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Nosso desafio civilizatório? Não há dúvida: o fim da pobreza
O Barão de Cotegipe reclamou dos “direitos adquiridos”, fez um estranho apelo “humanitário”, em favor dos cativos, disse que o projeto levaria a uma crise medonha no país e, já vencido, teria feito a famosa má-criação à princesa Isabel: “Redimiu uma raça, mas perdeu o trono”. Não conheço melhor síntese de nosso reacionarismo. Nosso antirreformismo atávico e seus resmungos, naquele domingo quente da abolição. Do outro lado da arena, quem soube capturar a grandeza do momento foi Joaquim Nabuco. Ele havia discursado, no dia 7 de maio, pedindo um “armistício” entre os partidos e “o mesmo apoio que o país deu a Bonifácio na véspera da independência”. Na tribuna foi um leão. Comandou o bloco abolicionista, e foi dele o pedido de urgência para colocar o projeto em votação na Câmara. Vitória por 87 contra 9. No Senado, a mesma coisa. No Paço Imperial, Isabel assinou a Lei Áurea e foi saudar a multidão. Foi o instante em que Nabuco obteve sua recompensa. “Estamos reconciliados?”, perguntou-lhe a regente. Nabuco beijou-lhe a mão, numa reverencia silenciosa.
O domingo foi de glória, mas também de vergonha. Vergonha do país pária, naquele triste fim de século XIX, um dos últimos a abolir a escravatura. A campanha abolicionista já vinha de uma década. Nabuco fez um cálculo constrangedor, mostrando que, mantidas as regras da Lei do Ventre Livre, ainda teríamos escravos e “ingênuos”, ou “escravos provisórios”, nascidos depois de 1871, até por volta de 1930. Tudo deveria terminar sem fazer trauma, como queria o senador Saraiva. Com a “cautela” que um assunto melindroso daqueles exigia.
Vai daí a importância de lembrar de Nabuco e seu “radicalismo”. Sua “traição” à elite agrária, de onde veio, em nome de uma causa. Aquilo que Weber chama de “a vocação da política”, feita da paixão temperada pelo senso de responsabilidade. Dias atrás me lembrei dele quando entrevistava um tipo poderoso da política atual. Durante uma hora e tanto, tentei tirar dele alguma convicção. Uminha que fosse. Não consegui. Daí resolvi escrever esta crônica. Me dizem que ninguém dá muita bola para a nossa história, e desconfio que isso seja verdade. Mas resolvi arriscar.
A paixão de Nabuco foi a abolição. Em 1880, fundou a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, com André Rebouças, o engenheiro negro, tipo genial, responsável por obras como a estrada de ferro Curitiba-Paranaguá, que seria, junto com José do Patrocínio e Luís Gama, figura central da campanha abolicionista. O movimento é que “permitiu se falar, pela primeira vez, em algo parecido com uma opinião pública, no Brasil”, como definiu José Murilo de Carvalho. Perfeito. Vou mais longe: em algo parecido com uma sociedade civil, capaz de influenciar o mundo político. A “questão servil”, dizia Nabuco, “não será resolvida sem os fazendeiros, mas também não apenas pelos fazendeiros”. E que o Brasil era “alguma coisa mais do que um grande mercado de café”. A verdade é que Nabuco soube ser minoria, quando era preciso ser minoria, numa lição por vezes pouco compreendida na história. Em 1883, escreveu O Abolicionismo, um livro que deveria ser lido por aí, nas escolas e universidades, se é que ainda se lê alguma coisa. Entendeu que era preciso pressão internacional. Que o país deveria passar vergonha, a mesma conclusão a que chegou Frederick Douglass, nos Estados Unidos. Fez uma aliança com a Anti-Slavery Society, de Londres, foi recebido por Gladstone, em Londres, e, numa de suas últimas cartadas, já em 1887, foi ao papa Leão XIII pedir apoio para convencer nossa carola Isabel a tomar de vez a inciativa da abolição. O que ela de fato faria, logo em seguida.
O Abolicionismo é um texto que dói. Seu inventário do Brasil, naquele final do império, é devastador. Mostra como a escravidão criou um país de extremos, sem “classes médias que fazem a força das nações”, feito de senhores e “proletários”. Um sistema que deixou a pior das heranças: o preconceito contra o trabalho. A ideia perversa de que a nobreza não reside no trabalho, mas “em fazer trabalhar”. Não há ingenuidade em sua visão. A emancipação dos escravos, diz, “não é o fim, mas o começo” do desafio brasileiro. Seu problema era com a “obra da escravidão”, que por muito tempo nos definiria como país. Daí sua pregação modernizadora. Seria preciso dar terra e educação aos libertos e apoiar amplamente a imigração. Nas questões públicas, foi um enfático defensor do rigor fiscal, crítico precoce da “epidemia do funcionalismo público” e do Estado que “intervém em tudo que é particular”, ao invés de cuidar da “proteção da vida, da segurança e da liberdade dos contratos”. Quando Henry George lançou o best-seller Progresso e Pobreza, Nabuco foi claro sobre como pensava. Criticou a ideia de nacionalização de bens produtivos, que só faria crescer o tamanho do Estado e alimentar uma “classe de parasitas”. Seu problema era a produtividade. Ele fala com entusiasmo sobre a revolução produtiva nos estados americanos do Sul com o fim da escravidão, após a Guerra Civil, e em poucos anos viveram a revolução do trabalho livre, onde “se produz um fardo de algodão por jeira e não em cinco ou seis”, como no antigo modelo. Na sua utopia, o Brasil deveria seguir o caminho da Austrália ou do Canadá, e sua visão da igualdade vinha da inspiração inglesa. Do país onde “o duque de Westminster, diante do juiz, é igual ao mais humilde de sua criadagem”. Se há um fio tênue que traça a história de um liberalismo brasileiro, Nabuco tem ali o seu lugar.
“Nosso desafio civilizatório? Não há dúvida. O fim da pobreza”
Nabuco sugeriu que o país deveria fazer a abolição e passar uma régua sobre toda aquela desgraça. De modo que “não ficasse sinal disso tudo”, inclusive nos feitos do abolicionismo. Nisso, errou. O 13 de Maio está aí, vivo, no que ele tem de melhor e pior, e diz muito sobre quem nós somos. Em primeiro lugar, o país da modorra, que alimentou até a undécima hora a fantasia de que era possível terminar “naturalmente” com a escravidão. Que a “morte resolveria o problema”, quando se fosse o último escravo nascido por volta de 1870. Em segundo, o país reacionário, bem representado nos resmungos de Cotegipe sobre os “direitos adquiridos” e cínico “bem-estar” dos cativos. Lembrar dessas coisas é como um tapa na cara. Hoje não temos a escravidão, mas sua “obra” continua aí, a nos assombrar. Nosso desafio civilizatório? Não me parece haver dúvidas: o fim da pobreza. Depois da liberdade formal, a liberdade substantiva. Foi a visão de Martin Luther King após a vitória dos direitos civis, nos anos 60.
Quando vejo hoje em dia o apartheid silencioso no sistema educacional, nos 55 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza, em sua ampla maioria negros, não é difícil perceber o acerto de Nabuco intuindo que aquele dia 13 de maio seria apenas o começo. Quando vejo o país repetir os velhos erros, procrastinar e mesmo recuar de reformas essenciais nos dias que correm, percebo que o abolicionismo ainda é um horizonte aberto e quanto o “dia seguinte” ainda pode ser longo, no Brasil.
Artigo publicado originalmente na Veja.
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