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O populismo penal: o medo e a mídia

O populismo penal: o medo e a mídia

As últimas décadas no Brasil foram marcadas por uma verdadeira “inflação legislativa”. A nomorréia penal (Carrara) se deve a uma série de fatores, que vão desde o forte apelo popular, passando pela influência midiática e até a demagogia dos legisladores. Lamentavelmente, o chamado “populismo penal” vem dominando a política criminal atual. As leis penais no Brasil são elaboradas sem qualquer verificação prévia e empírica de seus verdadeiros impactos sociais e econômicos. 

A cultura punitiva embalada pelo populismo penal, espécie de mantra de inúmeros políticos – tanto do Executivo como do Legislativo – que se utilizam do discurso oco da impunidade e da propagação do medo, se traduz no uso abusivo e sistemático da pena privativa de liberdade que tem levado ao encarceramento em massa, notadamente, dos mais vulneráveis (jovens negros, pobres, de baixa escolaridade e residentes das periferias e das favelas). 

Ao recorrerem aos discursos sensacionalistas que, certamente, atendem ao clamor popular, os políticos buscam medidas populistas e soluções aparentemente fáceis para o complexo problema da violência e da criminalidade. Medidas de caráter penal e processual penal que recrudescem o punitivismo penal, tais como: a criação de novos tipos penais; o aumento das penas de prisão; a redução da imputabilidade penal; a criminalização do uso e do porte de drogas; a redução dos direitos do preso; a mitigação de direitos e garantias do acusado; a prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória; o aumento das possibilidades de decretação da prisão preventiva entre outras.

Medidas que muitas vezes se revestem de inconstitucionalidade como nos casos da PEC 45/2023, apelidada de PEC das Drogas, que insere no artigo 5o da Constituição da República a criminalização do uso e do porte de drogas, e a Lei 14.843/2024 que praticamente acaba com o direito dos presos às saídas temporárias e, ainda, obstaculiza a progressão de regime com a obrigatoriedade da realização do exame criminológico, ultrapassado e sem qualquer valor científico. 

Propostas populistas para o “enfrentamento da criminalidade” foram apresentadas recentemente pelos governadores das regiões Sul e Sudeste (Cosud), e já foram criticadas em outro artigo. Aproveitando-se do medo gerado pela violência e pela criminalidade, amplificado pela mídia, o legislador brasileiro utiliza-o como verdadeira arma política para seduzir os eleitores. 

Para Mauricio Martinez, “o novo caramelo que se oferece nas campanhas eleitorais é um veneno que pode matar, mas que é aceito por uma população presa do pânico porque é apresentado como um remédio para aniquilar monstros de um zoológico (…) e, por isso o populismo punitivo se caracteriza pelo oferecimento de penas altas e pela mudança da utopia ressocializadora pela inocuização da maldade através de penas degradantes”. 

No Brasil, segundo Vera Malaguti Batista, “a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado do povo brasileiro. Sociedades rigidamente hierarquizadas precisam do cerimonial da morte como espetáculo de lei e ordem. O medo é a porta de entrada para políticas genocidas de controle social”.

Não se pode desprezar, neste contexto, o poder da mídia – notadamente da televisão – em influenciar, manipular a opinião pública e de incutir o medo na sociedade. Assim, a mídia se torna uma aliada fundamental para promoção do discurso punitivista e do populismo penal.

O medo fomentado pela mídia, na maioria das vezes, está relacionado aos crimes praticados com violência, contra a vida, contra o patrimônio (vis física ou vis compulsiva) e os crimes sexuais (contra a dignidade e a liberdade sexual), além dos crimes de tráfico de drogas, geralmente, associados, pelos meios de comunicação de massa, as “organizações criminosas”. Como observa Eugenio Raúl Zaffaroni, “os meios de comunicação de massa são os grandes criadores da ilusão dos sistemas penais” e que desencadeiam as campanhas de “lei e ordem”.

Não é exagero dizer que, no processo penal midiático, o juiz se torna refém da mídia punitiva e opressora. Referindo-se a denominada “criminologia midiática”, Zaffaroni afirma que na guerra contra eles (os selecionados como criminosos) são os juízes alvo, preferido da “criminologia midiática”, que segundo o jurista argentino, “faz uma festa quando um ex-presidiário em liberdade provisória comete um delito, em especial se o delito for grave, o que provoca uma alegria particular e maligna nos comunicadores”. 

Em artigo intitulado “A mídia e o controle do crime no Distrito Federal”, Arthur Trindade M. Costa e Marcelo Ottoni Durante asseveram que: “As condições da produção da mídia sobre o medo do crime têm sido pesquisadas há bastante tempo, mas foram os trabalhos de George Gerbner que deram impulso às pesquisas sobre o consumo de mídia e o medo do crime. De acordo com a teoria do cultivo de mídia (cultivation theory), aqueles que assistem televisão costumam acreditar que o conteúdo da programação é uma descrição da realidade. De acordo com a teoria do cultivo, quanto maior o consumo de programações violentas, maior será o medo de uma pessoa se tornar vítima de um crime. Os estudos iniciais descobriram que os telespectadores frequentes tinham uma visão de mundo pessimista e tendiam a ter mais medo do crime e a desconfiar mais dos outros (…) ainda de acordo com a teoria do cultivo de mídia, o consumo exagerado de televisão homogeneíza visões e crenças do mundo entre os espectadores frequentes. Como a televisão está saturada de crime e violência, é esperado que os espectadores frequentes se tornem desconfiados e tenham mais medo do crime”. 

Diante deste contexto, o medo da violência e da criminalidade, fomentado e amplificado pela mídia, faz com que a política criminal se volte para medidas populistas que ganham cada vez mais espaço na sociedade e que, evidentemente, são utilizadas de forma leviana pelos políticos, para gozo dos seus eleitores. 

Leis draconianas, fruto da sanha punitivista, que extinguem direitos e garantias fundamentais, que criminalizam o agente (Direito Penal do autor) e que elevam penas a patamares estratosféricos – como se o direito penal fosse a panaceia de todos os males da sociedade – em nada, absolutamente em nada, contribuem para o enfrentamento da violência.

Numa sociedade de classes,destacaNilo Batista, “a política criminal não pode reduzir-se a uma ‘política penal’, limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a uma ‘política de substitutivos penais’, vagamente reformista e humanitária, mas deve estruturar-se como política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos de vida comunitária e civil mais humanos”.

Diferentemente do que fazem crer boa parte dos políticos e da mídia, o problema da violência e da criminalidade está bem longe de ser resolvido pelo Direito Penal. O complexo problema da criminalidade é, no dizer dos penalistas Hassemer e Muñoz Conde, antes de tudo um problema social e vem condicionado pelo modelo de sociedade. Seria ilusório analisar a criminalidade a partir de um ponto de vista natural, ontológico ou puramente abstrato desconectado da realidade social em que a mesma surge.

Daí porque acredita-se que a melhor política criminal é justamente aquela da substituição do Estado penal pelo Estado do bem-estar social, pois somente através de uma política social adequada, que favoreça a erradicação da pobreza, que torne a educação realmente um direito de todos, que não permita ser a saúde um privilégio de poucos, não admitindo que crianças morram de fome e, por fim, que o ser humano seja respeitado por aquilo que é, e não por aquilo que tem, somente assim torna-se verdadeiramente possível alcançar-se o patamar do tão proclamado Estado Democrático de Direito.

Notas___________________________

1 https://www.conjur.com.br/2024-abr-05/propostas-de-governadores-contra-o-crime-sao-populistas-e-devem-ser-rejeitadas/

2 MARTINEZ, Mauricio. In Depois do grande encarceramento, seminário/organização Pedro Vieira Abramovay, Vera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 313-327.

3 Malaguti Batista, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2² impressão, outubro de 2014 p. 52.

4 GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. 1a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 138.

5 ZAFFARONI, Eugênio Raul Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 128.

6.ZAFFARONI, ob. cit.

7 https://doi.org/10.1590/1807-01912022282487

8 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

9 HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo blanch libros, 2001.

Artigo publicado originalmente na Editora JC.

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