Por Luiz Gustavo da Silva
O artigo coloca-se no âmbito de compreensão da democracia, especialmente recortada na dimensão das regras não escritas, isto é, a tolerância e a contenção (reserva institucional). Cremos ser de importância ímpar dialogar sobre esta temática, notadamente em função do momento em que vivemos. Em tempo. Vale registrar que a democracia vem regulada e materializada nas leis e na Constituição Federal. O que nos chama a atenção são as regras não escritas e a importância que possuem para a própria democracia.
Nosso marco teórico fundamental virá do livro “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Trata-se de importante estudo teórico e empírico desenvolvido pelos pesquisadores, analisando a realidade estadunidense. Apesar de um estudo que surge no âmbito da democracia americana, temos que as conclusões gerais são aplicadas a qualquer democracia no mundo, e, portanto, inclusive ao Brasil. O objeto de nossa análise serão as regras não escritas de salvaguarda da democracia, analisando, especialmente, sua importância no âmbito da separação de poderes e do sistema de freios e contrapesos.
Nesta perspectiva buscaremos demonstrar que a tolerância, a contenção, o self restreint, o diálogo institucional e o respeito, longe de serem categorias de convivência ou de mera etiqueta, possuem, em si, um conteúdo jurídico-político importantíssimo: o de salvaguarda da democracia. A ausência desses elementos, notadamente no âmbito da liderança política e judicial de um país, colabora para o rompimento do tecido social, colocando, por consequência, a democracia em risco. É cirúrgica a advertência dos autores: ‘Normas de tolerância e comedimento serviam como grades flexíveis de proteção da democracia norte-americana, ajudando a evitar o tipo de luta sectária mortal que destruiu democracias em outras partes do mundo’.
Com efeito, importa-nos encontrar uma forma de caracterizar tais regras não escrita
Estribados nos ensinamentos de Robert Dahl temos que democracia é um sistema político cujos membros se consideram iguais uns aos outros, são coletivamente soberanos e possuem todas as capacidades, recursos e instituições necessários para autogovernar-se. Do conceito do autor para uma análise mais concreta que possibilite reconhecer ou não a presença de um regime democrático, é dele também a estruturação dos elementos e instituições que tornariam possíveis o reconhecimento da presença de uma democracia.
No que tange aos elementos, temos como necessária a presença de: 1) entendimento esclarecido, significa dizer que as propostas não sejam de ‘surpresas’, possibilitando o efetivo entendimento do tema, visando possibilitar maior discussão; 2) participação efetiva, onde as partes deliberam demonstrando a sua opinião; 3) igualdade de voto, após as etapas preparatórias, o voto deve ser igualitário e ter o mesmo peso – uma pessoa; um voto; 4) controle da pauta política, visa assegurar o autogoverno, possibilitando ao povo um certo controle sobre a pauta política e 5) inclusão, materializada pelo sufrágio universal. Por fim, tanto o conceito quanto os elementos demandam instituições que sejam capazes de concretizá-los. Nesta esteira, são elas: 1) acesso eletivo aos cargos de governo; 2) eleições livres, justas e periódicas; 3) cidadania inclusiva; 4) liberdade de expressão; 5) fontes de informação diversificadas; 6) liberdade associativa e 7) liberdade de autodefesa. À guisa de conclusão vale registrar que o conceito, seus elementos e instituições garantidoras são todos modais complementares.
Apesar de a tolerância e a contenção não aparecerem expressamente, parece-nos razoável que compreendamos tais elementos na premissa de que cujos membros se considerem iguais uns aos outros. É a condição de igualdade que viabiliza a existência da tolerância e da contenção. Mas o que é tolerância? Na perspectiva filosófica, em seu Dicionário de Filosofia, Voltaire traz interessante excerto: ‘O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza’. Tolerar é saber o que outro somos nós. Nos ensinamentos de Martin Buber a relação Eu-Tu na vida com os homens, constitui uma relação recíproca onde meu Tu atua sobre mim assim como eu atuo sobre ele.
Deste modo, a tolerância é norma estruturante de uma democracia, possibilitando a compreensão do outro como outro. O adágio máximo da tolerância da democracia se dá na consciência de que as vezes se ganha e as vezes se perde. Discursos infundados de não reconhecimento da legitimidade de um pleito ou vitória, só servem à incrementação da falta de tolerância.
Fato curioso na história americana que exemplifica a ausência de tolerância foram os ataques dos republicanos à nacionalidade de Barack Obama. Na melhor das hipóteses, mera idiossincrasia.
Seguindo frente. Dito que a democracia tem como norma estrutural não escrita a tolerância e a contenção, normas estas extraídas do elemento geral de igualdade, como se daria, de forma pragmática, a relação dessas normas no âmbito da separação de poderes? Com maestria, esclarecem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: “Por um lado, o Congresso e os tribunais precisam supervisionar e, quando necessário, frear o poder do presidente. Eles têm que ser cães de guarda da democracia. Por outro lado, o Congresso e os tribunais devem permitir que o governo opere. É aí que a reserva entra em cena”. Com efeito, é possível extrair que a harmonia entre os poderes se circunscreve à supervisão exercida pelo Legislativo e pelo Judiciário em face do Executivo, permitindo, dessa forma o funcionamento do governo. A harmonia, portanto, neste caso, dá-se pela supervisão e a contenção
Tal supervisão e contenção, paradoxalmente, só será possível se as instituições incumbidas forem fortes o suficiente. Quem não tem consciência e propriedade de sua potência, torna-se impotente ou prepotente. O legislativo e judiciário são não incorrerão neste mal quando lançarem mão de sua potência constitucional mediante a suavidade, inteireza e assertividade de seu dever de harmonia constitucional. Neste sentido, lecionam os autores: “Para que a democracia presidencial tenha êxito, instituições fortes o bastante para frear o presidente têm que subutilizar este poder. Na ausência destas normas, o equilíbrio se torna mais difícil de sustentar. Quando o ódio sectário pisoteia o compromisso dos políticos com o espírito da Constituição, o sistema de freios e contrapesos corre o risco de ser subvertido(…)”.
Assim sendo, há de se observar a realidade brasileira à luz de que tolerância não se transmute em procrastinação e nem que contenção se torne uma omissão.
REFERÊNCIAS
BUBER, Martin. Eu e Tu. Von Zuben, 10. Ed. São Paulo, Centauro, 2001
DAHL, Robert – Sobre a democracia, 1° Edição, UnB, 2001.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel – Como as democracias morrem. Editora Zahar – 2018
VOLTAIRE – Dicionário Filosófico, Editora Escala, 2008.
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