O jornal espanhol El País fez interessante editorial sobre a coqueluche (ou a pandemia) do momento: a tal inteligência artificial ChatGPT.
Com o tempo, cada vez mais os sistemas IA farão interfaces com nossos dispositivos e se tornarão uma espécie de oráculos de nossas atividades profissionais.
É por isso que o jornal chama a atenção: há riscos nisso e devemos tomar medidas para mitigá-los antes que eles se tornem uma unanimidade. Uma IADependência (a palavra é minha).
Os prós: sua capacidade de analisar grandes quantidades de dados e fazer previsões oferece uma assistência valiosa na previsão de desastres, diagnóstico de doenças, gerenciamento de recursos a longo prazo e eficiência no transporte. Suas habilidades já aliviam muitos meios de comunicação de acompanhar as flutuações da bolsa de valores, transmitir o futebol de ligas menores ou prever o tempo. E servem à educação, oferecendo a possibilidade de reforço personalizado em disciplinas especializadas, desde a matemática até o latim.
Contras: o fato é que não podemos automatizar estas funções sem mitigar as prováveis desigualdades que cresceriam exponencialmente, por exemplo, entre aqueles que mantêm acesso cada vez mais privilegiado a médicos, professores, secretários e jornalistas. Isto é: uma IA excludente.
Mais: a automação de serviços oferece vantagens econômicas às empresas, que podem estar abertas 24 horas por dia, sete dias por semana, sem pagar salários ou previdência social. Ao mesmo tempo, porém, constitui um risco para a privacidade e o cuidado do usuário, paciente e cidadão.
O ponto: é imperativo estabelecer diretrizes e regulamentos claros que garantam um princípio de transparência e responsabilidade no desenvolvimento e implementação de modelos automatizados, particularmente em empréstimos, saúde, contratação ou justiça criminal.
A diretriz ética inegociável: nenhuma IA pode nos substituir ou tomar decisões por nós; apenas nos ajudar a decidir, diagnosticar, pensar melhor.
Dilemas e perplexidades: como evitar assimetrias que surgirão entre aqueles com acesso privilegiado aos dados e a gestão de plataformas digitais e nossos interesses, necessidades e diretrizes regulatórias?
Efeitos colaterais: altos custos ambientais. Modelos de treinamento como o GPT-3 exigem grandes quantidades de solo, minerais, fluidos, energia e capacidade computacional, e geram quantidades industriais de resíduos e gases de efeito estufa.
Conselho: devemos colocar nossa casa em ordem antes de deixá-la nas mãos da inteligência artificial. A pergunta: temos a casa em ordem?
Na rede social, ouvi (e assisti a) um diálogo em que advogado diz que, no seu escritório, os advogados e estagiários usam o Google Bard e o ChatGPT para fazer petições. O que levava dias, agora leva apenas algumas horas. Acentua, ainda, que o advogado que hoje não entende que ele tem que usar a inteligência artificial do Google, perde mercado. Segundo o causídico, atualmente a competição não se dá entre advogados, e, sim, entre o advogado que usa inteligência artificial e o que não usa. E o diálogo se encerra com a “advertência de uma advogada”, com ar professoral: ou você usa o recurso para se aprimorar ou você está fora do mercado; não tem o que fazer, não tem como você ficar criticando a inteligência artificial, ela não vai sumir.
Eis o que advogados pensam sobre a IA. Autoexplicativo. IA para os causídicos é para “fazer petições e recursos”. E para competir no mercado. E para diminuir custos.
Preocupa que se usa o ChatGPT plagiador – e, de fato, o robô é um copiador, plagiador que não cita fontes – e que se assuma publicamente que petições são feitas por esse mecanismo. E, no Judiciário, esboço de decisões.
Há tribunais, como o TJ-SC, que já usam o robô para esboçar sentenças.
Sua vida sendo decidida por robôs.
Pior de tudo isso é a hiperprecarização. Se a coisa já estava ruim para os causídicos recém-formados (e não só para esses), agora há robôs substituindo os advogados que ganha(va)m uma mixórdia. É a mixórdia da mixórdia. Precarizando a precarização. Guerra de todos contra todos. A charge a seguir ajuda a explicar.
E, nos tribunais, robôs que fulminam recursos e julgam causas fiscais e quejandos.
E há um dado que é um chute na canela dos usuários da IA: o ChatGPT já faz textos melhores que a ampla maioria – mas ampla, mesmo – dos formados em Direito. O ChatGPT é melhor que o seu usuário. Bem-feito. Perdeu, mané. Daí a pergunta: somos capazes de construir máquinas que fazem as coisas melhores que nós e nós mesmos não conseguimos ser melhores do que somos? Será o nosso fim?
Não, não respondam.
A fábula dos porcos: um povo que só comia vegetais e passou a comer leitão à pururuca
Tudo isso deveria preocupar a comunidade jurídica. Essa deveria se preocupar com os que tiram proveito vendendo gasolina para incendiar florestas. Lembro aqui a alegoria do povo que era vegetariano e descobriu, por causa de um incêndio fortuito, porcos assados [1]. Para comer mais porcos, aquele povo passou a incendiar florestas. E depois passou a faltar floresta.
Parece que o ChatGPT é o incêndio que assou porcos. E, em vez de construirmos uma churrasqueira, passamos a incendiar as florestas. Fome por carne, floresta no chão. Na fábula, a solução: alguém teve a ideia de plantar novas florestas, para que pudessem ser logo queimadas e, assim, assar mais porcos. Instituíram até um percentual de incremento para quem mais plantasse árvores e as incendiassem. Só se falava nisso. Queimar porcos queimando florestas. E faltou floresta. Então, implantaram tecnologias pelas quais se plantavam árvores que cresciam mais rapidamente e, assim, mais porcos podiam ser assados…
Inventaram novos métodos de plantação de florestas. Com isso, multiplicaram o espaço plantado. E inventaram modos de queimá-las mais rapidamente. Também inventaram florestas do tipo “classe A”, que, uma vez incendiadas, já produziam porcos temperados. Suculentos. E sem colesterol. Quem não plantasse árvores, seria multado. E estaria fora do “mercado”.
Eis a fábula.
Como diz o causídico, a competição não é entre advogados… Tem toda a razão. Já vendemos a alma ao Deus ex machina. O que é Deus ex machina? O Google responde. Esta é a parte irônica da coluna.
E o mundo será uma peça de Eurípedes. Que usava o artifício Deus ex machina…!
[1] Utilizei em 2012 pela primeira vez. Voltei a usar em 2017 aqui no Conjur. Descobri mais tarde que originalmente se trata da “Fábula de los cerdos asados”, de Gustavo Cirigliano, publicada em 1959, na Revista Catedra y Vida, de Buenos Aires.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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