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Restrição da sustentação oral e a erosão do acesso à justiça

Restrição da sustentação oral e a erosão do acesso à justiça

A recente resolução 591/2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que restringe a possibilidade de sustentação oral por advogados nos tribunais, reacende um debate crucial sobre os pilares do acesso à justiça e a tradição do direito de defesa.

Antes da medida, a sustentação oral era um momento sagrado no ritual processual, um instante em que a palavra viva do advogado poderia iluminar nuances dos autos, humanizar as partes e, não raro, convencer os julgadores pela força da retórica e da persuasão. Era, em essência, a materialização do contraditório, um diálogo direto entre a defesa e o poder judiciário. Agora, com as novas limitações, esse espaço de fala será drasticamente reduzido, confinado a vídeos curtos juntados ao processo, sem qualquer garantia – ou, talvez, esperança – de que serão assistidos pelos julgadores e a casos excepcionais, sob critérios muitas vezes discricionários.

A sustentação oral não é um mero formalismo processual. Ela é filha dileta do direito de petição, um dos mais antigos e fundamentais direitos do cidadão. Suas raízes remontam às cortes medievais, onde o súdito podia dirigir-se ao monarca ou a seus delegados para pleitear justiça, expor agravos ou buscar reparação. Era um direito que equilibrava, ainda que simbolicamente, a relação entre o soberano e os governados. Nas monarquias absolutistas, a petição era um dos poucos canais de diálogo entre o poder central e a sociedade. Com o advento do Estado de Direito, esse direito foi incorporado às constituições modernas, transformando-se em garantia fundamental. A sustentação oral, nesse sentido, é a expressão contemporânea desse diálogo histórico, agora mediado pelo advogado, que assume o papel de porta-voz do cidadão perante o Judiciário.

Sua importância transcende, portanto, a mera praxe processual. Trata-se de corolário do acesso à justiça, um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Ao restringi-la, o CNJ não apenas limita a atuação dos advogados, mas fragiliza a própria legitimidade do Judiciário, na medida em que ofusca um momento de transparência e de humanização do processo judicial. Um momento em que a frieza dos autos cede lugar à voz das partes e em que o julgador é confrontado com a realidade concreta do caso, para além dos formalismos e das letras frias. Sua supressão ou redução excessiva pode transformar o processo em um mero trâmite burocrático rumo ao cadafalso, distante das demandas reais da sociedade.

Em um momento em que o Judiciário enfrenta críticas por uma suposta distância dos anseios populares, a manutenção e ampliação das hipóteses de sustentação oral seria, paradoxalmente, um gesto de fortalecimento institucional. Ao garantir espaço para a fala e para o contraditório, os tribunais reafirmam seu compromisso com a justiça como valor e não como mero procedimento. A palavra, afinal, é a matéria-prima do direito. E é pela palavra, viva e direta, que se constrói a confiança na Justiça. Restringi-la, em última instância, é silenciar não apenas os advogados, mas todos aqueles que buscam, no Judiciário, a última trincheira de seus direitos.

É celebre a frase de Nicolas Berryer no início de suas perorações frente aos “julgamentos” jacobinos, onde não raro eram também condenados os advogados: “trago à convenção a verdade e a minha cabeça; poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira”. O destino daqueles que dispuseram de tantas cabeças – ainda que se dispondo a ouvir a verdade de alguns corajosos advogados – é bem conhecido. O destino daqueles que sequer dignam a ouvir antes de dispor de cabeças ainda é incerto. Mas não parece ser menos trágico.

Artigo publicado originalmente no O Estado de S. Paulo.

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