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“Sem espaço do sonho, a vida vira pura miséria”, diz jurista Silvio Almeida

“Sem espaço do sonho, a vida vira pura miséria”, diz jurista Silvio Almeida

Por Kamille Viola | Colaboração para Ecoa, no Rio

São quase dez da noite de uma sexta-feira na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, onde o advogado e doutor em filosofia Silvio Almeida está desde que foi convidado a lecionar no Centro de Estudos Latino Americanos e Caribenhos da Universidade de Duke. “Meu Deus, eu estou cansado”, ele desabafa antes da conversa por vídeochamada. Pudera: desde que estouraram as manifestações pelo assassinato de George Floyd, no dia 25 de maio, nos Estados Unidos, por um policial branco, depois que as chocantes imagens da cena ganharam o mundo, Almeida tem sido requisitado para entrevistas e debates na mídia brasileira. “As pessoas descobriram que existem pessoas [negras] inteligentes”, ele diz, em um momento da entrevista.

A procura por especialistas negros para analisar o tema aconteceu principalmente depois de coberturas e debates sobre o assunto serem criticados por trazerem apenas repórteres e comentaristas brancos. Professor da FGV (Faculdade Getúlio Vargas) e do Mackenzie, em São Paulo, CEO do Instituto Luiz Gama e autor do livro “Racismo Estrutural” (ed. Polén, 2019), da coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro, Almeida menciona o papel da mídia na manutenção de um sistema que discrimina negros e acredita que a repercussão dos protestos ocorridos no Brasil após o assassinato do adolescente João Pedro, morto em 18 de maio em São Gonçalo (RJ), não teria sido a mesma se o caso nos Estados Unidos não tivesse acontecido na semana seguinte.
 
Para ele, o que muitos brancos brasileiros estão sentindo agora é mais uma vergonha dos brancos dos Estados Unidos — que apoiaram em peso os protestos — do que necessariamente um constrangimento com o que é feito diariamente com os negros no Brasil. “Ser branco é isso também, é tentar mimetizar os parâmetros culturais e comportamentais das pessoas que estão no Hemisfério Norte.”

Um comportamento que tem sido frequente e causa espanto, segundo ele, é quando pessoas vêm “praticamente dar condolências” a ele pela morte de George Floyd. “É como se fosse um problema só meu. A gente devia se abraçar e chorar, os dois juntos, se não estivéssemos em distanciamento social. A morte do George Floyd representa a degradação humana. E, na boa, representa sabe o quê? Um fracasso do homem branco. Naquela imagem dele sendo assassinado, para mim, a decadência civilizatória não está no corpo do Floyd, mas no do policial”, observa.

Ele considera que estamos vivendo uma tragédia em que pessoas pobres têm como escolher apenas como morrer (por doença, fome ou violência). Mas crê em estratégias para mudar o curso da história, trazendo a solidariedade para o centro da política e reorientando os afetos. “As práticas de poder precisam ser feitas a partir de experiências consideradas marginais, mas que estão fazendo com que as pessoas tenham uma vida — apesar da violência e da precariedade do Estado. Muito do que estamos passando hoje é porque há anos viemos fazendo com que as pessoas parassem de desejar um país melhor, a felicidade. E agora a gente tem de ensinar isso de novo.”

“Sem espaço do sonho, a vida vira pura miséria”, defende. Leia abaixo a entrevista.

A gente está vivendo um momento de muita discussão da questão racial após o assassinato do George Floyd, mas aqui no Brasil a gente também vem vivendo um caso atrás do outro muito flagrante de racismo. Por que esses protestos estão eclodindo agora?

Eu acho que essa emergência se dá pelos próprios contornos trágicos da situação. E, quando uso a palavra tragédia, é até no sentido literário, porque é um momento de uma escolha que vai marcar definitivamente todo um destino, não só daquele que toma a decisão, mas dos que se encontram ao lado de quem decide. Então veja que as escolhas trágicas se apresentam na forma de um desarranjo profundo da vida social, provocado por alguns fatores que são históricos, mas que chegam no seu limite. O primeiro deles, que eu acho que é o mais importante e que a gente tem mais dificuldade de analisar, até por questões ideológicas, é a questão econômica. Estamos vivendo num momento de esgotamento da forma com que o mundo tem se organizado. Essa organização parte de uma precarização do trabalho das pessoas, de tal sorte que o cotidiano está cada vez mais miserável. As pessoas estão vivendo uma miséria do ponto de vista material, mas também uma miséria existencial mesmo, ou seja, a falta de horizontes. A vida serial, repetitiva, a vida que você não tem tempo para viver.

Você vê a situação dos Estados Unidos: são o país mais rico do mundo. O PIB (Produto Interno Bruto) deles está em torno de 20 trilhões de dólares, mas a desigualdade se aprofunda e é sentida de maneira muito mais forte pela população negra e pelos latinos, que justamente são aqueles que têm os trabalhos mais precarizados, vivem as condições mais indignas. Essa profunda desigualdade econômica vai gerando um desalento, um desespero que serve como base também para essa indignação. O filósofo e ativista norte-americano Cornel West usou a expressão, em entrevista recente, “tempestade perfeita” para falar da pandemia. Um mundo que se organiza a partir de um medo frequente da morte, em que as pessoas apenas podem escolher como vão morrer. Se é que podem escolher. Um horizonte existencial em que a morte dá o único sentido da vida, vai sendo dominado pela angústia, aquilo que [Sigmund, psiquiatra e criador da psicanálise] Freud vai falar, as diferenciações: a angústia, o medo e o terror. E aí esses protestos são um grito de desespero diante de uma vida que cada vez mais perde o sentido.

As democracias liberais estão todas sendo colocadas em xeque, porque um dos efeitos da crise civilizatória é justamente a aposta em governos autoritários como símbolo de uma ordem que foi perdida. Surge a ideia de que a sociedade está se rompendo por conta de questões de natureza moral, ou então por falta de gestão. Então se cria a figura de um inimigo que só pode combatido por alguém que tiver um pulso firme, profundamente autoritário. Essas são as condições que fazem com que esses protestos que acontecem hoje sejam bastante significativos de que algo muito grave, muito sério e essencial está ocorrendo no mundo.

“Para mim, a gente está vivendo uma quadra da história que vai dividir o momento em um antes e um depois. Só que a gente não sabe o quanto vai durar esse período de transição. Pode ser que ele dure mais do que o nosso tempo no mundo

O Emicida disse por que não ia aos protestos e alguns movimentos de favela discordaram amigavelmente dele. A gente sabe que as pessoas que estão indo a esses protestos são as que mais correm riscos…

Mas qual foi a palavra que eu utilizei no começo da nossa conversa para definir este momento? A tragédia é isso. É tomar decisão. É “Antígona”, “Édipo”. É uma decisão que vai ter consequências, não importa qual seja.

Ao mesmo tempo, as pessoas estão indo para as ruas porque nem em casa estão seguras. Você pensa alguma alternativa para as pessoas protestarem?

Na verdade, não. Porque veja só: eu acho que o nosso papel aqui é tentar refletir de maneira crítica todas as posições e colocar as nossas dúvidas. O meu querido parceiro Emicida, a análise dele é muito certeira no sentido de que parte de uma reflexão crítica sobre as distinções entre a sociedade dos Estados Unidos e a sociedade brasileira. E é uma distinção difícil de ser feita, porque exige certa paciência e contemplação que um momento histórico não nos permite fazer. Porque vamos olhar para os Estados Unidos, e tudo fica meio estranho, as pessoas falam: ‘Bom, os Estados Unidos são um país que você tem até hoje supremacismo branco.’ O presidente dos Estados Unidos é um homem que se cerca de pessoas que são ou que têm algum tipo de ligação com o supremacismo branco. Então você pensa: se lá eles estão saindo para protestar, num lugar desses, e a gente aqui? Porque no Brasil não tem essa história. Inclusive racismo é crime. As pessoas pensam dessa maneira. Só que elas não entendem, e aí é que está a reflexão: a sociedade brasileira é muito mais violenta que a dos EUA. O Brasil é um país que pouquíssimas vezes na história teve democracia. Poucos presidentes foram eleitos. É um país que não desenvolveu nem instituições, nem cultura democrática. Para manter 54% da população de maneira subalterna, é necessária uma brutalidade por parte do Estado muito maior, tanto do ponto de vista prático da violência quanto de uma reprodução cultural que naturaliza a dominação dos brancos sobre os negros. De uma maneira muito mais sofisticada.

Você falou outro dia sobre como é complicado o racismo no ensino do Direito aqui. Qual o papel do sistema judiciário nesse contexto?

Se a sociedade é estruturalmente racista, não é o funcionamento irregular dela que gera racismo: é a regularidade do funcionamento. E, nesse sentido, as instituições que estão na base da sociedade funcionam na lógica de reprodução de desigualdade. E o sistema justiça tem um papel fundamental, porque a ideia de raça é a ideia de uma classificação de indivíduos colocando-os como pertencentes a determinado grupo social. Ela não é feita de maneira automática: é necessário que haja instituições que façam essa classificação.

Uma das marcas do ser homem negro nos Estados Unidos é a possibilidade sempre presente de você ser carimbado pelo sistema de justiça. O que vai causar uma mácula que não consegue ser retirada da sua vida: uma vez passado pelo sistema de justiça, você é inserido numa série de processos que vão retirando as suas possibilidades sociais e a sua própria possibilidade de ter uma cidadania plena. Outra coisa: não é que os negros cometem mais crimes, é que eles são mais visados pelo funcionamento racista do sistema de justiça. Há séries de pesquisas mostrando que brancos e negros fazendo a mesma coisa não só têm penas diferentes, como têm decisões diametralmente opostas: um absolvição, o outro condenação. As pesquisas feitas também no Brasil, pelo [sociólogo] Sérgio Adorno, demonstram que existe um funcionamento racializado do sistema de justiça. E isso é parte fundamental do controle social da pobreza. Como diz o [sociólogo e jurista italiano] Alessandro De Giorgi, é a miséria governada pelo sistema penal. Principalmente em tempos neoliberais: a miséria só pode ser governada pelo sistema penal.

Só que veja uma coisa: a questão hoje está tão séria que o sistema penal não está dando conta nem mesmo de controlar a miséria. Percebe a gravidade do momento? E, como eu já disse: o Brasil é atravessado por algumas questões muito específicas. O Brasil é um sistema autoritário, portanto o sistema de justiça reproduz esse autoritarismo. O Brasil é um país dependente economicamente, o que também causa dependência cultural. E o Brasil, agora sim, é um país racista. O sistema de justiça reproduz essas condições.

Eu vi você dizer nas redes que não é que o racismo está se mostrando com mais força na pandemia, é a pandemia que vai dar uma nova forma ao racismo. Por quê?

A doença é natural. A pandemia é uma organização para lidar com os efeitos mundiais ocasionados pela covid-19. Ao mudar a organização política, econômica e até mesmo ideológica da sociedade, a pandemia acaba afetando também o funcionamento dos mecanismos de discriminação. Na hora de decidir se vai ter renda básica ou não, quem vive e quem morre, essas decisões serão racializadas. E também depois, acredito eu, e [o filósofo e historiador] Achille Mbembe também está dizendo isso, mesmo com fim da pandemia, a gente pode ter novas formas de controle policial baseadas justamente no medo que as pessoas vão ter de gente que pode estar infectada, que são as pessoas de países em que os níveis de infecção são maiores, países mais pobres e também onde vivem as pessoas não brancas. Como a pandemia muda o modo de organização da vida política, ela muda os mecanismos a partir dos quais a discriminação racial funciona. Portanto, eu digo: ela pode dar uma nova cara, mais brutal inclusive, para o racismo.

Isso tudo leva a imaginar, sobretudo para o Brasil, um cenário apocalíptico.

E como é que vão lidar com desigualdade? Com violência. Morte. O alerta do Emicida não é desarrazoado. Ao mesmo tempo, a outra pessoa vira e fala: “A gente não tem alternativa, o que a gente vai fazer? Vai ficar parado enquanto tem um governo que praticamente, com a sua omissão, está promovendo um genocídio?”. Veja que é uma tragédia. Mas o meu irmão querido Emicida [veja entrevista com ele], as reflexões dele são muito bem acertadas, porque elas estão dialogando com um histórico de violência e de racismo que é muito próprio da sociedade brasileira.

Ouvi pessoas falando que parece que um monte de gente no Brasil descobriu agora que o racismo existe…

Eu mesmo falei isso. Mas aí vamos fazer uma análise geopolítica. Eu não sei, sinceramente, se a reação teria sido a mesma se não fosse nos Estados Unidos. E eu não estou falando dos negros, tá? Eu estou falando dos brancos. E é isso que está provocando esse choque, essa correria, esse constrangimento. E aí, sobre o constrangimento, eu vou falar uma coisa, acho que eu não falei para ninguém ainda, mas é importante que eu fale para você. Eu acho que muito do que os brancos estão sentindo agora é mais uma vergonha dos brancos dos Estados Unidos do que necessariamente um constrangimento com o que é feito diariamente com os negros aqui. É uma coisa de olhar e dizer: “Gente, os brancos de lá estão revoltados, indignados porque mataram um homem negro. E aqui morre gente preta todo dia das piores formas possíveis, e a gente não está fazendo nada.” Veja o que é a dependência cultural.

Eu acho que existe o que a [psicóloga e doutora em psicologia] Cida Bento chamou de pacto narcísico da branquitude. Inclusive o pacto narcísico funciona até mesmo nessa solidariedade, que não é exatamente com os negros, e nem exatamente com os negros de lá, mas é uma solidariedade com o ser branco nos parâmetros dos Estados Unidos. Há um constrangimento em relação àqueles que são verdadeiramente brancos. Porque quem está para cá não é branco, não. Mas, como a ideia é ficar mimetizando, inclusive do ponto de vista emocional, aquilo que os brancos de lá fazem… Ser branco é isso também, tentar mimetizar os parâmetros culturais e comportamentais das pessoas que estão no chamado Hemisfério Norte. Eu acho que muito desses afetos foi criado justamente por conta desse pacto narcísico. Eu não estou dizendo que é todo mundo, não, tá? Porque algumas pessoas são aliados que sempre estiveram próximos da gente, chegaram junto, mesmo nos piores momentos. Mas eu acho que esse choque, tanto por parte da imprensa brasileira — porque eu falei da estrutura, e isso é importante de se dizer: acho que os meios de comunicação, principalmente de massa, são fundamentais para reproduzir o imaginário social racista. Isso está muito evidente isso agora.

Porque veja: foi agora também que as pessoas descobriram que existem pessoas [negras] inteligentes, geniais e tal. “Ele é o máximo, por que não ouvir?”. E aí, obviamente, que esses espaços têm que ser colocados. E por que eles estão sendo colocados agora? Porque é uma agenda que está na ordem do dia. E, com isso, uma coisa que eu sempre falo: eu acho que um dos motivos pelos quais a gente está nesse precipício é achar que a gente pode substituir a igualdade por diversidade. É o que eu até brinco: uma desgraça não fica melhor se você pintar ela de várias cores. Trocar uma desgraça com uma cor só por uma colorida. Não adianta fazer uma coisa dessas. Então, eu não estou defendendo a representatividade, porque eu acho que o papel que os meios de comunicação de massa têm desempenhado por conta da falta de um pensamento crítico, que necessariamente tem que ser antirracista, é justamente demonstrar essas enormes contradições que existem na vida social. A forma de representação do negro. Eu estava vendo, no dia dos protestos no Brasil, um repórter dizia assim: “Eu não sei se eu falo negro, se eu falo preto, aqui nos Estados Unidos, porque eu não sei como falar”. Uma vergonha. Na verdade, o que a gente está vendo agora é um momento de muita perplexidade e uma dificuldade de tratar de questões básicas. Até o jornalismo esportivo está querendo tratar do tema.

“As pessoas achavam que dava para falar de outras coisas num país como o Brasil, ou os Estados Unidos, sem falar na questão racial. Um repórter perguntou para mim assim: ‘Por que você acha que os negros não protestam?’. Eu falei: ‘Por que você acha que os brancos não reagem quando tem racismo? Por que você está cobrando dos negros uma coisa que vocês, brancos, não fazem?

“Inclusive eu acho que vocês têm que fazer, porque quem manda na Fifa são vocês, os dirigentes são brancos, os juízes na sua maioria são brancos, os treinadores, os jornalistas esportivos são brancos. Por que vocês não fazem alguma coisa? Por que vocês não cobram dos jogadores brancos que, quando tem um ato de racismo, deixem o campo? Então agora vocês estão vendo que não é problema nosso. O mundo está virando de ponta-cabeça. As pessoas estão esgotadas. E não é só o negro. Os brancos também”, eu disse. Esses protestos são mais do que antirracistas. Eles são antissistema. Eles têm acento anticapitalista. A miséria se levanta, gente.

Está na moda falar do racismo estrutural, às vezes até de uma forma a desculpar atos de racismo cometidos por alguém. Fico pensando que talvez a gente aqui no Brasil, como branco, tenha dificuldade de assimilar a ideia por nunca se ver como parte do problema.

Mas isso é uma característica do racismo, do ser branco, da racialização. O racismo cria justamente essa relação de alteridade: o branco é a raça que não tem raça, o problema é do outro. Inclusive a racialização funciona de tal forma que nem mesmo os negros se veem como grupo. Não existe essa história de achar que, como todos os negros sofrem racismo, eles formam um grupo. Não é verdade: o racismo destrói a possibilidade de laços entre as pessoas que sofrem violência. E no Brasil (tem) uma coisa impressionante. Os grandes pensadores da política, construtores do Estado e da sociedade foram tão competentes — porque isso é uma outra história: não vem com essa conversa de que no Brasil não se produz pensamento sofisticado. Mentira. Agora pode até ser, porque nós estamos numa miséria absurda. Mas o Brasil, o professor [doutor em geografia] Elias Jabbour falou isso outro dia e eu achei fantástico, acho que até o final dos anos 70 o país tinha, talvez, a burguesia mais sofisticada do mundo. Porque foi capaz de produzir um Estado basicamente do nada: saiu dos anos 30 e se tornou uma das maiores economias em algumas décadas. Isso é um feito muito notável e que exige muita violência. E violência bem articulada.

Essa é uma conversa importante: o Brasil foi tão sofisticado que ele criou uma forma de estabelecer clivagem racial que também é de classe, mas de modo que essa clivagem racial não fosse percebida como algo nefasto, mas característica cultural. Essa relação de raça e classe que existe no Brasil produziu uma dinâmica muito específica no mundo: a divisão entre os negros que não se veem como pertencentes a esse mesmo grupo. A única forma de você amarrar essa clivagem de raça no Brasil é por meio do discurso da meritocracia. “O que explica, então, já que não tem racismo, que tão poucas pessoas negras estejam em determinadas posições?”. Aí você utiliza o discurso da meritocracia, para dar conta dessa tensão. Beleza. E aí funciona com a democracia racial.

Agora, nos Estados Unidos há divisão entre os negros também. O individualismo também torna difícil estabelecer laços comunitários. Então o que faz com que os negros se vejam como grupo? Aí vamos entrar na importância do movimento negro. O negro só se vê como parte de um grupo historicamente discriminado a partir do momento em que ele se forja na luta política. Aquilo que [o filósofo da Martinica Frantz] Fanon dizia: o racismo criou o negro; o negro criou a negritude, movimento da afirmação da condição do negro como ser autônomo.

Esses laços de solidariedade só se dão em nível político. Veja que a luta contra o racismo começa a assustar quando os brancos também entendem que o racismo é um problema deles e que, enquanto um negro for violentado, eles também nunca conseguirão ter a sua humanidade plenamente ressignificada

Você disse que agora todo mundo vai se sentir negro, pela miséria que vivemos.

É o conceito do Achille Mbembe: o devir negro no mundo. Por que o livro dele se chama “Crítica da razão negra”? Ele está parafraseando o [filósofo alemão] Immanuel Kant no “Crítica da razão pura”. Porque a razão negra é construída pelo racismo. Quando se pensa o negro, você faz automaticamente a ligação África-escravidão. Criticar a razão negra porque a noção de negro que foi incorporada pela modernidade, pela construção da economia, da política, do direito moderno, da ideia de humanidade, ela exclui e coloca o negro como nêmesis.

Quando você começa a ler o Kant, ele fala isso. O [filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich] Hegel fala isso. São os dois grandes pensadores que dão as bases para o mundo contemporâneo. Eles colocam como contrário da luz, da Europa e de tudo que vem de lá o negro. O negro é essa construção a contrapelo da racionalidade, da inteligência. O que o Achille fala? Nós temos que bagunçar essa lógica, superar. Quando ele está dizendo isso, está vinculando a condição do ser negro também às transformações da economia. Ele vai chegar ao neoliberalismo. Estamos assistindo a isso agora. Todo mundo está falando na necropolítica, mas as pessoas esquecem que ela engloba uma crítica da economia política. Ele está dizendo: o que aconteceu com os negros vai servir como um ensaio para o que será aplicado para toda a humanidade. As torturas, a morte, a repressão, inclusive o que acontece aqui no Brasil, foram técnicas criadas sobre os negros e que depois foram aplicadas para os brancos também.

Diante da precarização da vida em geral, os brancos serão tratados como pretos. Aí eles vão aprender o que é isso. A vida deles não vai valer nada. Só que a diferença é que a gente já tem experiência de sobreviver, já conhece as artimanhas da sobrevivência

Uma coisa que eu esqueci de dizer, que eu chego até a achar engraçado. Algumas pessoas ou me ligam, ou falam comigo, às vezes me encontram na rua, elas vêm praticamente me dar condolências pelo George Floyd. Eu acho isso uma coisa impressionante. Porque veja: é como se fosse um problema só meu que um policial ajoelhou no pescoço de uma pessoa. A gente devia se abraçar e chorar, os dois juntos, se não estivéssemos em distanciamento social. A morte do George Floyd representa a degradação humana. E, na boa, representa sabe o quê? Um fracasso do homem branco. Naquela imagem dele sendo assassinado, para mim, a decadência civilizatória não está no corpo do Floyd, está no corpo do policial. Ele é a representação máxima do que há de pior nessa forma de ação que o mundo produziu.

Você enxerga formas da gente sair melhor dessa pandemia?

Eu acho o seguinte. A gente não tem controle sobre os desígnios da história. Eu não esperava o que está acontecendo agora no começo do ano. Vim para os Estados Unidos, falei: “Puxa, vou terminar as aulas, ficar viajando pelos Estados Unidos, pegar aquela rota ali do Meio-Oeste.” Onde eu estou? Faz meses que eu estou aqui dentro de casa, trabalho dobrado. Ninguém imaginava uma coisa dessas. Agora, saídas. Primeiro: eu acho que o antirracismo está na ordem do dia, mas não por conta apenas da questão racial — ela é fundamental –, mas porque as pessoas, ainda que algumas não tenham entendido, vão ser levadas a refletir sobre como as questões de natureza econômica são organizadas a partir da questão racial.

Então, por exemplo: qualquer pauta antirracista e a favor da democracia vai ter que estar conectada de um golpe só com uma agenda pública e uma agenda de transformação econômica. E essa agenda transformação econômica engloba não apenas novas formas de organização do trabalho, de produção, de distribuição de renda: vai ter que englobar também a questão ambiental, porque uma das coisas que a gente pouco fala é que o processo de degradação do meio ambiente tem a ver com a destruição dos povos originários, com o racismo ambiental. Então vamos lá, vamos avançar. A pessoa fala assim: “Eu sou antirracista, antifascista.” A pergunta: “Você é contra o SUS?”. Veja como são as condições do acesso à saúde das pessoas negras. “Ah, eu sou contra uma renda básica, sou a favor de cortes no orçamento para que haja austeridade fiscal…” Aí não dá para ser antirracista.

Liberal antirracista é uma lenda urbana?

Vamos encontrar liberais que vão defender renda básica, direitos sociais. O problema disso é que a roda do mundo não gira para trás. O Estado de bem-estar social está localizado num determinado tempo histórico. Porque senão a gente fica achando que o que estamos passando agora é produto da vontade. Um grupo de pessoas ‘do mal’ resolveu destruir a vida humana. Não: o funcionamento da economia foi levando, por si, a uma espécie de entropia que só pode ser interrompida se nós tivermos a coragem de avançar para além daquilo que está dado. Eu não sei como sei vai ser. Eu só sei o seguinte: disso depende a nossa vida.

Nós precisamos, urgentemente, trazer para o centro algo que é fundamental como ideia prática, e essas coisas já existem, e porque elas existem as pessoas ainda estão sobrevivendo, mesmo diante deste caos. Solidariedade. As pessoas estão se organizando — e vejo que muitas pessoas que estão exercendo a solidariedade estão sendo assassinadas pelo Estado, olha só que loucura. A gente precisa trazer isso para o centro da política. Fazer o movimento contrário, como diz o grande professor e jurista Carlos Rivera-Lugo, de Porto Rico: a gente diz que a Constituição legitima as estruturas do poder político. Ele propõe o contrário: a Constituição precisa começar a dar poder para as comunidades, empoderar as experiências, a vida comunitária. Veja que ele não está com visão jurídica aí, não. O que ele está dizendo simplesmente é o seguinte: as práticas de poder precisam necessariamente ser feitas a partir de experiências que são consideradas marginais, mas que de alguma maneira estão fazendo com que as pessoas tenham uma vida — apesar da violência do Estado, apesar da precariedade do Estado. Como é que a gente pega essas experiências e consegue replicar para que outras pessoas também tenham possibilidades?

“O Brasil é uma coisa muito interessante: o Brasil, que não é o Brasil oficial, produz o samba, as religiões de matriz africana. Então veja como tem coisa bonita. Tudo isso tem que ser colocado numa agenda pública. [É preciso] Trazer também para o centro as práticas culturais. A gente precisa reorientar os afetos

Muito do que estamos passando hoje é porque viemos fazendo com que as pessoas parassem de desejar um país melhor, a felicidade, um mundo renovado. E agora a gente tem de ensinar isso de novo: que é possível você desejar um mundo diferente. O problema que nós temos hoje é também da libido. O Brasil, o mundo, a nossa tragédia é também a tragédia de uma libido que está sendo absolutamente reprimida. A gente está reprimido, totalmente. Porque a gente está impedido de sonhar para além daquilo que está dado. A gente precisa se munir de experiências sociais distintas, reconstruir os serviços públicos sociais. Dar espaço para que as pessoas possam sonhar. Tem que ter esse espaço do sonho. Se não tiver esse espaço, a vida vira pura miséria. Acho que é por aí.

Entrevista publicada originalmente no UOL.
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1 Comentario

  • paulo cury
    27/02/2021, 23:12

    o país precisa de uma cara com todas as suas etnias. enquanto não resolver sua história e estória não vamos superar nossa matriz colonial. superar a destruir!ao de nossa CF é o caminho natural de nossos preconceitos.

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