Por Miguel do Rosário
Poucas vezes se testemunhou, no Brasil, uma implosão política tão espetacular como a protagonizada por Ciro Gomes.
Já assistimos outras implosões políticas, como a de Aécio Neves, mas foram fenômenos muito mais graduais e melancólicos.
O caso de Ciro é especial.
É realmente um espetáculo, como a explosão de uma supernova. A metáfora é apropriada, porque ele parece ter sucumbido ao peso gravitacional de suas próprias ambições e vaidades.
O que restará de Ciro Gomes após essa campanha?
Uma estrela anã ou um buraco negro?
Na última grande pesquisa com entrevistas presenciais, a Quaest, Ciro Gomes aparece com 7%, 22 pontos atrás de Bolsonaro (29%) e quase 40 pontos atrás de Lula (46%).
A propósito, uma das (muitas) contribuições negativas de Ciro ao debate político atual tem sido acusações delirantes contra pesquisas.
Ciro tem dito que elas custam “1 milhão” cada. Não custam. A pesquisa regular mais cara é a Quaest e essa última, nacional, custou R$ 268.742,48. A maioria das pesquisas, porém, custa muito menos.
Outra suspeita que ele tem lançado sobre as pesquisas é a de que que elas são pagas por “banco”, que teriam interesse político – segundo Ciro – de isolar candidaturas antissistema como a dele.
Além de ridícula, é uma tese negacionista, perigosa e antidemocrática.
É negacionista e perigosa porque, se não acreditamos em pesquisas políticas realizadas com método científico, abre-se o caminho para lançar em descrédito o resultado das eleições.
É antidemocrática porque pesquisas eleitorais são um elemento necessário ao ecossistema de qualquer democracia de massas, e especialmente de um país como o Brasil, que tem um problema crônico de instabilidade política.
Uma das maneiras mais simples e acessíveis de combater a instabilidade, é criando ferramentas de previsão. Por isso, a profusão de pesquisas deve ser lida como uma defesa natural do país.
Elas – as pesquisas – tem uma função econômica. Antes de abrir um negócio, ou mesmo adquirir um imóvel, é sempre útil medir o pulso da sociedade.
As pesquisas, por mais imperfeitas que sejam, constituem uma dessas raras ocasiões em que se ouve a voz dos setores mais pobres e excluídos da população.
Quando o cidadão de baixa renda diz o nome de Lula para o entrevistador, ele está enviando um recado político aos donos do poder, sobretudo aqueles que, em geral, ignoram solenemente as terríveis condições em que vive o pobre.
Através das pesquisas, a voz do povo chega às capas de jornais, portais e revistas. Não é difícil imaginar o brilho de esperança nos olhos do sertanejo ou do morador da periferia, quando ele vê sua opinião política – expressa na forma de intenções de voto – ganhar destaque nos principais telejornais. Num país de dimensões tão colossais, onde as limitações econômicas do trabalhador se somam às dificuldades geográficas e à precariedade do transporte público, como auscultar o coração do povo? Como medir o grau de seu desespero? Como sondar suas angústias, sonhos e aspirações?
Em tais circunstâncias, alguém que tenha um amor genuíno, carnal, sincero, à democracia, sabe a importância das pesquisas de opinião, especialmente as eleitorais!
É importante saber como pensam as diferentes regiões do país, como pensam os evangélicos, os católicos, os que ganham até 2 salários mínimos, a classe média, os jovens, os idosos, os desempregados, as mulheres, os negros, como pensa todo mundo!
Uma pesquisa feita com integridade e honestidade tem um valor inestimável para a democracia.
Desprezar pesquisas eleitorais, apenas porque o seu desempenho não é favorável, é sinal de egoísmo, tique autoritário, e falta de empatia com as massas (cuja voz, pelo jeito, não é mais agradável aos ouvidos de Ciro).
A hostilidade de Ciro às pesquisas, além disso, bate de frente com o que ele procura vender como o principal diferencial de sua campanha, que é a defesa de um “projeto nacional de desenvolvimento”.
Projeto nacional sem realismo político é brincadeira irresponsável
Dentre os intelectuais com vida ativa no debate público, o geógrafo Elias Jabbour é um dos maiores defensores do conceito de projeto nacional. Em seus trabalhos e livros, Jabbour afirma que o sucesso do regime econômico da China se explica, dentre outras razões, pela centralidade que deu ao que ele chama de “economia do projetamento”.
O próprio socialismo poderia ser caracterizado, ainda segundo Jabbour, como um regime diferente do capitalismo por ser ancorado principalmente, não no mercado e seu regime livre de preços, mas numa economia planificada.
Entretanto, um modelo moderno de planejamento (como é o chinês) não exclui o mercado. Ao contrário, o segredo da China seria justamente usar o mercado, com seu sistema de preços livres, como uma ferramenta a serviço de um projeto nacional. Esse entendimento sobre a importância estratégica do “livre mercado”, como uma espécie de “pé no chão” de uma economia projetada, seria um dos grandes diferenciais do socialismo chinês em relação a experiência soviética.
No fundo, essa relação entre projeto nacional e mercado é a fórmula hegemônica de toda nação desenvolvida, com a diferença de que, nos países capitalistas bem sucedidos, registrou-se um projeto nacional a serviço do mercado, ao passo que, na China, o mercado foi posto a serviço do projeto. Em ambos os casos, de qualquer forma, o projeto nacional está lá, seja como cabeça, seja como vice da chapa.
Lamentavelmente, o conceito de “projeto nacional de desenvolvimento” de Ciro Gomes tornou-se uma caricatura, um espantalho, uma peça artificial de campanha, porque foi esvaziado inteiramente da sua força vital, que reside no mais absoluto rigor, no mais austero pragmatismo, com que se deve gerir a questão política (aí incluído, naturalmente, o respeito às pesquisas eleitorais).
Nenhum projeto nacional de desenvolvimento é sério se não colocar, em primeiro plano, a questão política. A modelagem macroeconômica, a proposta de reindustrialização do país, dentre outras ideias que devem integrar um PND digno desse nome, tudo isso é perfumaria se não há um plano objetivo e realista de poder.
E para tomar o poder, é preciso estabelecer a comunicação com as massas. Como Lula não tem pretensão de liderar uma guerra civil revolucionária, como fez Mao Tsé Tung, ele precisa construir o máximo de pontes que seja possível, dado o cerco violentíssimo que a mídia brasileira sempre fez contra a esquerda brasileira. Ao criminalizar os esforços de Lula para ampliar o arco de alianças políticas em torno de si, Ciro apenas transparece ressentimento com seu próprio fracasso em atrair aliados.
Quando Ciro fala em romper o modelo de “governança política”, é difícil compreender o que ele quer dizer, ainda mais quando vemos que ele vem tentando, embora sem sucesso, obter apoios dos mesmos setores da centro-direita que, segundo ele, constituiriam o cerne maligno da política nacional.
Os ciristas procuram explicar essa contradição alegando que os acordos se dariam em torno de um “programa”, em contraposição aos esforços de Lula, que seriam motivados puramente pela busca do “poder pelo poder”.
O raciocínio transpira ingenuidade, cinismo e antipolítica.
Pior, como os acordos de Ciro nunca vão para a frente, sua militância então passa a louvar o fracasso como prova de sua enorme dignidade.
A glorificação da derrota, no entanto, nunca levou a lugar nenhum.
É preciso construir estratégias objetivas de tomada do poder. Um projeto nacional que não dê centralidade absoluta, prioritária, à conquista do poder político, não é um projeto sério, tampouco nacional, muito menos de desenvolvimento. É uma brincadeira irresponsável e inconsequente, num momento em que milhões de brasileiros passam fome.
Os diagnósticos de Ciro também são equivocados. Para justificar a suposta necessidade de mudar a “governança política”, ele põe no mesmo saco todos os últimos governos, atribuindo o mesmo motivo às suas dificuldades e fracassos. É uma análise pobre, porque as dificuldades enfrentadas por cada um desses governos foram próprias de cada um, derivadas de circunstâncias diferentes, presidentes diferentes, sociedades diferentes, tempos históricos diferentes!
Para dar um exemplo: Ciro diz que “Lula foi bater na cadeia” porque o petista teria repetido o “modelo econômico” e a “governança política” de seus antecessores. É análise rasteira, porque é evidente, para qualquer observador minimamente racional, que nenhum presidente da república, na atual arquitetura institucional brasileira, teve condições políticas de romper o modelo de “governança política” do país. O que se consegue fazer, e isso Lula fez, é melhorar as condições de vida do povo, ampliando acesso a alimentação e à educação, de maneira a fortalecer a base social que, ela sim, poderá criar as condições para mudanças mais ambiciosas à frente.
Ademais, Ciro finge ignorar o cerco midiático sofrido por Lula desde o primeiro ano de seu governo. Finge porque ele, Ciro, sabe que houve este cerco, tanto que qualificou o que houve em 2004, quando se iniciaram as conspiratas juridico-midiáticas contra o governo (o chamado “escândalo do mensalão”) como uma tentativa de golpe. E foi mesmo. Mais tarde, Ciro foi um dos principais campeões na luta contra o golpe de 2016. Se houve um golpe contra Dilma, houve a construção de um cerco midiático violentíssimo, que sabotou todas as iniciativas do governo federal para gerar empregos, ativar a economia e levar adiante um projeto de desenvolvimento.
Os governos petistas cometeram erros. Mas também acertaram em coisas importantes e a prova mais cristalina disso é o favoritismo de Lula nas eleições.
Não dá nem para comparar Lula a Vargas. Tenho imensa admiração por Vargas. Nenhum governante fez mais do que ele em termos de construir as bases de um país. Mas Vargas chegou ao poder através de um golpe militar. Manteve-se no poder através da força militar. Foi um ditador que perseguiu implacavelmente seus adversários. E sua eleição popular em 1950 se dá num país com imprensa destruída pela ditadura, lideranças populares presas, boa parte da esquerda posta na ilegalidade, e, sobretudo, num processo eleitoral onde a maioria esmagadora da população ainda não tinha acesso ao voto. Isso sem contar que era virtualmente impossível, para qualquer liderança política, competir com um Vargas que havia, durante 15 anos de feroz ditadura, investido uma quantidade colosssal de recursos financeiros, estatais, políticos, num culto a personalidade que faria inveja a Mussolini!
Lula é de outra cepa!
Ao contrário de Ciro Gomes, que estreou na vida pública como procurador municipal nomeado pelo próprio pai (que era prefeito da cidade), e se elegeu pela primeira vez pelo PDS (ex-Arena, o partido da ditadura), Lula iniciou sua carreira política como um dirigente sindical de esquerda, que combatia a ditadura militar em seu momento mais perigoso!
Ciro vem tentando colar em Lula a culpa pela desindustrialização do país. E para isso joga um monte de números que mais confundem do que esclarecem.
A crítica de Ciro, neste sentido, é ingrata, moralista e injusta.
É ingrata porque Lula se empenhou pessoalmente pela construção da siderugia em Pecém, no Ceará, durante o governo de seu irmão Cid Gomes, um projeto que se tornou absolutamente estratégico para a economia do estado.
É moralista porque parece que o presidente Lula, durante sua administração, rodava o país fechando fábricas por puro sadismo.
O problema da desindustrialização atingiu todos os países do mundo ocidental. Não foi apenas o Brasil.
O Brasil foi particularmente afetado por algumas razões específicas. A principal delas é que, no momento em que a China inundava o mundo com seus produtos manufaturados, vendidos a preços mais competitivos do que em qualquer outro lugar, levando indústrias a fechar portas ou a se mudar para a própria China, nesse mesmo momento, o Brasil vivia uma grande revolução agrícola, que atraiu e desviou os capitais excedentes do país.
Não faz sentido falar em participação da indústria no PIB do Brasil, ao longo dos últimos 20 anos, sem mencionar o aumento do PIB do agronegócio no período.
Estima-se que o Brasil tenha 851 milhões de hectares agricultáveis. Não há paralelo no mundo para isso. Os EUA são um grande produtor agrícola, mas já atingiu relativa maturidade em termos de área plantada há anos. No caso do Brasil, o desenvolvimento de novas tecnologias de irrigação, fertilização e mecanização vieram à tôna apenas na década de 90, e explodiram durante os governos petistas.
Era natural que houvesse não apenas um deslocamento de capital para esses setores, como também que a participação relativa da indústria caísse.
Em termos absolutos, contudo, a indústria brasileira não caiu durante os primeiros dez anos de governos petistas, até porque houve abundante oferta de investimentos públicos no setor, além da implementação de três grandes projetos de industrialização, incluindo na saúde e no setor de óleo e gás.
Em artigo publicado na última edição (número 42, abril/julho de 2022) da Revista de Economia Política, o economista Bresser-Pereira, um dos maiores entusiastas de um projeto nacional de desenvolvimento, e a principal referência do próprio Ciro Gomes nesse tema, menciona duas grandes ondas de desindustrialização nas últimas décadas.
A primeira se dá entre 1986 a 1998, e “começa com o colapso do Plano Cruzado em 1986, a liberalização comercial e financeira em 1990-92, e o período de sobrevalorização extrema da moeda nacional imediatamente após o Plano Real, de 1994”.
A segunda onda, durante o governo Lula, é “intrigante”, pondera Bresser, porque as taxas de crescimento da indústria foram “satisfatórias”, de maneira que a perda de participação relativa se explica antes “pelo boom das commodities”.
De fato, o PIB real das manufaturas brasileiras, conforme apurado pelo economista Paulo Morceiro, especialista em desenvolvimento e política industrial, cresceu fortemente de 2003 a 2007, experimenta uma queda em 2009, em virtude de crise dos subprimes, que afeta indústrias do mundo inteiro, e volta a avançar até 2013.
O Brasil – com indústria, com Supremo, com tudo – desaba mesmo a partir de 2014
A economista Michelli Gonçalvez Stumm dedicou sua monografia às “políticas industriais petistas”. É um trabalho honesto e crítico, que procura entender as razões do fracasso dos esforços governamentais para reativar, modernizar e, sobretudo, ampliar o parque industrial brasileiro.
Entretanto, uma lição que fica do trabalho de Stumm é que, sim, houve três grandes planos de industrialização do país durante os governos petistas, que ela apelida de “PIPs”, políticas industriais petistas: a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (de 2004), a Política de Desenvolvimento Produtivo (de 2008), e o Plano Brasil Maior (de 2011).
Quando se fizer o debate sobre industrialização, portanto, é sempre honesto lembrar desses esforços, até mesmo para que se tirem lições sobre seus acertos (poucos) e erros (muitos).
De qualquer forma, boa parte dos erros das políticas industriais petistas talvez não fossem tão graves, ou quem sabe nem fossem erros, sem o advento da operação Lava Jato.
O tombo econômico da indústria brasileira, como de resto de toda a economia nacional, teve início no primeiro semestre de 2014, e coincide com o aprofundamento da Lava Jato e a imensa paralisia política, administrativa e empresarial que se seguiu desde então, culminando com o golpe de Estado em abril de 2016.
Não é trivial que o alvo principal da Lava Jato tenha sido exatamente a nata da engenharia brasileira, aquela que trabalhava nos grandes projetos de energia, construindo hidrelétricas, refinarias, usinas nucleares, submarinos.
O núcleo do projeto nacional de desenvolvimento nos governos petistas era a indústria de óleo e gás, até porque o setor é a nossa principal indústria de base. Se a construção das grandes refinarias, no Rio, Ceará, Maranhão, não tivesse sido abortada, o aumento da produção nacional de gás natural, gasolina, diesel, e de uma infinidade de derivados de petróleo, constituiria um impulso inicial decisivo para um processo de reindustrialização do país!
Voltemos a Ciro.
A característica mais emblemática da campanha de Ciro Gomes é a sua virulência contra Lula.
Alguns ciristas, talvez constrangidos com a estratégia, defendem-se dizendo que Ciro não faz “ataques”, e sim “críticas”.
Naturalmente, criticar é uma expressão mais leve do que atacar. Critica-se inclusive um aliado. Um militante cirista pode criticar Ciro e está tudo bem. O mesmo vale para uma crítica de um petista a Lula.
Ataque é outra história. A expressão denota agressividade e sinaliza o uso de violência, simbólica que seja.
Entretanto, quando Ciro declara que “Lula é o maior corruptor da história do Brasil”, chama o ex-presidente de “assaltante”, ou chama o movimento de apoiadores do ex-presidente de “lulopetismo bandido”, isso é, tecnicamente, uma crítica ou um ataque?
Há pouco, Ciro Gomes foi mais longe e acusou Lula de mandar “os jagunços dele me agredirem fisicamente”.
A acusação de Ciro é tão manifestamente mentirosa que causou constrangimento a muitos ciristas, que, sem saber como respondê-la, admitem que foi um exagero, e tentam focar no outro ponto da postagem de Ciro, a de que “Lula foi o único político que não pediu o impeachment de Bolsonaro”.
Não se pode, todavia, normalizar a baixaria. Acusar Lula de ordenar um ato de violência física contra Ciro Gomes passa de todos os limites. Além de ser uma calúnia grosseira e indesculpável, é tão inverossímil que apenas gera repulsa contra o próprio Ciro Gomes.
Falemos do outro ponto, o de que Lula “não pediu” o impeachment de Bolsonaro. Estimulados pelo próprio Ciro, os ciristas repetem isso como papagaios, mas esse é outro problema de ordem cognitiva, muito similar ao que demonstram quando acusam de desonestidade e disseminação de fake news qualquer um que fale que Ciro começou a vida na Arena, o partido da ditadura. Ora, Ciro começou no PDS, que é simplesmente a Arena com nome novo, com os mesmos dirigentes e o mesmo ideário.
Lula é presidente de honra do PT e o principal quadro do partido. Se o PT assinou inúmeros pedidos de impeachment de Bolsonaro, então Lula também pediu. Ou Lula não é o PT?
De qualquer forma, a análise política de Ciro é medíocre e obsoleta, porque agora está mais do que evidente que a estratégia de pedir o impeachment de Bolsonaro nunca foi uma ideia brilhante. Desde o início dos debates sobre o impeachment, vários analistas falavam do desgaste enorme do instituto do impeachment.
Depois do impeachment de Dilma Rousseff, a maioria da população passou a associar o processo, com toda a razão, a instabilidade política e crise econômica. O povo brasileiro, portanto, nunca quis o impeachment de Bolsonaro, e por isso não foi as ruas nem se mobilizou. E isso não porque não queria removê-lo do poder, mas porque entendia, talvez de maneira muito mais sensata e objetiva do que setores neurastênicos da classe média (Ciro incluído), que a melhor forma de fazer isso era derrotá-lo nas urnas nas eleições de 2022.
Na verdade, o ódio de Ciro nessa questão do impeachment, é que ele tinha visto aí uma oportunidade para si mesmo. Com Bolsonaro afastado, deve ter pensado, abriria-se uma vaga para ele no segundo turno. Com essa esperança em mente, ele apostou fichas demais num impeachment que, todo mundo sabia, não tinha chances de prosperar. A irritação de Ciro deve ter sido ainda maior quando constatou que Lula, mais uma vez, tinha sido mais inteligente que ele, não se desgastando excessivamente numa batalha que a oposição não tinha como vencer.
O papel que Ciro tem desempenhado, de qualquer forma, é perigoso para a democracia.
Sua última esperança é ver ressurgir uma grande onda antipetista, que arraste o eleitor de oposição a Bolsonaro, forçando-o a escolher Ciro como o único que pode “derrotar Lula”.
Mas isso é pueril e irresponsável.
Ciro gosta de usar pesquisas de 2018, que o mostravam a frente de Bolsonaro no segundo turno. Mas ele força demais a barra.
O gráfico abaixo, de 18 e 19 de setembro de 2018, é até hoje usado por ciristas, quando querem inventar um multiverso onde Ciro ganharia de Bolsonaro. Uma análise mais apurada desses números, porém, o desmontam. Ciro pontua 45% contra 39% de Bolsonaro. São apenas seis pontos de diferença. Isso não é garantia de vitória para ninguém, ainda mais considerando que Bolsonaro estava à frente no primeiro turno.
Eu também acreditei que Ciro poderia ganhar de Bolsonaro no segundo turno de 2018. À luz dos resultados eleitorais, todavia, entendo que era uma crença ingênua.
De qualquer forma, na mesma pesquisa Haddad pontua 41%, apenas 4 pontos atrás de Ciro.
A troco de que o PT deveria ter retirado sua candidatura, por causa de 4 pontos a menos que Ciro numa pesquisa?
O Ciro hoje está 40 pontos atrás de Lula (repito, 40!) e se recusa a retirar sua candidatura, porque Haddad deveria tê-lo feito em 2018?
Ademais, qualquer analista de pesquisa sabe que não se deve considerar a ferro e fogo esses cenários de segundo turno. Ou pelo menos, não faz sentido olhar para eles “saltando” os números de primeiro turno.
A tentativa de criminalizar o primeiro turno
Em suas entrevistas, Ciro ataca Lula até mesmo por sua decisão de disputar o segundo turno das eleições de 1989 contra Collor, novamente invocando pesquisas segundo as quais “apenas Lula” perdia de Collor.
O que Ciro sugere? Que o primeiro turno seja decidido em pesquisas?
E se Ciro acredita tanto nas pesquisas de 1989 e 2018, por que diabos não acredita nas pesquisas de hoje?
É uma contradição em cima da outra!
Entretanto, a estratégia mais bizarra de Ciro Gomes é fazer um ataque de mentirinha, quase infantil, a Bolsonaro, e jogar a maior parte de sua verve ferina contra Lula, e isso numa situação de polarização extrema em que o outro lado é um fascista que segura a poderosa caneta presidencial e tem, como seus principais aliados, oficiais golpistas das Forças Armadas e comandantes de polícia militar.
Os “ataques” de Ciro a Bolsonaro são ridículos. Em geral, são insultos idiotas, como o bordão “ladrão nazista” que ele ficou repetindo como um doido na Feira do Agrishow, ou acusações levianas, bobinhas, como a de que Bolsonaro “roubava a gasolina”. Isso quando não perde a compostura e, dirigindo-se a eleitores do presidente, fala coisas inacreditavelmente grosseiras, e mesmo sem sentido, como “Bolsonaro roubou sua mãe, ou comeu ela? “.
Isso não faz cosquinha em Bolsonaro, e provavelmente até o ajuda. Os xingamentos de Ciro a Bolsonaro no Agrishow foram postados pelos próprios bolsonaristas, em meio a muitas risadas.
Bolsonaro não será derrotado nem com “assinaturas de pedido de impeachment”, muito menos com insultos infantis, mas com luta política séria, ou seja, através da mobilização de setores influentes e diversos da sociedade, e é isso que Lula está fazendo.
Quando faz esses ataques pesados a Lula, Ciro agride todos os apoiadores do petista, gerando contra si mesmo uma onda de animosidade que é obviamente negativa para sua campanha e para o PDT.
Nada justifica a tentativa de agressão física que sofreu numa manifestação de esquerda, mas Ciro parece agir como um provocador. Xinga, lança calúnias, ataca a honra e a dignidade de Lula e de sua militância. Depois aparece num evento repleto de militantes lulistas, é vaiado, rebate chamando-os “fascistas de vermelho”. Por fim, é atacado por meia dúzia de aloprados. Aí acusa Lula de ordenar que “seus jagunços me atacassem fisicamente”!
Que baixaria é essa, Ciro?
Para piorar, Ciro Gomes cultivou uma militância fanática que agride moralmente qualquer um que ouse criticar o líder supremo da “turma boa”.
Tudo que Ciro e os ciristas dizem que os petistas fazem, eles mesmo estão fazendo, e com muito mais virulência. Para o cirista médio, todo mundo que aderiu a campanha de Lula o fez por ser fanático, vendido, recebeu pix do PT, está a procura de cargos, enfim, é um linchamento puramente moralista. E ai de quem reclamar!
O próprio Ciro capricha na estratégia de inflamar os ânimos. Ataca a militância petista e Lula de forma baixa, e, diante da reação totalmente inevitável, vem falar em “gabinete do ódio”, criando ainda mais cizânia e mal estar num debate político onde o campo democrático deveria estar unido contra Bolsonaro!
Não é assim que se deve fazer o debate político. Essa postura sectária, por sua vez, apenas isola mais ainda Ciro Gomes, gerando um ciclo vicioso melancólico e violento, em que, à medida que Ciro desidrata nas pesquisas, sua militância fica mais agressiva, afastando mais eleitores.
Seria muito interessante que aparecesse algum adulto na campanha de Ciro Gomes, e lhe abrisse os olhos, porque do jeito que a coisa está indo, ele não apenas caminha para um processo de implosão política, como pode levar muita gente consigo!
Artigo publicado originalmente no DCM.
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