Em interessante artigo, no intuito de construir uma ponte entre o Brasil de ontem e o de hoje, o historiador André Machado resgata o enredo da primeira peça teatral de Martins Pena, a comédia de costumes intitulada “O juiz de paz da roça”, de 1938ii. Vale-se, então, da história ali contada para tratar da repartição e dos usos dos poderes por aqui, deixando claro que a instrumentalização de uma mentalidade provinciana por interesses maiores é capaz de alterar os rumos de um paísiii.
Enquanto desenvolve seu texto e raciocínio, André Machado conta-nos que os juízos de paz foram criados no Brasil em 1928, com a previsão de ocupação desses cargos por leigos eleitos pela comunidade em que atuariam. A princípio, os juízes de paz seriam competentes para conduzir conciliações e julgar causas de somenos importância, mas, segundo André Machado, não demorou que seus poderes fossem ampliados, ao ponto de chegarem a controlar forças policiaisiv.
O historiador ainda nos relata que a questão dos juízes de paz era caríssima para os liberais da época. Afinal, eleitos localmente, possibilitariam – como possibilitaram – a descentralização do poder. E esta era justamente a razão determinante para a forte oposição dos conservadores à instituição desses novos órgãos de poder, suas críticas aos juízos de paz concentrando-se no fato de as novas funções serem desempenhadas por leigos, a um só tempo despreparados e submetidos aos poderes locaisv.
“Os conservadores acusavam os juízes de paz de tomarem posições partidárias ou de se submeterem a chefes políticos locais. No Brasil do século XIX, acusações desse tipo são comuns. A esse respeito sabe-se hoje, por exemplo, que os juízes de paz tiveram um importante papel no acobertamento de ações do tráfico negreiro após a proibição de 1831, inequivocamente favorecendo grupos locais.”vi
Com muita sutileza, após recordar um passado que nos permite compreender melhor nosso presente – exercício fundamental para evitarmos a alienação –, André Machado passa, então, a tratar dos abusos atribuídos à operação lava-jato quando da prisão do ex-Presidente Lulavii, os quais evidenciaram a fragilidade da fronteira entre a necessária observância dos limites postos pelo Direito por parte das autoridades que por norma deveriam ser comprometidas com esta ciência e a vulgar imposição de sua visão de mundo àqueles submetidos à jurisdição – logo, ao poder estatal –, independentemente das regras que deveriam balizar e conter sua atuação.
Brevemente resumidas as ideias trazidas por André Machado, temos que a questão central por ele abordada e que há de nos colocar a refletir nos tormentosos dias de hoje diz respeito principalmente à necessidade de bem delimitar a quem devem servir as autoridades investidas de poder: se aos próprios interesses e visões de mundo ou às normas que estruturam nosso Estado de Direito, e que, ao menos em tese, deveriam submeter a todos, especialmente as autoridades a quem caberia resguardá-lasviii. Acima de tudo, tratamos de legitimidade e da saudável distinção entre as instâncias pública e privada – o que nunca foi o forte do Brasil. No fim das contas, é uma questão de saber se é dado às autoridades privatizarem o público e, colocando suas ideias e ideologiasix acima das normas que deveriam pautar sua atuação, tornarem-se justiceiros de sua própria justiça, os fins sempre justificando os meios para sua efetivação.
A propósito, convém destacar que a legitimidade dos fins pretendidos e alcançados por um Estado Democrático de Direito – que constitui nossa República Federativa do Brasil, ao menos segundo o art. 1º da CF – depende justamente da observância dos meios e limites que se impõem nesse sentido. É a isso que se refere Wilhelm Reich, dirigindo-se a um fascista imaginário – ou nem tão imaginário assim –, alertando sobre os riscos tirânicos da prevalência dos fins em relação aos meios, em seu “Escute, Zé-ninguém”x:
“Você acha que os fins justificam os meios, por mais abjetos que sejam. Eu lhe digo: O fim é o meio pelo qual você o atinge. O passo de hoje é a vida de amanhã. Fins grandiosos não podem ser alcançados por meios torpes. Isso você provou em todos os seus levantes sociais. A mesquinhez e a desumanidade dos meios fazem com que você seja mesquinho e desumano, e tornam os fins inatingíveis.”
Estando ao lado dos que ainda entendem que a distinção entre público e privado é extremamente salutar, além de se tratar de condição sem a qual é impossível construir uma democracia e manter um Estado de Direito, forçoso concluir que, atualmente, no Brasil, vivemos uma espécie de reedição da realidade retratada por Martins Pena. O que nunca foi bom está pior, especialmente em matéria penal, âmbito em que o lavajatismoxi deu vazão a um punitivismo justiceiro, provinciano, com forte apelo e apoio midiático, que recusa os limites impostos pelo Estado de Direito e, a serviço de autoritarismos de diversos matizes e visões de mundo as mais peculiares – o que inclui um terrível radicalismo religioso –, tenta privatizar o sistema de justiça e manter estagnadas relações de dominação que apenas atualizam o que foi o Brasil colônia – as quais inclusive deveriam ser combatidas, conforme os arts. 1º e 3º da CF.
Ocorre que, diferentemente do que se passava em relação aos juízes de paz dos tempos de Martins Pena, a Constituição estabeleceu que o investimento em cargos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria ou Procuradorias – enfim, as funções públicas vinculadas ao sistema de justiça – não depende de eleições, mas de concurso. Para quem nunca se deteve na questão, convém destacar que essa forma de investimento em cargo público é – ou ao menos deveria ser – mais uma garantia do cidadão frente ao poder estatal, na medida em que coloca a autoridade submetida exclusivamente à lei e blindada em relação ao humor do eleitorado (aliás, para isso deveriam servir as prerrogativas: para assegurar o exercício independente da função pública, nos estritos limites da lei e protegido em relação às pressões midiáticas e popularesxii). Ou seja, não depender de votos é fator que reforça a submissão de autoridades públicas investidas no cargo por concurso exclusivamente às normas que constituem nosso Estado de Direito.
Essa lógica, entretanto, anda subvertida – como tantas outras – e, especialmente diante do fenômeno das redes sociais, as funções públicas têm sido cada vez mais expostas – convenientemente ou não – à pressão de massas, a uma espécie de plebiscitismo quotidiano potencializado pelo universo virtual. Chegamos ao absurdo da exibição pela mídia, em momentos políticos cruciais, de pesquisas acerca da concordância ou não da população em relação a decisões judiciais de máxima importância. Ora, na esteira do já dito, tal concordância não deveria importar, na medida em que a legitimidade do modo de funcionamento do sistema de justiça está vinculada à observância das normas vigentes, sujeita, portanto, a um controle que se pode dizer técnico, e não à satisfação do público.
Inegavelmente, o estado de coisas atualmente experimentado foi potencializado pela lava-jato e pela já exposta associação da força tarefa com significativa parcela da mídia em busca de apoio e pressão popular. O projeto da referida operação – do qual já tratamos em artigo anteriorxiii – mostrou-se nitidamente político, incluindo campanhas de marketing e, mesmo, o acesso de um de seus protagonistas a carreira indiretamente vinculada ao voto popular xiv.
Noutras palavras, ao submetê-los a seus próprios interesses e visões de mundo, a denominada operação lava-jato foi fator determinante à degradação do sistema de justiça e do Estado de Direito, tal qual hoje observada. Ao investir em uma relação promíscua entre interesses públicos e privados – estes sobrepondo-se àqueles –, colocou-se acima da lei e, assim, subverteu os princípios de legitimação das funções responsáveis por sua aplicação no país, expondo-as – ainda mais – aos humores de um eleitorado conduzido pelos ventos midiáticos e furacões das redes sociais soprados pelo deus mercadoxv.
A profundidade e extensão dos retrocessos civilizatórios provocados por esse movimento ainda estão por ser mensuradas, na medida em que os processos de devastação por ele deflagrados seguem seu curso. Contudo, mesmo que não consumada a ruína total – ainda havendo o que destruir tanto em nossas florestas, quanto na nossa justiça –, certo é que, no Brasil, já andam faltando roças para tantos juízes de paz xvi.
Defensor Público no Rio Grande do Sul, com atuação junto aos Tribunais Superiores. Mestre em
Psicologia (PUC Minas). Especialista em Criminologia (PUC Minas) e Direito Público
(UNIGRANRIO). Graduado em Direito (UFMG)
ii Disponível em: http://www.dominiopu blico.gov.br/download/texto/bn000103.pdf
iii MACHADO, André. Um juiz da roça. In : Historiadores pela democracia: o golpe de 2016 e a força
do passado. S ão Paulo: Alameda, 2016. Posições 928 1014 (
iv Op. cit. Posição 949.
v Op. cit. Posição 954.
vi Op. cit. Posições 954 958.
vii Vale lembrar que o artigo foi escrito em 2016.
viii Uma pausa para esta reflexão é, acima de tudo, urgente, na medida em que grassam as autoridades
que não têm pudor de afirmar que servem primeiro à Bíblia no exercício de suas funçõe s . A propósito:
https://overbo.news/marcelo bretas lava jato rj biblia/
ix Ideologias as quais, quanto mais negadas, mais se fazem presentes, o excesso de negação afirmando
as pelo avesso.
x São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 76
xi Expressão utilizada pelo próprio procurador geral da república, Augusto Aras:
https://jovempan.com.br/noticias/brasil/aras escala procuradores grupo combate corrupcao.html
xii Sendo impossível distinguir, hoje, a opinião pública da opinião publicada.
xiii http s://www.prerro.com.br/a pleonexia o lavajatismo e o fracasso iminente do projeto para
criacao de um ministerio publico paralelo/
xiv R eferi mo nos ao percurso do ex juiz e ex ministro da justiça sé rgio moro, que não deixa dúvidas a
respeito das pretensões pol íticas que moviam a força tarefa e que incluíam submeter como, de fato,
em alguma medida submeteram a República Federativa do Brasil aos princípios mui particulares da
apelidada república de curitiba
xv Sobre os processos de divinização do mercado, rec omendamos a leitura de “O divino mercado: a
revolução cultural liberal”, de Dany Robert Dufour (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008).
xvi Que encontram bons representantes em todas as carreiras públicas , não só na magistratura, frise se.
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