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O Nordeste que aprendi a amar

O Nordeste que aprendi a amar

Os últimos dias estão sendo terríveis para quem tem um mínimo de empatia. Pessoas que se dizem cristãs estão destilando cada vez mais ódio nas redes sociais, rebaixando os nordestinos a uma condição inferior, sem entender o que está por trás da vitória do candidato petista na região

Sou paulista, branco, heterossexual, de classe média, com ascendência europeia, a típica descrição de quem dificilmente terá problemas com discriminação. Nunca fui parado pela polícia em atividade suspeita, já fui confundido com estrangeiro em algumas cidades turísticas e nunca precisei trabalhar para sustentar minha família. Felizmente, tive a oportunidade de aproveitar minha infância com brincadeiras, na presença de meus pais, e estudar para buscar o crescimento pessoal e profissional. Só senti fome quando precisei ficar em jejum para colher sangue em laboratório particular.

A descrição acima não é motivo algum para me orgulhar, mas me obriga a refletir sobre o atual momento do país. Sou privilegiado numa das nações mais desiguais do mundo, considerada a maior produtora de alimentos, mas com enorme parcela de sua população sem ter o que comer. Seria muito fácil, para mim, afirmar que quem se encontra em situação de miséria não se empenhou o suficiente para melhorar o padrão de vida ou fazer piadas com os auxílios do Estado, como dizer que uma mulher engravida para garantir um novo eletrodoméstico com o dinheiro do governo.

Com todas as oportunidades que tive, minha obrigação sempre foi estudar, aprender e me desenvolver intelectual e humanamente. Apesar das dificuldades de meus ascendentes italianos, que migraram sem dinheiro para o Brasil, a condição de europeus e a pele branca ajudaram muito. A história se fez muito diferente dos descendentes de indígenas e negros escravizados, que ainda encontram infinitos obstáculos num país onde o racismo é considerado “mi-mi-mi” por muitos. As poucas exceções que conseguiram superar as barreiras são usadas como exemplos de que um vulnerável consegue elevar sua condição econômica apenas por conta própria.

O Brasil é um país racista e dividido em castas, onde ainda impera um sentimento de superioridade de alguns sobre outros. Nada incomoda mais um membro da elite – ou de quem se sente parte dela de forma ilusória – que oportunidades de desenvolvimento oferecidas para aqueles que historicamente foram oprimidos e ficaram abandonados em segundo plano. O Nordeste brasileiro é a ilustração dessa desigualdade: boa estrutura nas capitais litorâneas, mas basta se afastar das praias para testemunhar a realidade. Para quem nunca teve nada, receber um pouco é muito. É claro que o presidente que mais investiu na região teria mais votos no primeiro turno. No entanto, quem nunca aproveitou as oportunidades da vida para estudar não consegue enxergar isso.

Os últimos dias estão sendo terríveis para quem tem um mínimo de empatia. Pessoas que se dizem cristãs estão destilando cada vez mais ódio nas redes sociais, rebaixando os nordestinos a uma condição inferior, sem entender o que está por trás da vitória do candidato petista na região. Quem nunca passou fome, ou precisou se esforçar além dos limites para ter um mínimo de dignidade, deve se colocar no lugar do miserável que acordava sem saber se teria o que comer, apesar de trabalhar arduamente debaixo de sol forte, expondo a saúde a riscos.

Um pouco de história sempre é útil. A região Nordeste sempre foi tomada pela cultura do “coronelismo”, herança de sua própria formação. Quem decide sair para buscar uma vida melhor aceita qualquer emprego, principalmente aqueles que os sulistas e “sudestinos” não querem. Especificamente, o Estado de São Paulo cresceu economicamente com a colaboração essencial dos escravos, dos imigrantes estrangeiros e dos nordestinos. E não apenas na economia, pois a cultura do eixo Norte-Nordeste é muito rica e muitos dos principais intelectuais brasileiros nasceram e cresceram ali.  

Quem apenas “turistou” pelo Nordeste não conhece a região para dar qualquer opinião. Compreender sua realidade requer ingressar em seu interior, não ficar apenas nas praias. É saber que cada um de seus nove Estados apresenta aspectos próprios, sotaques peculiares, gastronomia particular, danças, músicas, folclore. O mais triste de tudo não é o preconceito, e sim saber que pessoas com condições econômicas privilegiadas, que se sentem superiores, não fazem uso de seu dinheiro para estudar e evoluir como seres humanos. Preferem ficar na ignorância voluntária.

Artigo publicado originalmente na Revista Fórum.


Artigo dedicado à minha esposa, pernambucana e companheira, que me deu uma filha linda, que já demonstra sua metade nordestina na alegria diária de viver.

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