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Saiba quem foi Zumbi dos Palmares, novo pivô da guerra cultural bolsonarista

Por Clara Balbi

Fundação Palmares usou Dia da Abolição para criticar símbolo do movimento negro e enaltecer princesa Isabel

No último 13 de maio, Dia da Abolição da Escra​vatura, a Fundação Palmares, responsável pela promoção e preservação de manifestações culturais negras, publicou uma série de artigos relacionados à data.

Se em anos anteriores ela foi chamada de “Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo” ou ainda de “dia da falsa abolição” pela entidade, sob a gestão do bolsonarista Sérgio Camargo, porém, o tom mudou de forma acentuada.

A justificativa, escreveu Camargo numa rede social, era de que a organização não propagaria “mentiras, deturpações e relativismo histórico”.

Os artigos mais polêmicos, porém, versam sobre um personagem que batiza outro dia, celebrado daqui a seis meses —Zumbi dos Palmares. Um deles, assinado pelo jornalista e professor escolar Luiz Gustavo dos Santos Chrispino, indaga já no título se “Zumbi e a Consciência Negra —Existem de Verdade?”.

Na publicação, Chrispino ataca o que chama de endeusamento de Zumbi pelo movimento negro. Ele avança, então, de modo a concluir que o grupo foi usado a partir dos anos 1970 pela “luta esquerdista como massa de manobra” para “separar a população em nichos pelos partidários da transformação do Brasil num país comunista”.

Questionado sobre a carência de citações que embasassem essa segunda etapa do artigo, Chrispino afirma que a obra não se pretendia acadêmica, e só ilustra sua opinião sobre o assunto. “É um direito que eu tenho achar que Zumbi não merece ser herói”, diz ele, que afirmou não ter certeza da existência do personagem histórico.

Quando a repórter afirma então que uma série de documentos comprovam a vida do líder, ele respondeu que foi impedido de ir até a Biblioteca Nacional para fazer uma pesquisa mais aprofundada por causa da atual pandemia. “Eu usei os [livros] que tinha.”

Mas o que de fato se sabe sobre Zumbi? A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz esclarece de pronto que não há dúvida de que o personagem existiu e liderou o quilombo de Palmares, o maior do eixo afro-atlântico, na antiga capitania de Pernambuco, na segunda metade do século 17.

Schwarcz lista uma série de registros que, indo de 1679 até 1695, ano da morte de Zumbi, mencionam o personagem. São documentos produzidos pela própria Coroa, correspondências e pareceres que narram suas tentativas de acabar com o quilombo.

A biografia de Zumbi também é conhecida, diz Schwarcz. Ele nasceu em 1655 no próprio quilombo de Palmares, mas foi feito prisioneiro e levado para viver na vila de Porto Calvo. Foi batizado com o nome cristão de Francisco, e educado em latim e em português pelo padre português Antonio Melo. Em 1670, então com 15 anos, fugiu para Palmares.

“Sabemos localizar o percurso da pessoa com esse nome e quando ele foi morto. O que não temos é a descrição física de Zumbi”, afirma Schwarcz. “Mas isso não impediu, por exemplo, que nossa historiografia construísse a imagem de Tiradentes.”

Já a associação de Zumbi ao movimento negro data de fato dos anos 1970, com a fundação Movimento Negro Unificado, o MNU, afirma a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense, a UFF.

O grupo resgata a figura de Zumbi justamente em oposição à princesa Isabel, segundo Santos. Com isso, deixam de homenagear uma mulher branca supostamente redentora, para contar uma narrativa dominada por um negro.

A historiadora afirma que é inegável que, para as autoridades, “Palmares é um cancro no meio da história brasileira”. “Dentro desse contexto que era o mais antagonizante possível [da escravidão], esses homens criaram praticamente um Estado, que vira uma das maiores ameaças para a Coroa portuguesa no Brasil. Não é qualquer coisa”, ela diz sobre o quilombo que deu nome à fundação hoje presidida por Camargo.

“Só elogiar a canetada da princesa não procede”, diz Lilia Schwarcz, acrescentando que a Lei Áurea foi uma espécie de golpe malsucedido para garantir um terceiro reinado. “Sabemos que a abolição foi um processo coletivo, que envolveu escravizados, profissionais liberais negros e brancos, trabalhadores, abolicionistas”, afirma a historiadora.

É na articulação entre Zumbi, o movimento negro e “grupos esquerdizantes da sociedade” que o artigo de Chrispino mais chama atenção, contudo.

O professor e jornalista afirma que o movimento negro cria “cada vez mais a separação social que interessa apenas à política esquerdizante, que busca levar nossa pátria a um viés que difere completamente do verdadeiro brasileiro”, cuja índole é definida como “amistosa, pacata, alegre, festeira dentro deste amálgama que é a nossa gente miscigenada”

São noções que, segundo Santos, recuperam ao pé da letra a visão do Estado brasileiro do final da Primeira República. Então, a tensão racial foi minimizada com a introdução do mito da democracia racial, que dita que os três antepassados do povo brasileiro, portugueses, negros e indígenas, contribuíram para criar a identidade nacional.

Com isso, afirma a historiadora, some o conflito. “O que eles fazem é recuperar uma ideia de Brasil que parte do pressuposto que a desigualdade é só socioeconômica.”

A visão ajuda a explicar ainda porque Luís Gama aparece como uma alternativa a Zumbi entre os artigos da Fundação Palmares. Ou porque Sérgio Camargo sugeriu, numa enquete do Twitter na semana passada, mudar o nome da Fundação Palmares para o do engenheiro André Rebouças, outro abolicionista, ou o escritor Machado de Assis —embora Camargo tenha garantido que não há nenhum projeto nesse sentido no momento.

“Isso só reforça a necessidade de continuarmos falando de Palmares, e de Zumbi, um escravizado fugido, que lutou no fronte contra o sistema. O que não significa não falar desses outros homens.”

Presidente da Unegro, entidade que luta contra o racismo, na capital paulista, Fernanda de Paula diz que encara a publicação dos textos pela Fundação Palmares como uma maneira de desviar a atenção de questões que afligem diretamente a população negra, em especial em meio à atual pandemia.

Autor de uma graphic novel que narra a história do quilombo de Palmares, “Angola Janga”, o cartunista Marcelo D’Salete diz que os textos estão em consonância com o alinhamento da Fundação Palmares com o atual governo, que vem desconsiderando uma série de batalhas históricas, não só dos negros.

“Esse grupo recusa a realidade de injustiça que impulsiona essas lutas. Eles buscam reescrever e afirmar uma narrativa própria para sua legitimação”, afirma o quadrinista.

“Penso que o chefe da Fundação Palmares está transformando em guerra ideológica o que é exercício de história”, afirma Lilia Schwarcz.

“Vivemos nesse momento de grande retrocesso da democracia, quando sempre acontece essa tentativa de manipular a história. Mas a história não é uma bula de remédio. Não é cloroquina.”​

Texto publicado originalmente na Folha de S.Paulo.

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