Por Janaina Garcia
Quase duas décadas depois, primeiros egressos do sistema de cotas incorporam a causa em suas trajetórias
O assassinato de um homem negro no hipermercado de uma das cidades mais ricas do país – à luz do dia e diante de câmeras de celular – reavivou uma tensão racial que, no Brasil, parece nunca ter se dado ao luxo de tirar férias.
Há quase duas décadas, o Estado esboçou ações que, embora longe de zerar uma histórica desigualdade racial, ao menos buscariam subsidiar uma maior diversidade e inclusão nos espaços de produção intelectual e reparar assimetrias com as quais a sociedade brasileira ainda lida.
Implementadas inicialmente pela reserva de cotas raciais em universidades públicas, as chamadas ações afirmativas foram instituídas em lei federal no ano de 2012, e, em menos de dois anos, passarão por uma revisão que poderá ditar mudanças em seus rumos.
A seguir, Ecoa traz especialistas que acompanharam a implementação dessas políticas em algumas das maiores universidades do país e mostra como essas ações, quase duas décadas depois dos primeiros passos, ajudaram a moldar a perspectiva de futuro dos primeiros cotistas — com trajetórias familiares completamente alteradas em função disso.
Aliás, um pequeno spoiler sobre os ex-cotistas aqui ouvidos: o aprendizado da luta travada por eles para acessar o ensino superior não somente os fez protagonistas de uma universidade agora mais diversa, como os inspirou nas batalhas pessoais e profissionais pela defesa dos direitos humanos em suas atuais trajetórias.
A revolução ainda está em curso.
Oficialmente, as cotas raciais no Brasil começaram a vigorar em 2003, nos vestibulares da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e da Uneb (Universidade Estadual da Bahia), primeiras universidades públicas estaduais a adotarem o novo critério. Em 2004, passaram a ser consideradas também no processo seletivo de algumas federais: primeiro, na UnB (Universidade de Brasília); em seguida, na UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Como lei federal, a ação veio pela lei 12.711, de agosto de 2012, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT), então em primeiro mandato. A lei fixava em 50% nas universidades federais o percentual de vagas a serem destinadas a estudantes oriundos de escolas públicas.
Conforme a lei, metade das vagas oferecidas precisam ser de ampla concorrência, e a outra metade, reservada por critério de cor, rede de ensino e renda familiar — entre os quais, autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência.
O artigo sétimo da lei estabelece ainda que, no prazo de dez anos a contar da data de publicação dela — ou seja, em agosto de 2022 -, será promovida “a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.”
A Uerj foi pioneira na implantação de cotas como critério de seleção no vestibular, em 2003. Com o tempo, a instituição passou a adotar também ações que facilitassem a permanência desses estudantes, como o sistema de bolsas equivalentes a algumas bolsas de iniciação científica e cumulativas. Passe-livre para o transporte e a abertura de um restaurante universitário com refeições mais baratas também acabaram se somando.
Hoje, a instituição estabelece reserva de 20% das vagas a candidatos da rede pública, 20% a negros ou indígenas e 5% a pessoas com deficiência e filhos de policiais, bombeiros ou inspetores de segurança, mortos ou incapacitados em razão do serviço. É preciso, em todos os casos, comprovar renda per capita menor que R$ 1.431.
Coordenador no Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e professor de Sociologia do IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos), Luiz Augusto Campos avalia que as ações afirmativas na universidade colecionam “mais avanços do que problemas” no curso dos últimos 17 anos.
“Ainda temos desafios; o valor da bolsa de permanência está longe do ideal; nem todos os alunos possuem restaurantes universitários em seus campi. E agora, com a pandemia, tivemos de enfrentar problemas sérios em relação a isso, com o início do processo de compra de tablets e chips a esses alunos”, elenca. “O principal gargalo, sem dúvida, é haver mais política de investimentos e de permanência a esses estudantes”, define.
O GEMAA é um núcleo de pesquisa criado em 2008 com a meta de produzir estudos sobre ação afirmativa a partir de uma variedade de abordagens metodológicas. Atualmente, com um raio de atuação mais expandido, o grupo faz pesquisa também sobre a representação de raça e gênero na política e em diversas instituições e mídias — entre as quais jornalismo, cinema, telenovelas, revistas e videogames.
Campos sublinha que, em 2021, serão produzidos dados sobre as ações afirmativas na universidade tendo em vista a revisão da Lei de Cotas em 2022.
“De modo geral, no entanto, é possível afirmar que se trata de uma política de sucesso, já que aumentou a diversidade, e os dados indicam que a diferença de nota é mínima entre cotistas e não cotistas.”
Até ser chamado de doutor graças a um título acadêmico, e não a uma convenção social, o advogado Irapuã Santana, 34, enfrentou uma realidade que facilmente poderia ter dado a ele outro destino: negro, família de baixa renda e morador do subúrbio carioca, sobreviveu à disputa local de facções rivais, buscou oportunidades pela educação e entrou para a estatística dos jovens que chegam ao ensino superior graças às ações afirmativas.
“Venho de uma família bem pobre do subúrbio do Rio; meus pais fizeram até o ensino fundamental. Morávamos entre dois morros ocupados por facções rivais, a vida não era nem um pouco fácil. Estudei, consegui bolsa em escola particular, e meu pai andava com meu boletim a tiracolo para eu conseguir uma bolsa também no cursinho. Eu queria ser militar – pobre, para melhorar de vida, quer ser militar… Cheguei a fazer as provas, mas descobri que era míope e não consegui. Sem saber muito o que fazer, falando com meus pais, pensamos que o Direito me daria oportunidade de prestar concursos – e quando eu vi a possibilidade de cotas, como preto retinto que sou, foi algo meio que natural: prestei e entrei”, narra.
Santana é da segunda turma de cotistas da Uerj. “Tinha gente que escondia [a condição de cotista], mas, para mim, sempre foi relativamente tranquilo falar sobre isso, nunca tive vergonha. Minha turma [2004] foi a primeira onde as cotas pegaram, para valer – uns 30% dos alunos eram negros”, lembra.
De 2004, quando entrou, para agora, o advogado diz perceber mudanças nítidas no ambiente da universidade. “Eram bem poucos negros na universidade quando eu comecei a graduação; fui um dos primeiros estagiários negros na Uerj, aliás. Como a gente tinha que ir para o Tribunal de Justiça já vestido como advogado — de terno e gravata —, era muito comum acharem que eu fosse pastor evangélico. Eu carregava o fichário de processos, e as pessoas pensavam que era a bíblia”, conta.
Além da graduação, Santana obteve ainda pela Uerj mestrado e doutorado em direito processual — deteve-se, em ambos, na temática do acesso à Justiça.
Embora acredite que as cotas tenham ajudado a aumentar a diversidade racial na profissão, ele pondera que, no sistema Judiciário, a disparidade racial ainda é alta.
Em 2018, por exemplo, o Censo do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) apontou que, de uma amostra de 11,3 mil juízes pesquisados, 80% se declararam brancos, 18,1% negros e 1,6% asiático — embora, no ano anterior ao Censo, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) tenha revelado que os negros representavam 54,9% da população brasileira, entre pardos (46,7%) e pretos (8,2%).
“Entre 2014 e 2016, fui assessor do ministro [Luiz] Fux, no Supremo Tribunal Federal. Era raríssimo ver assessores negros. Resultado: eu era constantemente confundido com motorista ou segurança de ministro — ao ponto de, um dia, entrar em um elevador privativo a ministros e assessores, e ser convidado, por um funcionário, a usar outro. Isso ainda acontece.”
Santana se aproximou de fato do movimento negro em 2015, como advogado voluntário no movimento Educafro, onde segue até hoje. A entidade, por sinal, foi um dos principais polos de pressão social para que a então presidente Dilma Rousseff (PT), em 2014, sancionasse a lei que prevê cota de 20% para negros no serviço público. Anos antes, em 2012, a ONG atuara junto ao STF no julgamento das cotas raciais — declaradas constitucionais, pela Corte máxima, de forma unânime.
“Se pusermos a questão racial brasileira em perspectiva histórica, são 350 anos de escravidão e 130 liberdade — e menos de 20 anos de cotas raciais. Dentro da régua da história, portanto, é muito recente o papel que nós, negros, temos como protagonistas nas profissões intelectuais”, avalia o advogado. “Esse é um trabalho ainda de longo prazo, mas com resultados que têm se modificado, com algum esforço… Ver hoje na mídia o negro como fonte não apenas de assuntos de racismo não deixa de ser uma revolução”, define.
Foi uma entrevista acompanhada pela tia religiosa e fã de canais católicos que abriu os olhos e os ouvidos da hoje advogada Allyne Andrade, 34, para algo que, até então, ela praticamente desconhecia. O ano era 2003; o entrevistado, Frei David Santos, diretor-executivo da ONG Educafro.
A tia repassou a mensagem do frei: “‘Minha filha, você sempre gostou de estudar, e agora tem umas pessoas pretas se mobilizando para que gente como você possa estudar na universidade’. Fui me informar melhor e terminei em uma reunião da Educafro, no teatro João Caetano [centro do Rio], com 1.200 jovens negros. Entrei para o movimento e prestei o Direito na Uerj no ano seguinte, pelo sistema de cotas”, relata.
Frei David havia falado na TV sobre as ações afirmativas em universidades públicas — não mais apenas no horizonte da Uerj, estreante no sistema de cotas no país naquele mesmo ano, mas em outras instituições.
Allyne conta que cresceu em uma família negra do subúrbio, em Realengo, zona oeste carioca. A vida de dificuldades, agravadas com um período de desemprego e bicos do patriarca, não impediu que a jovem e o irmão fossem incentivados por pai e mãe a mergulharem nos estudos da forma como fosse possível. Livros, oportunidades de ir ao teatro e ao cinema — ainda que não na frequência desejada – e um curso de inglês no bairro eram os meios de o casal alimentar a cultura geral dos filhos.
“Minha família é simples, mas sempre teve educação como algo primordial. Meus pais costumavam nos dizer que não teriam herança para nos deixar, mas que sempre apoiariam a nossa formação”, rememora. “A partir dessa tradição em casa — e uma casa de muita consciência racial, também —, eu considerava natural estar na universidade; sentia que tinha sido criada para aquilo. E aí, quando cheguei, tentaram me dizer que aquele não era o meu lugar, porque eu teria ‘tomado’ o lugar de alguém… Eu, que tinha convivido com três anos de desemprego do meu pai.”
Allyne define o ambiente político, no início do curso, como “extremamente hostil”. Ainda sem bandejão na universidade e sem dinheiro para o transporte, ela conta que ser acolhida pelo movimento negro foi fundamental na travessia. “Aos poucos, as coisas foram se apaziguando: não que não houvesse conflitos raciais, mas fomos obtendo vitórias jurídicas por meio do movimento negro. Tanto que, em 2005, a Uerj implementou um programa tímido de permanência, pelo qual consegui entrar em um programa com bolsa de iniciação científica”, destaca.
O engajamento nas questões raciais por parte de cotistas como Allyne acabou suscitando também debates sobre o próprio curso. “Era uma universidade extremamente eurocêntrica e que não atendia nossas expectativas. Me dei ao trabalho de contar quantos alunos negros haviam passado pelo curso entre 1964 e 2004: foram, no máximo, três negros nas turmas de direito. Era um curso muito elitista, mas, aos poucos, em meio a embates e estratégias de sobrevivência, fui me colocando como cotista, comprei todas as brigas que eu podia comprar e me organizei em coletivos”, afirma.
Hoje, doutora em Direito pela USP (Universidade de São Paulo), ela assumiu a superintendência-adjunta da Fundo Brasil, entidade do terceiro setor que atua na defesa dos direitos humanos por meio de editais de apoio a coletivos e organizações de base no Brasil todo.
“Entrei na universidade em um ponto agudo da construção das ações afirmativas, as quais têm um papel relevante na busca por justiça racial. Isso me formou como cidadã e, em especial me ajudou a transitar nesses ambientes de maioria branca. E me formou para entender o que esperar do mercado de trabalho e quais lutas eu deveria travar por um mercado mais diverso”, analisa.
“A universidade pós-cotas pensa muito mais a partir das múltiplas existências do povo brasileiro do que aquela universidade ainda muito inspirada nos cânones europeu e norte americano.”
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