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O mapa da mina

O mapa da mina

Por André Guilherme Delgado Vieira

Em meados de 2018, quando a Operação Lava-Jato ainda era relevante, boa parte do reportariado brasileiro (eu, inclusive) se esforçava para seguir o rastilho deixado por centenas de delatores e doleiros para rastrear bilhões desviados em dinheiro público. Naquela época, não havia dificuldade para encontrar notícia. Difícil mesmo era entender a complexidade de um emaranhado de operações financeiras e contábeis que se utilizou de offshores, empresas-concha, bancos e de toda a sorte de expedientes até então inimagináveis para garantir a lavagem do dinheiro de corrupção e garantir-lhe aspecto de legalidade.

Foi enquanto estava absorto nessa cruzada quase insana por informações que me deparei com a palavra “Simandou”. Região de densa vegetação e florestas na África Ocidental, confesso que até aquele momento não tinha ouvido sequer falar desse local.

“É na Guiné-Conacri, não é na Guiné-Bissau”, me corrigiu em tom irritado um experiente executivo de uma empreiteira, enfatizando que se tratava do país colonizado pela França. Conversávamos com alguma frequência, algumas vezes pessoalmente, e ele já havia me contado algumas de suas incursões pelo continente africano em busca de potenciais tesouros minerais. Esses profissionais são como sabujos que farejam a milhares de quilômetros oportunidades de negócio invisíveis aos olhos comuns.
Foi então que ele mencionou a palavra-chave que ateou fogo na minha curiosidade: Vale. “A Vale está em Simandou associada com uma empresa obscura de um bilionário judeu”, disse-me numa tarde regada a cafés expressos puros e com leite, perto da redação do Valor Econômico, no Itaim Bibi, em São Paulo. Mas o que a Vale estaria procurando na Guiné?, perguntei.

“Ô repórter! Lá fica a maior mina de ferro do planeta, rapaz! Ferro bom pra burro, hematita”, esclareceu o meu interlocutor, mostrando conhecimento sobre o tipo de minério. Tempos depois eu viria a saber que a hematita é mais rica em ferro do que a itabirita, qualidade do mineral encontrado pela Vale em Minas Gerais. Carajás, o colosso brasileiro da mineração descoberta no final da década de 60, no Pará, também é rica em hematita. Posteriormente eu fui informado por um geólogo que Carajás e Simandou são consideradas minas irmãs, em razão das evidências científicas que mostram a separação dos continentes, a Pangeia — deriva continental que existiu entre 200 a 540 milhões de anos, durante a era Paleozoica, conforme consenso dos estudiosos. Engoli o café com o sabor amargo. Repórteres odeiam a si mesmos quando deixam uma fonte perceber que não têm conhecimento sobre um tema por ela abordado.

Anotei os nomes em um bloquinho em que ficaram esquecidos por alguns dias. Quando fui revisitar as minhas anotações para elaborar uma matéria sobre outro assunto, me deparei novamente com a palavra Simadou. Deixei de lado a reportagem que escrevia para pesquisar rapidamente, dar uma “gugada”. Encontrei uma notícia em inglês que relatava que a Vale havia anunciado, em abril de 2010, a compra da participação majoritária em uma empresa, com sede na Guiné, que detinha as concessões de blocos exploratórios de Simandou. O texto descrevia a mina de ferro como a maior (e inexplorada reserva) do mundo.

Daquele momento em diante passei a perguntar a todo mundo que conhecesse algo a respeito do assunto sobre a incursão da Vale naquela empreitada. Afinal, por que um dos maiores conglomerados de mineração do mundo havia feito uma parceria bilionária de US$ 2,5 bilhões com uma empresa citada em diversas reportagens como “corrupta”, “adepta de práticas pouco republicanas” e “desconhecida”. E, pior, adiantado a ela US$ 500 milhões em valores de 2010?

Àquela altura, em 2018, processos e arbitragens internacionais já pegavam fogo nos Estados Unidos, na Guiné e na Inglaterra. A Vale acabara por desfazer a sociedade com a BSGR e havia acusado judicialmente Benjamin Steinmetz, que se viu condenado a ressarcir a companhia brasileira em bilhões. Parte dos processos já era pública. No esforço característico de reportagem, me empenhava em reunir informações nos momentos em que eu não estava trabalhando. Virou uma espécie de hobby. Juntar elementos, declarações, documentos e matérias jornalísticas — a grande maioria internacionais — que tratassem daquele imbróglio que se parecia com as tramas de livros de espionagem de John lé Carré e Frederick Forsyth: derrubadas de governos na África, suspeitas de fraude eleitoral, tentativas de assassinato, conspirações que envolviam financistas bilionários e ex-chefes de Estado e até tráfico de pessoas portadoras de albinismo. Parecia uma série de streaming. Mas era a vida real relatada por múltiplos personagens em processos judiciais.

Muitos desses documentos estavam em inglês, língua na qual me viro razoavelmente bem para entender. Mas um bom volume dos papéis vinha em francês. Precisei de tradução profissional e o trabalho foi ficando cada vez mais intenso. Eu não tinha certeza do que iria fazer com aquilo tudo. Foi minha mulher, Mônica, que numa noite falou: “ué, escreva um livro”. E não é que eu escrevi?

“O Mapa da Mina” conta com farta documentação e inclui e-mails internos da Vale que relatam, de diversos pontos de vista, a incursão da mineradora em Simandou. Procurei contextualizar a época dos fatos. E parte significativa deles se deu durante um período em que o governo brasileiro se afinou ao projeto quase pessoal do então CEO da Vale, Roger Agnelli, que aspirava participar do mercado internacional de minério de ferro como um player relevante, dando as cartas. O que me chamou a atenção é o fato de Agnelli ter antevisto, por volta de 2008, que a China se transformaria num colosso econômico implacável. A ideia era deter o quase monopólio de extração do minério de ferro do planeta, coisa de 2 terços da produção global, e botar o Brasil na primeira divisão. O que aconteceu daí em diante está contado nas páginas do livro.

Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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