento, não teremos justiça nem com provas.

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