Por Yago Sales
Antes de desaparecer, Thiago Paulo Cardoso Souza, de 16 anos, foi abordado duas vezes por policiais militares – em uma das ocasiões foi esbofeteado no rosto; jovem também sofria ameaças de traficantes
“O Estado vem até a minha família apenas fardado. E leva meus meninos”. Conceição Cardoso da Silva, de 73 anos, lamenta a morte do neto, Thiago Paulo Cardoso Souza, de 16. O corpo do adolescente foi encontrado em uma estrada de terra, sem iluminação, com marcas de tortura e disparos de arma de fogo, na madrugada do dia 17 de novembro, uma terça-feira.
Quando o jovem não voltou para casa depois de sair de na manhã do dia 16 de novembro, a família soube que ele tinha sido abordado duas vezes por policiais militares no mesmo dia. A primeira foi ainda de manhã, segundo o próprio Thiago contou a uma amiga da mãe. Além de contar que tinha sido esbofeteado no rosto sob ordens de ir pra casa pelos PMs, Thiago pediu para a mulher leva-lo de carro para a residência da mãe. Ele demonstrava medo.
A segunda abordagem teria sido em uma distribuidora de bebidas na noite de segunda-feira. Thiago estava acompanhado de alguns amigos. Depois da revista, os jovens foram liberados. Depois disso o adolescente não foi mais visto com vida.
A mãe dele, Ana Carla Cardoso Vaz, 33 anos, passou a procurar pelo filho pelos bairros adjacentes. “Saí perguntando para as pessoas, mostrando a foto dele, postando pedidos de ajuda nas redes sociais”, lembra ela à Ponte. Um primo do adolescente teve a ideia de ligar para o Instituto Médico Legal (IML). “E eles disseram que tinham identificado meu filho pela digital”, diz Ana Carla, que cuidava do filho sozinha após ter sido abandonada pelo pai.
Quase três anos antes, o irmão de Thiago, Daniel Paulo Cardoso de Sousa, à época com 15 anos, morreu em um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em Goiânia após 20 dias internado.
Daniel foi o único, entre 10 adolescentes, a sair com vida após um incêndio no Centro de Internação Provisória (CIP), instalado dentro do 7º Batalhão da Polícia Militar do Estado de Goiás (PMGO), no dia 25 de maio de 2018. Segundo investigação da Polícia Civil, dois dos adolescentes atearam fogo em um pedaço de colchão na grade do Alojamento A da unidade.
Daniel não foi completamente carbonizado, como os colegas, porque conseguiu se pendurar no cano usado pelos adolescentes para tomar banho. A reportagem ouviu relatos à época de outros internos de que Daniel, enquanto fugia das chamas, gritava por socorro. No inquérito que indiciou servidores, a Polícia Civil concluiu que houve demora para apagar o fogo. Levado ao hospital, Daniel teve um dos braços amputados, mas os pulmões foram consumidos pela fumaça e fuligem tóxicas e o jovem morreu. A Ponte publicou uma extensa reportagem dois meses após a tragédia, contando a história dos adolescentes.
Embora a família de Daniel receba parceladamente uma indenização intermediada pela Defensoria Pública do Estado de Goiás, o valor não foi suficiente, por exemplo, para evitar a influência do tráfico, da violência policial e da pobreza na vida da mãe, e a nenhum dos três irmãos do jovem – inclusive Thiago Paulo Cardoso Souza.
Em cartas que Daniel escrevia durante aulas de português no Centro de Internação, ele pedia ao irmão Thiago que fugisse da influência de criminosos. Não deu certo. Depois do incêndio, a reportagem da Ponte ouviu relatos de que, tanto traficantes quanto policiais, assediam e perseguem os irmãos dos adolescentes vítimas do incêndio. O próprio Thiago, durante o velório do irmão Daniel, disse a este repórter que não podia deixar de fazer “os corre” porque era constantemente ameaçado por traficantes e policiais. “Moço, aqui ou faz ou morre”, disse, antes de o corpo do irmão ser levado pela funerária para ser enterrado.
A avó dos jovens, Conceição Cardoso, mãe adotiva de Carla, chora ao lembrar tanto de Daniel quanto de Thiago. “Meus meninos eram tão trabalhadores. O Daniel tocava violino na igreja. Antes de abrir o portão já gritava ‘vó, vó’. Me abraçava, me beijava, dizia que me amava. Ele adorava comer macarrão com sardinha”, recorda ela. “Já o Thiago dois dias antes de sumir estava aqui em casa ajudando o avô dele a colocar cerâmica em casa. Gostava muito de trabalhar e ter o dinheirinho dele. Ninguém da escola, da assistência social, vem aqui. Apenas polícia. É assim que o governo quer cuidar dos nossos jovens? Mandando apenas polícia? Meu Thiago não tá mais aqui para me abraçar, cuidar de mim. Ele dizia que o Daniel queria que ele cuidasse de mim. Mas cadê meus meninos?”.
Carla, a mãe dos adolescentes, compareceu, no início da semana, ao Grupo de Investigação de Homicídio (GIH) de Aparecida de Goiânia acompanhada pelo defensor público Philipe Arapian, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Público do Estado de Goiás. “Não posso dizer nada porque pode atrapalhar as investigações”, disse ela, ao lado do marido e da filha caçula, de 2 anos.
À Ponte Arapian garantiu que a Defensoria Pública acompanha e tem dado assessoria jurídica integral à família. “Estamos aqui para monitorar e cobrar que a Polícia Civil investigue a morte do Thiago”, disse ele.
Responsável pela investigação do assassinato do Thiago, o delegado Rogério Bicalho recebeu a reportagem, mas se restringiu a dizer que “ouvimos apenas a mãe do adolescente. Estamos no início das oitivas”.
A Ponte conversou com familiares de alguns dos dez adolescentes mortos no incêndio. Apenas uma quis comentar o abandono da estrutura do estado, que fez acordo extrajudicial para dividir, em 10 anos, a indenização acordada pela morte dos adolescentes sob a tutela do Estado.
Luciana Pereira Lopes, mãe de Lucas Rangel, assumiu um papel importante entre as mães: acompanha-las na dor do luto e no abandono. Mãe de outros três filhos, conta que tem dificuldade de conseguir cursos profissionalizantes para o filho. “A gente não consegue pagar porque é caro. E a única forma de evitar que meu filho se envolva com coisas erradas é dar oportunidade de estudar e trabalhar”, reclama. Não diferentemente das outras mães, Luciana consegue dormir apenas sob efeito de medicamentos.
Procurada para comentar a informação de que, antes de desaparecer e ser encontrado morto, Thiago havia sido abordado por uma equipe de policiais militares, a Polícia Militar de Goiás enviou, mesmo com os dados do adolescente, apenas um trecho do Registro de Atendimento Integrado (RAI), sistema usado pelas policias de Goiás. “A Polícia Militar de Goiás informa que consta no dia 17/11, registro acerca de uma zona rural de Aparecida de Goiânia. Vítima do sexo masculino, não possuía documentos de identidade. Foi acionada a Polícia Técnico Cientifica e Delegacia de Homicídio, a qual está à frente da investigação.”
Artigo publicado originalmente na Ponte de Jornalismo.
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