A expressão “senso comum teórico” vem de Luís Alberto Warat, eminente professor argentino que desvelou as máscaras do “óbvio”, mostrando/denunciando, no âmbito da Teoria do Direito, que as “obviedades, certezas e verdades” transmitidas pela dogmática jurídica não passam de construções retórico-ideológicas. Não que todo o discurso dogmático- jurídico seja ideológico; mas parcela considerável o é, na medida em que se constitui em um espaço simbólico de “retaliações discursivas”, “justificações ad hoc” e “neosofismizações”, dado que o jurista (entendido como aquele que lida com o Direito), quando convém, ignora qualquer possibilidade de as palavras terem DNA. Um dos objetos de sua crítica era a produção de ementários, com pretensões de universalização.
Fundamentalmente, ainda hoje — ou cada vez mais — a produção doutrinária que se relaciona àquilo que se pode denominar de dogmática jurídica continua caudatária das decisões tribunalícias, em que campos inteiros do saber são eliminados para remeter os homens a uma esfera simbólica altamente padronizada, instituída e capitalizada a favor do modo de semiotização dominante. Ou seja, a doutrina continua doutrinando pouco. Contra esse tipo de “drible hermenêutico”, Warat construiu este conceito, que vem a ser a maneira pela qual a dogmática jurídica instrumentaliza o Direito.
Importante ressaltar que quatro são as funções do senso comum teórico dos juristas especificadas por Luís Alberto Warat, introdutor na teoria jurídica do Brasil desse conceito: a função normativa, por intermédio da qual os juristas atribuem significação aos textos legais, estabelecem critérios redefinitórios e disciplinam a ação institucional dos próprios juristas. A segunda função é ideológica, uma vez que o sentido comum teórico cumpre importante tarefa de socialização, homogeneizando valores sociais e jurídicos, de silenciamento do papel social e histórico do Direito, de projeção e de legitimação axiológica, ao apresentar como éticos e socialmente necessários os deveres jurídicos. Num terceiro momento, o senso comum teórico cumpre uma função retórica, que complementa a função ideológica, pois sua missão é efetivá-la. Neste caso, o senso comum teórico opera como condição retórica de sentido, proporcionando um complexo de argumentos (lugares ideológico-teóricos para o raciocínio jurídico). Por último, o senso comum teórico cumpre uma função política, como derivativa das demais. Essa função se expressa pela tendência do saber acumulado em reassegurar as relações de poder. Por isso, acrescenta, é fácil perceber como o conhecimento jurídico acumulado consegue apresentar os dispositivos do poder — plurais, dispersos e dependentes de tendências — como um conjunto unívoco e bem-ordenado aos fins propostos.
A significação dada ou construída via senso comum teórico contém um conhecimento axiológico que reproduz os valores sem, porém, explicá-los. Consequentemente, essa reprodução (inautêntica dos pré-juízos, no sentido de Gadamer) conduz a uma espécie de conformismo dos operadores jurídicos. O senso comum teórico sufoca as possibilidades interpretativas. Quando submetido a pressão do novo, (re)age institucionalizando a crítica. Para tanto, abre possibilidades de dissidências apenas possíveis (delimitadas previamente). Ou seja, no interior do sentido comum teórico, permite‑se, difusamente, (apenas) o debate periférico, mediante a elaboração de respostas que não ultrapassem o teto hermenêutico prefixado (horizonte do sentido).
Estamos diante do senso comum teórico dos juristas, como ensina Warat, quando observamos a forma da concepção de racionalidade científica é apropriada na práxis do Direito, verificando como nenhum dos fatores, aparentemente rejeitados, deixa de manifestar-se. E o conhecimento científico do Direito termina sendo um acúmulo de opiniões valorativas e teóricas, que se manifestam de modo latente no discurso, aparentemente controlado pela episteme.
O senso comum teórico dos juristas é um conhecimento constituído, também, por todas as regiões do saber, embora aparentemente, suprimidas pelo processo epistêmico. O senso comum teórico não deixa de ser uma significação extraconceitual no interior de um sistema de conceitos, uma ideologia no interior da ciência, uma doxa no interior da episteme.
O senso comum teórico também pode ser representado pela expressão habitus, que significa o conjunto de crenças e práticas que compõem os pré-juízos do jurista, que tornam a sua atividade refém da quotidianidade (algo que podemos denominar de concretude ôntica), d’onde falará do e sobre o Direito. É o desde- já-sempre e o como-sempre-o-Direito-tem-sido, que proporciona a rotinização do agir dos operadores jurídicos, propiciando a eles, em linguagem heideggeriana, uma “tranquilidade tentadora”. Veja-se, como exemplo, a resistência da comunidade jurídica em abandonar a noção de “livre convencimento”, arraigada no imaginário dos juristas e que, mesmo com a alteração do Código de Processo Civil de 2015, continuam a agir como se não tivesse ocorrido uma alteração legislativa.
O habitus é uma espécie de “casa tomada”, em que o problema de estar-refém-do-habitus não se apresenta sequer como (als) um problema- de-estar-refém-do-habitus. É o lugar onde a suspensão dos pré-juízos não ocorre, impossibilitando-se a sua confrontação com o horizonte crítico.
Em síntese, o habitus vem a ser o lócus da decaída para o discurso inautêntico repetitivo, psicologizado e desontologizado. Tais questões aparecem de forma difusa, a partir de uma amálgama dos mais distintos métodos e “teorias”, na sua maioria calcados em inconfessáveis procedimentos abstrato-classificatórios e lógico-subsuntivos, em que o papel da doutrina, na maioria das vezes, resume-se a um constructo de cunho conceptualizante, caudatário das decisões tribunalícias; por sua vez, a jurisprudência, nesse contexto, reproduz-se a partir de ementários que escondem a singularidade dos casos.
Trata-se de um conjunto de procedimentos metodológicos que buscam “garantias de objetividade” no processo interpretativo, sendo a linguagem relegada a uma mera instrumentalidade. O resultado disso é que esse tipo de “procedimentalismo metodológico” acaba por encobrir “linguisticamente, de modo permanente, os componentes materiais do domínio da norma”. O senso comum proporciona a “simplificação” do mundo jurídico, através do qual o jurista se “socializa” e interpreta o Direito.
Um dos modos mais comuns para identificar o senso comum teórico é quando o jurista (doutrinador ou juiz, membro do Ministério Público e demais aplicadores do Direito) confundem antipositivismo, não positivismo ou pós-positivismo com qualquer postura que ultrapasse o formalismo jurídico (positivismo clássico).
Assim, as posturas voluntaristas em geral, desde que ultrapassem (ou derrotem) o “juiz boca da lei” acabam sendo recebendo o “selo” pós positivista no interior do senso comum teórico-jurídico. Trata-se da incorporação da tese “vontade supera a razão”, o que faz com que as posturas inseridas no senso comum teórico retornem sempre ao início do século XX.
Trata-se do velho voluntarismo já presente, embrionariamente, em Duns Escoto e em Guilherme de Ockam (Deus, por sua vontade, poderia criar o que quisesse, até se contradizer, o que explicaria a intervenção divina posterior por intermédio dos milagres).
Como se pode perceber, depois, em Hobbes, a vontade se transforma em autorictas: põe o Direito, sem nenhuma ligação com qualquer amarra moral, política ou econômica. O lema — que é central no positivismo — é “auctoritas non veritas facit legem”.
Isso tudo ainda parece assombrar o Direito contemporâneo. Tribunais “fazem” o Direito segundo sua vontade, inclusive podendo se contradizer impunemente, julgar de um jeito e intervir depois (porque querem) na própria criação jurisprudencial. Ou na criação do Legislador. E na Constituição. Há resquícios teológicos (essa vontade que se transforma em vontade do poder admitida explicitamente em Kelsen no oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito) nesse imaginário jurídico.
Artigo publicado originalmente na Estado da Arte.
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