“Uma mão fria aperta-me a garganta e não me deixa respirar a vida. Tudo morre em mim, mesmo o saber que posso sonhar! Todas as maciezas em que me reclino têm arestas para a minha alma.”
Pessoa, Livro do Desassossego
Trancoso. Noite de lua cheia. A expectativa era apenas vê-la nascer. O tempo parado, alguns chamegos, um copo prestes a ser esvaziado e um clima de verão baiano. Na plataforma sobre o mangue que dá acesso à Praia dos Nativos, já meio escuro, a surpresa de ser reconhecido pela voz: cumprimentos efusivos pela “postura corajosa e crítica ao fascismo” e a promessa de mudar o mundo com o fim, breve, deste governo. Um sentimento geral de esperança no ar. A Bahia parece mais um estado de espírito do que qualquer outra coisa.
Às 19 horas, estávamos todos na areia, sentados ou em pé, à espera da lua que iria nascer, rigorosamente, às 19:10, de acordo com a ciência. E havia um leve frenesi no ar. Todo mundo checou o horário nas redes sociais, não tinha como falhar: às 19:10, a lua surgiria esplendorosa. Seria nossa única vedete e reinaria brilhando acima de todas as outras esperanças. E viria linda, poderosa e magnetizante. Quem tem amores se apegaria aos fascínios da paixão. Quem está desolado de amor iria suspirar pela esperança que a lua impõe sobre os amantes e os carentes. Sexo é um poço de expectativa, muito desejo e a necessária exaustão. A vida, enfim.
E, às 19:10, nada da lua! Como errar? Todas as consultas foram feitas! Todas as previsões científicas! Enfim, toda essa gente apostou que, naquele horário, inapelavelmente, a lua surgiria, nua, linda e desfilando sobre nós. Mas ninguém, nem mesmo o tempo, contava com as nuvens escuras, traiçoeiras e vulgares. E, de repente, não mais que de repente, todas as hipóteses foram frustradas. Às 19:30, após longos 20 minutos da precisão astrológica, o céu ainda permanecia placidamente escuro. Não havia nem sombra do óbvio, nem uma réstia do esplendor da lua vigorosa e fascinante.
Que nuvem estranha e difusa foi essa que veio impedir a lua de brilhar cheia, linda e poderosa na hora em que os astros diziam ser a hora? Como frustrar todo esse povo que se deslocou até a Praia dos Nativos, respeitando o horário da natureza, e que, subitamente, percebeu que nem o tempo era assim inexorável? A história, a natureza, as tais verdades incontestáveis e a vida não têm nunca um enredo único, fechado e definido. Nem mesmo a natureza tem a definição de exatidão e certeza.
Nas noites de lua cheia, todos nós, ou alguns de nós, fazemos nossas preces. Quando me deparei com a lua impedida de soltar o seu brilho, confesso que entrei em estado de alerta. Tudo era tão certo. Nem era eu a prever; apenas segui todos os guias, todas as previsões e todos os orixás.
Mas acabamos ficando num silêncio constrangedor e numa escuridão assustadora. E, pensei eu: se os astros e a ciência erram, imaginem as pesquisas. Terror absoluto! Medo das nuvens estranhas, da falta de luz, da obsessão pela mentira e da falta de previsibilidade. Medo de tudo: da lua não nascer, do dia não raiar e da vida não sair mais por detrás das nuvens da escuridão. Medo de que minutos que obstruíram a visão da lua representassem a morte. Morte de qualquer expectativa de voltar a ver a força inexorável da luz de uma lua cheia e do que ela representa para o ciclo vital do mundo.
É mais ou menos isso: se, por um desastre, a luz da esperança não vencer o obscurantismo do fascismo, nós estaremos fadados a viver na escuridão e nas trevas. Será o fim. O nosso fim. E, talvez, nós nem sequer tenhamos a chance de prender a respiração e torcer para que as nuvens escuras se dissipem e, enfim, a lua entre em cena, esplendorosa, atrevida, quase obscena, bela e insinuante, afastando as trevas e nos abraçando.
Acho que a lua quis dar um recado. Lembrei-me de Upile Chisala:
“Lute. Mesmo que sua luta seja a mais vã.
…
Lute com suas palavras.
Elas são uma arma poderosa, de transformação, de mudança. Então transforme a si mesma e o mundo a sua volta. As palavras são armas mas não fazem o sangue jorrar.”
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